Boal: o “Gato”, a mulher de Johnny e a bicicleta a motor

Nesta “Crônica de Nuestra América”, que Outras Palavras publica em duas partes, artista traça, na atmosfera desolada das Ilhas Malvinas, alcoolismo e submissão feminina

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Nesta “Crônica de Nuestra América”, que Outras Palavras publica em duas partes, autor traça atmosfera desolada das Ilhas Malvinas, encarnada pelo alcoolismo e submissão feminina

Por Augusto Boal | Imagem Peder Severin Kroyer 

MAIS: Seção especial celebra, em Outras Palavras, a exibição, no Rio de Janeiro (até 28/9), da peça Crônicas de Nuestra Américabaseada no livro homônimo de Augusto Boal (com adaptação de Theotonio de Paiva, nosso colaborador). A crônica a seguir será publicada em duas partes. A segunda estará no ar no próximo fim-de-semana.

1

Na taberna, ficou pensando.

Port Stanley, a capital das Ilhas Malvinas, é uma cidade muito pequena. Faz muito frio. Dizem que por isso todo mundo bebe muito. E também porque não há muita diversão. A diversão mais importante para os habitantes das Ilhas Malvinas são os próprios habitantes das Ilhas Malvinas. Durante as noites frias, alguns se divertem muito; outros bebem. E como bebem muito, existem muitas tabernas. As principais são duas, ambas na praça central, frente a frente. A mais antiga é “Her Majesty’s Pub”. Conserva certo tradicionalismo. Seus preços são mais altos, e servem apenas as melhores marcas de whisky escocês. Suas paredes estão forradas de madeira e seus principais clientes são as autoridades supremas da Ilha: o Governador, o Chefe de Polícia, o Juiz e alguns dos comerciantes e importadores mais cotizados, além dos três bêbedos contumazes: Freddy, Teddy e Terry. A outra taberna se chama “La Discothéque de Margaret” e é menos convencional: aí se pode beber até mesmo coca-cola e genebra Bols, tem uma certa influência “hippy” e as paredes ostentam “posters” norte-americanos, desde Nixon sentado numa privada até o Pato Donald fazendo o amor com sua noiva pata.

Os clientes de cada uma dessas tabernas são como torcedores de um club de futebol: uns torcem pelo Boca e outros pelo River Plate, assim por que sim, e brigam por isso. Nada mais. John Sutherland era torcedor da “La discothéque de Margaret” e todos os dias aí tomava uns tragos, à tardinha, até as seis, que era quando voltava para casa para tomar outros tragos, antes de tomar uns aperitivos para abrir o apetite e comer bem, para depois concluir tudo com uns bons tragos para dormir uma boa noite. Às vezes acordava e tomava uns tragos para continuar dormindo.

Na taberna “La Discothéque de Margaret”, John Sutherland, também conhecido como Johnny por sua mulher e por alguns amigos mais chegados, ficou pensando. Tinha vontade de ir embora. Vivia nas Ilhas havia mais de 10 anos e sentia que era o momento de partir. Havia lido um poema de Lord Byron que dizia algo assim: “Existe um momento para partir, ainda que não se tenha para onde ir…” E esse verso não lhe saía da cabeça. Queria ir embora.

Para dizer a verdade, sentia um pouco de medo. Caramba! Por que o olhavam assim? Estava certo de que o farmacêutico olhou para ele com uma cara ruim, desconfiado. Para que quereria os três litros de iodo? E para que havia comprado os “Dexamyl”? E para que podiam servir tantos tubos de ensaio, tantas provetas, tantos alambiques? E, acima de tudo, por que ostentava ele o título de “Chefe de Laboratório”? Por acaso não era Johnny um simples vendedor de whisky?

Johnny se sentia muito mal na Ilha, isso já ia para uns três meses. Queria ir embora, mas não era ele um homem que se deixasse enganar muito facilmente. Não, senhor, isso não, no, no, Sir! De nenhuma maneira. Johnny tinha lido alguns livros muito importantes, quando era marinheiro, especialmente os de Dale Carnegie sobre isso de como conseguir amigos e influenciar pessoas. Na verdade, muitos amigos ele não tinha, e as pessoas geralmente o influenciavam mais do que ele a elas. Mas deixar-se enganar, isso nunca, jamais! John Sutherland queria ir embora, mas queria vender muito bem todas as suas “coisas”.

Contente, pensou que as coisas caminhavam bem. Já havia vendido quase tudo, secretamente, sem que sua mulher soubesse: a geladeira, umas quatro cadeiras, seis garrafas de vinho francês da safra de 1964, um tapete grande de sala… Tudo foi vendido para ser retirado depois que ele embarcasse. Sua mulher, Dorothy, estranhava um pouco quando subitamente entrava um senhor em sua casa e lhe pedia licença para medir sua cama, “por encargo do seu marido”. Outro senhor lhe pedia licença para contar as gavetas do armário, “Por encargo de seu marido”. Um dia, com toda razão, a boa senhora Dorothy ficou furiosa quando entrou outro senhor e, “por encargo do seu marido”, queria levar todos os lençóis e cobertores. Nesse dia, a indignada senhora esperou o marido e exigiu explicações! Mas ele tinha tomado tragos demais e não pôde responder suas perguntas. No dia seguinte, estava demasiado ocupado e tão pouco respondeu. E dias mais tarde já não se falou mais no assunto e ficou tudo por isso mesmo.

John Sutherland queria vender todas as suas “coisas” antes de ir embora. Queria vender tudo e a bom preço… e por isso terminou caindo na sua própria armadilha.

Na taberna, ficou pensando.

2

O “Gato” passeava com sua bicicleta adornada com 117 flores e fitas de todas as cores. Era a bicicleta mais invejada de Port Stanley, a mais desejada, a mais amada. E a mais fiel: ninguém jamais a havia visto montada por outro que não fosse seu dono e senhor. Ela e o “Gato” se entendiam com perfeição. Não corriam nunca: antes passeavam sensuais, lentamente, para que todos os pudessem admirar. Aos islenhos davam a impressão de que eram um único ser, o homem e a bicicleta, como aos aztecas e mayas os homens e os cavalos de Cortez pareciam criaturas divinas, unidas, duas cabeças e tantas patas. O “Gato” não descia nunca: ele e a bicicleta tinham até mesmo aprendido a subir escadas de poucos degraus.

Por que se chamava assim o “Gato”? Ninguém o sabia a ciência certa. Diziam uns que lhe haviam dado esse nome por sua inconstância com as mulheres, por sua maneira sensual de conduzir sua bicicleta, lentamente, deixando-se contemplar pelas meninas excitadíssimas à sua passagem. Outros diziam que assim se chamava por sua extraordinária agilidade andando em cima dos tetos das casas, silenciosamente, descendo aqui e ali para se encontrar com uma virgenzinha desesperada, ou com uma bem casada que, por uma só vez, prevaricava. Ninguém o sabia a ciência certa, mas o apodo de “Gato” lhe caía bem, e todos assim o chamavam. Ninguém conhecia seu verdadeiro nome.

Se alguém gritava seu nome: – “Gato!” – o “Gato” não respondia de imediato: fechava os olhos, movia a cabeça na direção de quem o chamava e só então abria os olhos. Dizem que assim fazem os gatos. Eu não posso afirmá-Io: tenho um gato, mas mesmo que o chame 30 vezes o desgraçado nem me olha. Meu animal não pode servir de exemplo…

As 117 flores e fitas coloridas de sua bicicleta correspondiam às 117 mulheres e jovens que tinham caído sob a sedução do felino. 117!!! Demasiadas mulheres para tão pouca ilha… Parece que nenhuma havia escapado: todas as mulheres “em atividade” tinham cedido ao ronroneio. Ou quase todas. As cores correspondiam à condição da dama: violeta para as viúvas, vermelho carmezim para as jovens em flor, botões brancos para as iniciantes. Ele mesmo fabricava as florezinhas e, ao entardecer, ia até a praça principal e aí, sem descer de sua majestosa bicicleta, e diante de todos os presentes que aí iam para refrescar-se ou tomar sol, pendurava a nova flor, a nova fita. Os homens na praça, invejosos, raivosos, olhavam-no com os dentes semicerrados, murmurando nomes possíveis:

“Joanne”, dizia um.

“Não, não: Anne Marie…”, protestava outro.

“Rosalie…”, arriscava um terceiro.

“A mulher do padeiro…”, sorria Tia Clorinda, uma velha de 90 anos, toda vestida de negro e que era, em todas as ilhas, a pessoa mais interessada em sexo e temas afins. “Tenho a certeza de que foi com a mulher do padeiro”, repetia jubilosa. “Eu vi o sorriso dela hoje de manhã, quando me vendeu o pão… O padeiro não é homem capaz de fazer com que ela sorria assim… Ria com todos os dentes… todos os dentes que sobram… não muitos, mas enfim, os que lhe sobram… ria com todos eles…”

“Bem”, acrescentou um velho, “o padeiro vivia se divertindo com os outros maridos, agora teve o que merecia. Porque tem uma mulher feia e velha, pensou que estava a salvo… agora teve o que merecia…”

“Ninguém escapa ao ‘gato’, ninguém…” repetia a velha Clorinda, com prazer, sorrindo, ofegante… “Ninguém lhe escapa…” e desejava que isso fosse verdade, porque também ela não lhe queria escapar…

3

Parecia ser verdade. Pelo menos era difícil que alguém lhe escapasse. E o “Gato” parecia ter tempo para todas, pois era muito rápido com cada uma, já que socializava parte do seu trabalho: primeiro, passeava em bicicleta e todas as mulheres o contemplavam, umas abertamente em suas portas e janelas; outras, escondidas atrás de uma cortina. E enquanto o olhavam, iam todas se “esquentando” ao mesmo tempo. Minutos depois deste jogo sensual coletivizado, o “Gato” desaparecia felinamente com sua bicicleta, e era possível ouvir-se, de tanto em tanto, o barulho de uma telha que se quebrava, um gato verdadeiro que miava em um teto, um cachorro guardião da castidade de sua dona ou um suspiro mais incontido! Pequenos ruídos que a todos faziam aguçar os ouvidos. Uma, duas, três, quatro, cinco vezes cada tarde… ninguém podia afirmá-lo com precisão. Ninguém lhe podia resistir.

Ninguém. Mas também ninguém podia provar nada. Onde atacará hoje o “Gato”? Ninguém sabia, talvez nem ele mesmo. E ninguém podia ficar todas as tardes, dias a fio, vigiando suas prendas amadas. Um pequeno descuido e zás! Era necessário confiar nas virtudes femininas de recato e fidelidade dos seus seres queridos. Mas, nessas Malvinas tão distantes e solitárias, Malvinas tão frias, tudo parecia tão difícil… por isso, ninguém estava a salvo… Nem sequer a filha do Juiz…

4

Quem é que pode ter certeza do que se passou naquela tarde? Quem pode jurar? Quem terá sido o autor? Afinal de contas, existiam outros homens em Port Stanley, e não apenas o “Gato” e qualquer um podia ter sido o autor do feito insólito: macularam a filha do Juiz, segunda autoridade suprema das llhas, uma jovenzinha de escassos 15 anos. O pai forçou a porta do dormitório, depois que a filha se tivesse aí trancado dois dias seguidos, sem comer e sem beber, nem falar, nem chorar. Triste imagem para o Poder Judiciário: a filha desnuda, sorridente, esfregando seu corpo nos lençóis e sobre esses mesmos lençóis evidentes sinais do sucedido. Pobre Juiz! Aos gritos, o pai ultrajado perguntava à filha:

“Quem foi? Quem foi o desgraçado?? Eu mato esse! Quero saber o nome!! Quem? Quem?? Quem foi???”

A mocinha sorria mas não parecia disposta a revelar a identidade do galã, o que ainda mais desesperava seu pobre pai; e ele a agarrava pelo pescoço, mas sem apertar muito forte, e gritava:

“Eu vou te matar! Eu vou te matar!!” mas não apertava quase nada. Por isso, quando exigiu outra vez que a menina pronunciasse um nome, ela, sem obedecer, mas igualmente sem desobediência, miou:

“Miau, miau!”

O pai não entendeu o código. Deixou-se cair sobre a cama soluçando, enquanto que a mocinha prosseguia feliz com seus miados:

“Miau, miau!”

E não parava de miar. Às vezes eram miaus carinhosos, outras vezes miaus ferozes. Qualquer que fosse a pergunta, merecia da jovem sempre a mesma resposta:

“Miau, miau”.

A mãe perguntava:

“Você quer comer?”

“Miau”, respondia a moça e todos compreendiam que tinha fome.

“Você quer dormir?” e a resposta era um terminante ”MIAU!” que claramente significava seu desejo de passar a noite sonhando. Com quem sonharia a jovenzinha? Com seu gatinho que saltava de teto em teto, tetos tão vulneráveis. Sim, com ele sonhava.

Os dias passavam e a menina parecia transtornada. Nunca mais se soube que houvesse pronunciado outra palavra que não os seus famosos “miaus!”: miaus gritados, miaus cheios de ternura, miaus interrogativos, miaus duvidosos, miaus que imploravam a volta do seu amado, que não voltou a visitá-la jamais. O pai, no entanto, tão pouco astuto, ainda se perguntava:

“Quem terá sido? Quem, my God?!”

Depois de cinco semanas de miaus, finalmente o pai decidiu que a mocinha deveria retornar a Londres, para tratamento, e para viver com sua puritaníssima avó. No cais, despediram-se com muita emoção. O pai lhe dizia:

“Cuidado, minha filha. O mundo está cheio de gente ruim, de traidores, de ladrões. Não se pode confiar em ninguém. Cada qual tem que pensar em si mesmo. Tem que se defender, tem que atacar os outros antes que os outros o ataquem, tem que roubá-los, sempre que seja possível, antes que os outros os roubem primeiro. Nós temos inclusive que matar, antes que nos matem. Assim é o mundo, este nosso miserável mundo…”

“Miau, miau…”, concordava a filha.

“Adeus, filha querida…”

“Miau, miau…”, respondeu ternamente a jovenzinha, beijando pai e mãe antes de desaparecer no interior do navio. Nunca mais seus miados foram ouvidos nas Malvinas.

Pelo caminho de volta, o Juiz ia se perguntando:

“Quem terá sido? My God, quem??”

Mas o seu coração estava aliviado: sua filha tinha ido viver com a avó, e ainda que mil vezes fosse violada em Londres, ele nunca o saberia. E, para ele, o importante era não saber, não conviver com a verdade, não vê-la, não senti-la, nem sequer suspeitá-la.

5

Nisso, John Sutherland se parecia ao Juiz. E foi por isso que se pôde casar com Dorothy. Que se pode dizer desta senhora? A verdade, um tanto dura, é que ela ganhava sua vida da maneira difícil, trabalhando num bar do porto de Southampton, na Inglaterra. Ali conheceu John, velho marinheiro mercante. Conheceram-se no dormitório do segundo andar. Tudo muito convencional, como sempre: florzinhas de papel cobrindo as lâmpadas, corredores muito escuros, um jovem afeminado servindo as bebidas e entrando nos quartos sem pedir licença, e depois se desculpando.

“l’m sorry, l’m sorry, I’m terribly sorry! You don’t have to dress, Mr., now that l have seen your ass… oh, oh…”

Assim se conheceram. Eu podia contar outra história mais linda, de encontro entre dois amantes, mas prefiro contar esta, mais verdadeira. Ali se conheceram e John lhe deu todo o dinheiro que trazia nos bolsos e lhe disse:

“Vai pra tua casa. Acaba com isso. Nunca mais me fales do teu passado!”

Pensou melhor e acrescentou:

“Nem do teu presente até hoje, até agora, até aqui! Já se acabou! Vai pra tua casa. Amanhã vou te buscar. Vamos acertar os papéis, e vamos nos casar e viver longe daqui…”

“Aonde?” perguntou timidamente Dorothy.

“Meu navio vai para as llhas Malvinas: vamos viver lá. É uma terra jovem, onde qualquer um pode começar uma vida nova. Uma pessoa que tenha inteligência e esteja disposta a trabalhar, nunca lhe vai faltar trabalho, nunca… Aí vamos ser felizes, nas Falklands… (É lógico que, sendo inglês, John se referia às Malvinas como Falkland Islands).

Para uma inglesa de Southampton, a resposta me parece muito natural, embora absurda:

“Eu não gosto da África… lá faz muito calor…”

Assim são as coisas: Nuestra América, a nossa América, não é muito conhecida em outros continentes. Muitos professores universitários norte-americanos pensam que Buenos Aires é a capital do Rio de Janeiro, por isso ninguém se pode admirar da ignorância da pobre Dorothy. Para ela, tudo que não ficava na Europa era simplesmente “África”. Mas John Sutherland, marinheiro dos sete mares, profundo conhecedor das geografias marítimas, explicou-lhe mais ou menos onde ficavam as Malvinas, lá no sul da Argentina e Dorothy acabou concordando com o casamento. Voltou para casa e contou tudo ao seu irmão, com quem vivia: ele era o rapaz das bebidas que entrava sem pedir licença. O irmãozinho chorou muito, mas, como era para o seu bem, acabou cantando-lhe a marcha nupcial. Os dois choraram emocionados, durante toda a noite. Eram pessoas de poucas palavras: antes riam ou choravam, e isso lhes bastava.

No outro dia, John Sutherland voltou para buscá-la. Preparou todos os papéis, o que acabou sendo mais difícil do que pensavam, em virtude de que Dorothy era filha de pai desconhecido e isso dificultava os trâmites burocráticos. Mas a John nada disso importava. Simplesmente dizia:

“Não me contes nunca o teu passado, nem o teu presente… até ontem…”

Ela sorria alegre e lhe beijava a mão. Quando por casualidade (e ignorância) um antigo cliente batia à sua porta, ansioso por encontrá-la, ela, secamente lhe abria a janela e perguntava: “Que deseja?” – e o pretendente, magicamente, compreendia tudo e não insistia. Alguns até a felicitavam.

O casal se despediu do irmão que ficou muito triste e solitário, no cais, chorando e gritando palavrões aos meninos que diziam algumas coisas graciosas, alusivas aos hábitos sexuais do jovem, verdadeiras sem dúvida, mas tão pouco oportunas nesses momentos tão delicados como eram o casamento e a partida de uma irmã querida e companheira de trabalho.

Em Port Stanley começaram vida nova. John sempre lhe recomendava:

“Não me fales do teu passado, nem do teu presente até que saiamos da Inglaterra…”

Era inútil tal recomendação: Dorothy não falava nunca do passado, nem do presente e muito menos do futuro. Era uma mulher obediente e trabalhadora. Fazia todo o serviço da casa em silêncio: cozinhava, limpava, passava a ferro, varria. Fazia tudo sozinha. E, com a mesma eficiência com que limpava os vidros, lavava os pratos ou preparava o almoço, também assim fazia o amor. Mas, para que não se equivocasse e para que o seu passado não a perseguisse, esperava sempre as ordens do marido.

“Na orelha!” – e Dorothy se punha a acariciar-lhe a orelha, a beijá-la.

“Nas costas!”, e era a mesma coisa. “Na barriga. Na bunda. Na perna esquerda.” Dorothy a todas as ordens obedecia.

“E agora zás!”, dizia o marido.

Só então Dorothy não se continha e exclamava:

“Traz!”

E se amavam.

Zaz traz, zaz traz, zaz traz!

“Ritmo! Ritmo! Ritmo!” pedia John.

Dorothy tudo lhe dava ao marido, e para si mesma não pedia nada. Uma só vez fez um pedido insólito: queria mudar de nome. Explicou ao marido que “Dolores” combinava melhor com a sua personalidade do que “Dorothy”. Depois de muita hesitação, John finalmente levou o pedido à consideração do Juiz da ilha. Johnny foi procurá-lo especialmente na “Her Majesty’s Pub”. O ambiente lhe pareceu estranho e austero, mas estava decidido a fazer esse favorzinho a sua mulher e esperou, tomando um Chivas. Quando entrou o juiz, Johnny lhe explicou o desejo de Dorothy. O Juiz morreu de dar risadas, gargalhadas sonoras e explosivas, que chamaram a atenção de todos os clientes nas outras mesas. Johnny queria impedi-lo, mas o Juiz contou aos demais o motivo do seu riso e se riram todos. Johnny ficou furioso. Primeiro, com o Juiz que não tinha sido capaz de guardar um segredo profissional; depois, com todos os demais bêbedos da taberna que não lhe mostraram o menor respeito; finalmente, com sua própria mulher, que o obrigara a passar essa vergonha.

Levantou-se e disse baixinho no ouvido do Juiz:

“Miau, miau, cada qual tem seus segredos, cada qual, miau, miau!”

O Juiz ficou muito sério e prometeu solenemente que levaria o caso à Corte Britânica para que a própria Rainha se ocupasse do caso. John se deu por satisfeito e saiu. Mas, pela janela, pôde ouvir que todos tornavam a rir, inclusive o Juiz, e outra vez sentiu o coração cheio de ódio.

Entrou na “La Discothéque de Margaret” e ficou bebendo. Notou que o whisky era falsificado. Lembrou-se dos primeiros meses que tinha passado na ilha, o whisky puro, o despertar sem dores de cabeça… Sentia que sua cabeça estava cheia de iodo.

“Será que vai me fazer mal?”, perguntava-se a si mesmo.

“Não, que nada…”, e ele mesmo se tranquilizava…

6

John sentia que tinha um pouco de culpa. Devo explicar por que. A coisa foi assim: quando chegou a Port Stanley, John Sutherland, velho marinheiro, não sabia em que outra coisa trabalhar. Tinha algum dinheiro guardado e por isso pôde ficar esperando as oportunidades oferecidas por esse admirável mundo novo. Mas as oportunidades não apareciam. Queria trabalhar em alguma coisa superior, grande, como advogado, arquiteto, engenheiro ou médico de senhoras, alguma coisa assim, mas carecia dos títulos. Descobria que ser cidadão inglês não adiantava. O dinheiro já estava acabando e sua mulher insistia na necessidade de aceitar o primeiro emprego que lhe oferecessem. Orgulhoso, ele dizia que não. Decidiu-se a esperar até que pudesse trabalhar em alguma coisa compatível com sua dignidade e suas aspirações. Mas as oportunidades eram poucas. As Ilhas Malvinas não são o melhor exemplo de desenvolvimento econômico. Pelo contrário, as coisas aí parecem involuir. E muita gente vai embora. Cinco anos atrás, aí viviam 2.500 pessoas; hoje, menos de 1.800.

Um dia, Dorothy resolveu falar muito francamente com seu marido:

“Se você não aceitar o primeiro emprego que te oferecerem, bom, nesse caso, eu tenho a impressão de que vou ter que começar a trabalhar eu mesma…”

Dorothy era mulher de poucas palavras. Poucas, mas certeiras! Isso assustou muitíssimo a Mr. John Sutherland. Na verdade, a profissão da senhora Sutherland, digo, sua antiga profissão, prometia-lhe uma rápida e ascendente carreira nessas ilhas: existem aí seis homens para cada mulher! Por isso, no dia seguinte, John estava por toda parte buscando emprego.

Aceitou o primeiro. Seu trabalho consistia em distribuir garrafas de whisky em algumas tabernas de Port Stanley. O principal cliente era a “La Discothéque de Margaret”. Tudo foi muito bem no primeiro dia, mas já no segundo, o patrão lhe perguntou:

“Quantas caixas foram entregues ontem?”

“Vinte, patrão.”

“E temos aqui dez caixas de garrafas vazias… Isso não lhe diz nada?”

“A mim não, mas se o senhor me disser, vou logo ficar sabendo…”

No começo, o patrão estava com um pouco de medo. Explicou muito confusamente a história de Cristo que multiplicava pães e peixes, o que de certo modo fazia com que ele se sentisse justificado em multiplicar as garrafas de whisky. Explicou que uma certa mistura de água destilada e iodo podia inclusive melhorar o sabor Chivas Regal de 12 anos, coisa que pareceu fantástica a Mr. John Sutherland.

Quis fazer uma experiência, e o patrão lhe deu de beber dois copos, um com o whisky autêntico e o outro “melhorado”. John ficou maravilhado por ser incapaz de distinguir um do outro. Mais dois copos e o sabor parecia ainda mais idêntico. Depois da terceira experiência Johnny aderiu entusiasmado ao plano do patrão, e em poucos dias se converteu no melhor misturador da firma.

Bem cedo assumiu o posto de gerente geral de vendas e de “Chefe de Laboratório”. Por “laboratório” entendia-se um pequeno galpão escondido, onde se adulteravam os whiskies. Aí guardava também suas anotações, em vários livros, onde deixava constância de suas experiências. Cada marca de whisky merecia uma fórmula de adulteração própria: para tantas gramas de iodo, tantos litros de água destilada. Alguns whiskies não necessitavam de iodo: bastava um pouco de chá bem forte, igualmente importado, mas sensivelmente mais barato. Johnny resolveu experimentar também com outras substâncias, como o permanganato de potássio e o mertiolate comum e corrente, mas os resultados foram funestos: na manhã do dia seguinte, os clientes da “La Discothéque de Margaret” não se levantaram da cama. Três deles foram hospitalizados em estado crítico, mas o médico, que também se curava de uma bela ressaca, não conseguiu atinar com a causa da doença que foi erroneamente atribuída a umas latas de sardinhas, que ninguém havia comido. Por esse motivo, embora essas fórmulas fossem bastante mais econômicas, o patrão decidiu voltar aos métodos mais tradicionais. O patrão era um homem muito conservador, antigo eleitor de Edward Heath. Não gostava de inovar. Muito contra a sua vontade e o seu espírito inventivo, John Sutherland voltou ao iodo e ao chá. Secretamente, contudo, continuava com as suas experiências, por puro prazer científico.

Um dia, porém, ocorreu o desastre…

(Continua na próxima semana)

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