Maria Firmina dos Reis: a literatura contra a colonização

Com a publicação de Úrsula, em 1861, a maranhense tornou-se a primeira romancista brasileira. O gesto de Joana, do conto “A escrava”, parece simbólico de sua tomada de palavra: “Ainda posso falar”. Sua obra ainda grita ao Brasil de hoje

Maria Firmina dos Reis, 2022, de Dalton de Paula. Foto: Paulo Rezende/Acervo do MASP.
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Por Rodrigo Jorge Ribeiro Neves na coluna da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS)

Texto publicado originalmente no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS). Para ler outros textos da coluna, clique aqui.

A imagem da estátua de Borba Gato, no bairro de Santo Amaro, em São Paulo, consumida pelas chamas ganhou as redes sociais e provocou acaloradas discussões em 2021, inclusive entre os que estavam de acordo com o passado criminoso do bandeirante. Enquanto uns defendem a ressignificação da memória no espaço público ensejada pela ação, outros a desaprovam, acreditando nas vias institucionais para a remoção do monumento. Não discordo inteiramente destes últimos, pois precisamos lutar por instituições cada vez mais fortes e que sirvam de proteção, em especial, para as minorias. No entanto, é contra estas que as instituições, historicamente, no Brasil, atuam até hoje. As milhões de pessoas escravizadas, violentadas e mortas, entre negras e indígenas, sustentaram a colônia e o império brasileiros. O sistema escravocrata foi abolido e o regime político mudou, mas o extermínio da população negra e ameríndia não. Para uns é exceção, mas, em uma perspectiva benjaminiana, para os que vivem nas aldeias e periferias deste país, é a regra. 

A literatura, como instituição, também promove suas exclusões, pois reflete e é refletida pela sociedade. Por isso, o resgate de escritoras e escritores apagados de sua história é cada vez mais necessário, não apenas porque precisam ser lembrados, mas também porque precisamos deles se queremos romper com essa estrutura de manutenção de privilégios e aprofundamento de desigualdades. Maria Firmina dos Reis foi uma escritora negra. Nascida no Maranhão, em 1822, publicou seu primeiro livro em 1859, Úrsula, tornando-se a primeira romancista brasileira. Seu nome ficou esquecido por muito tempo, até ser recuperado em 1962, em um sebo no Rio de Janeiro. Desde então, sua obra vem sendo reeditada e conhecida. Foi a homenageada da FLIP de 2022. Mesmo assim, ainda é pouco. Nenhum esquecimento, na história ou na literatura, é acidental, ainda mais se for de uma mulher, negra e escritora latino-americana. 

Ler a obra de Maria Firmina dos Reis nos oferece novas perspectivas sobre a literatura e a sociedade brasileira do século XIX, mas que, de certa maneira, ressoam nas estruturas mantidas até os dias atuais. Embora seu romance tenha um papel fundamental na compreensão de sua obra e de seu lugar na literatura brasileira oitocentista, é preciso destacar também a relevância de suas narrativas curtas conhecidas até então, “A escrava” e “Gupeva”. Em 2021, organizei uma antologia com essas duas histórias e alguns poemas da autora no livro A escrava, editado pela Hedra.

O conto “A escrava” foi publicado na edição nº 3 da Revista Maranhense, em novembro de 1887. Na atualidade, vem sendo incluído em várias antologias sobre a autora e recebendo cada vez mais análises críticas. Ao dar protagonismo à Joana, uma mulher negra, escravizada, Maria Firmina reforça uma visão moderna da história, contada a partir dos oprimidos, dos que lutaram e resistiram contra sua eliminação física e simbólica. A história começa ambientada em “um salão onde se achavam reunidas muitas pessoas distintas, e bem colocadas na sociedade”, que conversavam sobre assuntos “mais ou menos interessantes”, até chegarem em uma temática “sobre o elemento servil”. Depois de discutirem diversos pontos de vista, uma personagem identificada apenas como “uma senhora” relata o encontro repentino que teve com a escravizada Joana e seu filho Gabriel, depois de fugirem de seu algoz, o senhor Tavares. Um dos momentos mais representativos da narrativa é quando Joana toma as rédeas de sua própria história. Ao admitir desconhecer “esse homem tão mau”, a senhora avisa que pedirá a Gabriel mais informações, mas Joana intervém: “Eu mesma. Ainda posso falar.”

Página de Revista Maranhense com a publicação de “A escrava”, acervo Hemeroteca Digital da BN

A escritora, filha de uma ex-escravizada liberta, sabia da importância de dar voz àquelas que foram silenciadas, e ainda são, pelo gênero e pela cor de sua pele, questão que também surge em alguns de seus textos poéticos. Por isso, o conto não é apenas um relato sobre a escravidão, mas, também, de resistência e liberdade, demonstrando, na esteira de outras grandes personagens negras da nossa história, que não foi a assinatura de uma princesa que, efetivamente, deu fim ao sistema perverso. Ele veio ao chão após muita luta em diversas frentes. A literatura de Maria Firmina dos Reis estava em uma delas, e ainda está, como tantas outras, até hoje.

Com a novela “Gupeva”, a escritora maranhense se volta para o indianismo romântico, assim como o poema “Por ocasião da tomada de Villeta e ocupação de Assunção”, em Cantos à beira-mar, mas, diferentemente de alguns dos principais nomes do período, a aproximação entre o nativo e o colonizador é questionada. Com o subtítulo “romance brasiliense”, a novela saiu pela primeira vez, de forma incompleta, no semanário O Jardim das Maranhenses, entre outubro de 1861 e janeiro de 1862. A versão completa e revista por Maria Firmina foi publicada em dois periódicos pouco tempo depois, no jornal Porto Livre, de fevereiro a maio de 1863, e em Eco da Juventude, de março a abril de 1865. 

Página de O Jardim das Maranhenses, com a publicação da primeira versão de “Gupeva”, acervo Hemeroteca Digital da BN

No lugar da idealização do indígena, a narrativa aponta para a profunda violência envolvida na relação entre as duas culturas, culminando na morte das principais personagens nativas. Assim como em sua narrativa abolicionista, Maria Firmina confere protagonismo aos que foram explorados em sua própria casa e destaca a repetição da violência sofrida entre as gerações, exibindo o caráter estrutural e atroz da colonização. A novela conta a história do indígena tupinambá Gupeva e da filha de sua esposa, Épica. Com a morte da mulher logo após o parto, o indígena batiza a criança com o mesmo nome da mãe e passa a cuidar dela como pai, mesmo não sendo o seu genitor. A paixão de Épica, a filha, por Gastão, um marinheiro francês, faz emergir um passado perverso e que traz trágicas consequências na vida de todos. No fim, as relações entre a violência, a loucura e o colonialismo também atravessam a narrativa indianista da escritora maranhense. 

Além de tocar em temas cruciais, as narrativas curtas de Maria Firmina dos Reis são bastante atuais na maneira como lidam com o espaço e o tempo em sua composição, por meio de flashbacks, o que mostra a sintonia da autora com o desenvolvimento da narrativa moderna. Neste sentido, forma e conteúdo se entrelaçam, pois a escritora apresenta e discute problemas resultantes de um passado de profunda violência e que, se não forem resgatados e trabalhados pela memória, tendem a se perpetuar sem fim. Não por acaso, a violência contra negros e indígenas persiste, e não apesar das instituições, mas, principalmente, por causa delas. Por isso, precisamos de mais monumentos à vida e obra de Maria Firmina dos Reis, para que não mais ergam nem lamentem o fim dos monumentos da nossa barbárie.

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