A ameaça dos acordos-vampiros

Num encontro em Montevideo, movimentos sociais da América Latina debatem meios de enfrentar os acordos de “livre” comércio — o próximo ponto da agenda conservadora na região

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Num encontro em Montevidéu, movimentos sociais da América Latina debatem meios de enfrentar os acordos de “livre” comércio — o próximo ponto da agenda conservadora na região

Por Daniel Santini

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O avanço de governos conservadores e as novas negociações envolvendo tratados internacionais de comércio e serviços estiveram entre os principais temas em debate no Uruguai na semana de 19 de setembro, período no qual foi realizada mais uma sessão da Assembleia Parlamentar Euro-Latino-Americana. O encontro aconteceu no Senado do Uruguai e reuniu deputados do Parlatino (Parlamento Latinoamericano), Parlandino (Parlamento Andino), Parlacen (Parlamento Centroamericano) e Parlasur (Parlamento do Mercosul), além de representantes do Parlamento Europeu. A ofensiva de propostas consideradas pouco transparentes e democráticas foi criticada durante a programação oficial e também em publicações e eventos paralelos.

Pela sociedade civil, organizações que acompanham o tema a partir de diferentes países encontraram-se na noite de segunda-feira, 19 de setembro, na Casa Bertolt Brecht (CBB), em Montevidéu. O evento foi organizado em parceria entre CBB, o jornal La Diaria, que publicou um suplemento especial sobre “tratados vampiros”, e a Fundação Rosa Luxemburgo (FRL). Participaram representantes de Alemanha, Argentina, Brasil, Chile e Uruguai, em debate com mediação  de Tatiana Magariños, da CBB, e Gerhard Dilger, da FRL.

Em comum, os participantes fizeram críticas à falta de clareza com que o tema costuma ser tratado e à dificuldade de acesso a informações, o que compromete a participação pública na tomada de decisões. O próprio conceito de Tratados de Livre Comércio (TLCs) não é considerado o mais adequado para nomear o tipo de negociação que envolve tais acordos. “Existe uma armadilha aí. Os TLCs não tratam de comércio, mas sim de liberalização corporativa. Ou seja, de como fazer com que o Estado não tenha mais como regular as empresas. Essa é a discussão”, pontua o economista Adhemar Mineiro, consultor da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip). Ele destaca que os compromissos assumidos costumam ter cláusulas que impedem que um país volte atrás e fala em “liberalização progressiva”.

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“Uma vez que começa, não pode voltar”, diz. Considerado um dos principais especialistas no tema do Brasil, Mineiro manifesta preocupação com a guinada na política externa do país a partir da posse do presidente Michel Temer, marcada pela retomada acelerada das tratativas para firmar TLCs. “O que há de novo é a ideia de se inserir em novas negociações rapidamente. É um governo interino que tem pressa de fazer as coisas”. Ele destaca, porém, que tal apetite contrasta com a conjuntura já que muitos países adotaram postura cautelosa e diminuíram o ritmo nas negociações em curso.

Natalia Carrau, de REDES/Amigos da Terra Uruguai, uma das organizações locais que também promoveram debates paralelos da sociedade civil durante a EuroLat, critica o tipo de acordos em discussão. “A oposição tem que ser feita contra qualquer tratado que beneficie empresas e não o bem-estar das pessoas”, argumenta, ressaltando o caráter sigiloso que têm marcado as diferentes negociações de acordos internacionais. Ela lembra que movimentos sociais e organizações só tiveram acesso a alguns dos acordos em discussão graças a vazamentos de documentos por meio do site Wikileaks (casos dos acordos TPP e do TISA). Frente à nova onda conservadora que se desenha, está prevista uma Jornada Continental pela Democracia e Contra o Neoliberalismo em 4 de novembro com ações de sindicatos e movimentos sociais.

Gaby Küppers e Natalia Carrau

A mesma preocupação em relação à natureza dos tratados é apontada pela alemã Gaby Küppers, que, como assessora de Relações Econômicas Internacionais do grupo dos Verdes no Parlamento Europeu, tem acompanhado de perto as discussões. “Não se trata de um país contra outro, mas sim de um modelo que beneficia empresas contra o bem-estar das pessoas. Todos países da América Latina vão ter acordos bilaterais, e acabarão competindo entre si”, prevê. Além da falta de transparência nas negociações, ela critica também o descontrole na regulação financeira nos acordos, com especial atenção para a persimividade para operações de lavagem de dinheiro. “Os acordos ajudam a continuar essas práticas”, argumenta, ressaltando que um bom acordo seria o que garantisse mais controle sobre transações financeiras, impedindo e coibindo atividades ilegais.

Também participaram do encontro integrantes de plataformas de resistência a tratados de diferentes países. Além de Luciana Ghiotto, de ATTAC Argentina e Asembleia Argentina Melhor Sem TLC, e Paula Muñoz Gómez, da Plataforma Chile Melhor Sem TPP, que estiveram da mesa, da plateia Alberto Arroyo, do México Melhor Sem TPP,  compartilhou mais sobre sua experiência a partir da América do Norte. Luciana Ghiotto defende a necessidade de uma articulação internacional e de unidade na diversidade de organizações mobilizadas ao redor do tema. Ela lembra que, se nas mobilizações anteriores, como a ALCA, era mais fácil identificar a quem se opor, no caso a política externa dos Estados Unidos, hoje são muitos os atores e interesses. “Precisamos fazer uma crítica ainda mais profunda”, argumenta.

Luciana Ghiotto e Paula Muñoz Gómez

Paula Muñoz Gómez lembra que os tratados envolvem não apenas relações comerciais, mas temas que vão de regras conservadoras sobre propriedade intelectual até alteração nas regras de serviços públicos, incluindo educação e saúde, com possibilidade de privatização nestes setores. “Na prática, os tratados reduzem a democracia. As regras afetam tudo”, detalha. Alberto Arroyo usou os acordos assinados pelo México como exemplos de que os argumentos dos que defendem tratados não se sustentam a partir da análise de dados concretos onde os mesmos já foram efetivados. “No México é um fracasso, não aumentou a entrada de divisas, não diversificou as exportações”, explica. “Existem três mitos: que os países precisam se desenvolver, que o desenvolvimento depende de capital estrangeiro e que o capital estrangeiro depende de tratados. Se olharmos os dados, não faz sentido. Sai mais dinheiro do que entra no fim das contas”. Ele também pontua que, mesmo as menções formais que garantiriam direitos não passam de declarações de intenções. “A cláusula democrática, por exemplo, é uma cláusula de papel. Não é operativa”.

Gerhard Dilger mencionou alguns aspectos geopoliticos, detalhados num discurso do ex-deputado alemão Norbert Paech, reproduzido parcialmente no DÍNAMO. Em especial destacou que os acordosTTIP e TPP foram pensados para minar a influência crescente de China e Rússia no planeta

Parlamentares criticam

As críticas aos tratados internacionais não foram feitas apenas pela sociedade civil e, no Senado do Uruguai, onde a EuroLat aconteceu, parlamentares de diferentes países também manifestaram preocupação. Apesar de a declaração final, divulgada no encerramento em 21 de setembro, falar em apoio às “negociações em curso entre a UE e o Mercosul”, e em “uma nova fase em 2016, com a adesão do Equador ao Acordo Multipartes em vigor entre a UE, por um lado, e a Colômbia e o Peru, por outro”, deputados da Europa e da América Latina lamentaram os rumos das tratativas. O documento oficial, assinado pelo senador brasileiro Roberto Requião (PMDB-PR) e pelo deputado do europeu Ramón Jáuregui Atondo, atuais presidentes da EuroLat, menciona “o processo de modernização dos acordos em vigor entre a UE e o México e entre a UE e o Chile, bem como o incipiente processo de intensificação das relações com Cuba”, e cita que os novos acordos envolveriam temas mais amplos, como “respeito aos direitos humanos, às liberdades fundamentais, aos princípios da democracia e ao Estado de direito”.

Assim como o mexicano Alberto Arroyo, parte dos parlamentares presentes avalia, no entanto, que as palavras do documento não passam de declarações de intenção, sem efeito real. “Na prática são tratados de elites”, defende a eurodeputada espanhola Marina Albiol (Esquerda). “Por que se negocia isso agora? Porque é a saída capitalista para a crise, a única maneira de se manter taxas de lucro”, afirma, destacando que os textos em debate falam em ampliar privatizações, liberar políticas de alto impacto social e ambiental como a exploração de gás com a técnica “fracking” e a disseminação de transgênicos e agrotóxicos. Ela também se manifesta contra a perspectiva de tribunais internacionais atuarem operando em favor de multinacionais e destacou que não são tratados de livre comércio. “São tratados regulados por determinados interesses. E o mais grave é que, se aprovados, mesmo que a esquerda ganhe nas urnas, não poderão ser desfeitos. Já estará tudo atado”.

Presidente do Parlasur, Jorge Taiana

A leitura é similar a do deputado presidente do Parlasur, o argentino Jorge Taiana, que foi ex-ministro de Relações Internacionais do seu país. “Estamos falando cada vez menos em livre comércio e mais em outras coisas”, destaca, apontando um desequilíbrio nas negociações. “É um acordo de elites sim, mas é preciso lembrar que as elites daqui [da América Latina] são subordinadas ao capital internacional”. A  falta de igualdade é reforçada pela maneira como novas negociações têm sido conduzidas, com blocos como a União Europeia negociando acordos com outros outros blocos ou países isolados. Mesmo entre os que estariam do lado supostamente mais forte acabam prejudicados, segundo o eurodeputado português João Pimienta (Esquerda). “Os acordos impõem condições e não consideram que existem interesses distintos. O que serve para França e Alemanha não necessariamente serve para Portugal. E o país fica proibido de ratificar acordos com outros países, têm que seguir o que foi negociado pela União Europeia. Existe aí um problema de soberania também”, aponta.

Para o parlamentar espanhol Ernest Urtasun (Verdes), vale ter atenção com a estratégia de divisão de blocos já consolidados, para negociação de tratados bilaterais. “Existe uma política comercial destinada a fragmentar mercados em benefício próprio”, menciona. Ao mesmo tempo em que faz a crítica, ele menciona mobilizações recentes na Europa como um horizonte para interromper os acordos em discussões. “Temos possibilidades reais de frear o processo. Temos que aproveitar essa janela de oportunidade”, diz. Também da Espanha, Tania González reforçou as dificuldades em se obter acesso aos documentos básicos do que está sendo discutido. Muitos dos presentes relataram que, mesmo atuando como representantes eleitos da sociedade, para poder ler algumas das cláusulas, são obrigados a deixar celulares e máquinas fotográficas fora de alcance, cuidado que visa impedir que os textos sejam divulgados. “As negociações deveriam ser públicas. Quando se oculta, é porque algo tem”, diz a eurodeputada da Esquerda.

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Fora Temer no Senado

A negociação de novos acordos comerciais ganhou destaque nos principais jornais do Uruguai não só em função da realização da EuroLat, mas também devido ao encontro entre os presidentes Michel Temer e Tabaré Vázquez em Nova Iorque. O tema foi manchete nos principais jornais, com análises que apontam uma nova fase do Mercosul, marcada por mudanças significativas do que foi construído pela política externa durante os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.

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Há preocupação em relação ao novo governo brasileiro e às medidas do chanceler José Serra. Dentro do Senado, manifestantes chegaram a exibir cartazes com as palavras “Fora Temer” e parlamentares estrangeiros lamentaram a maneira como a presidenta eleita foi deposta.

A própria carta final da EuroLat critica o processo de afastamento: “[os representantes da EuroLat] Manifestam a sua preocupação perante a situação política no Brasil, no qual o processo de destituição (impeachment) da ex-Presidente Dilma Rousseff suscitou dúvidas na opinião pública internacional e se revela incapaz de unificar e conciliar o país. Condenam a repressão injustificada das manifestações pacíficas, a utilização indevida, para fins políticos, do necessário combate à corrupção, a perseguição contra membros do antigo governo e o assédio jurídico ao ex-Presidente Lula. Esperam, de todas as forças políticas do Brasil, maturidade e tranquilidade para que este país reencontre o caminho do desenvolvimento com justiça social.”

 

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