Lula 3.0 e os cantos de sereia da “austeridade”

A banca o chantageia e quer compromissos. Mas num governo de reconstrução nacional não haverá margem para repetir erros de 2003-2010. É preciso deixar claro o rechaço ao teto de gastos, ao superávit primário e a toda cartilha financista

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São muitas as reviravoltas que a evolução da luta política nos apresenta. A grande novidade para uns, ou surpresa para outros, tem sido a performance da candidatura de Lula nas pesquisas de opinião. Desde o momento em que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu publicamente a lambança perpetrada por Sérgio Moro à frente dos processos da “República de Curitiba” contra o ex-presidente, a possibilidade de sua apresentação para um terceiro mandato se tornou uma realidade. Em abril de 2021, o plenário do STF houve por bem anular todos os processos que haviam sido, irregular e ilegalmente, conduzidos pelo então chamado “xerife da Lava Jato” e pela quadrilha articulada com membros do Ministério Público, tendo à frente figuras como Deltan Dalagnol.

A partir de então, o nome de Lula passou a fazer parte das consultas regularmente promovidas pelos institutos de pesquisa junto à população. Com um atraso de quatro anos e com perdas irreparáveis para aquele que foi impedido de concorrer às eleições de 2018, a justiça finalmente foi feita. Mas o grande prejudicado talvez tenha sido esse país chamado Brasil e a grande maioria de sua população, uma vez que a intenção daquela prisão irregular era justamente abrir o caminho para vitória de Jair Bolsonaro no pleito. Mas agora a situação parece estar mesmo favorável a um retorno de Lula ao Palácio do Planalto para um terceiro mandato de 2023 a 2026. Ao que tudo indica, a única possibilidade de impedir esse desejo do eleitorado é um recurso do bolsonarismo e das forças da extrema-direita a uma tentativa de golpe militar. Uma vitória de Lula no primeiro turno atuaria para dificultar essa articulação putschista, uma vez que a alegação de fraude nas urnas eletrônicas estaria questionando também as eleições de todos os deputados estaduais das 27 unidades da federação, boa parte de seus governadores, os deputados federais e os senadores.

As manifestações internas e internacionais em favor da lisura do processo eleitoral brasileiro tendem a limitar a possível ampliação de apoio ao intento golpista. Os representantes do alto comando das Forças Armadas indicados por Bolsonaro ainda não esboçaram um recuo explícito, mas tudo leva a crer que a aventura não passaria de uma quartelada, sem apoio nas forças políticas e mesmo no interior das casernas. Apesar disso, a capacidade de mobilização do bolsonarismo não deve ser menosprezada e as forças democráticas devem dar uma resposta dura e mais ampla do que as tentativas que os golpistas preparam para o dia 7 de Setembro. O forte simbolismo das comemorações do bicentenário da independência deve ser respondido com mobilizações do campo democrático ainda mais expressivas e em data posterior.

Futuro governo Lula já em disputa

Enfim, à medida que avança o calendário, os olhos da maioria dos formadores de opinião voltam-se para Lula. Faltam menos de dois meses para a realização do primeiro turno. E a formação de uma ampla aliança política em torno da candidatura do ex-presidente promove um duplo efeito, ainda que contraditório. De um lado, a necessidade de uma vasta coligação é imperiosa para evitar o golpe e fortalecer as chances de superação desse governo, além de contribuir para que a questão seja resolvida ainda no dia de 2 outubro. Por outro lado, no entanto, ela coloca problemas para a definição de um programa politicamente mais avançado para o terceiro mandato. A tentativa de capturar o comando econômico de Lula está em pleno movimento e as forças do capital procuram arrancar declarações e compromissos do candidato que tenham o significado de uma manutenção dos fundamentos da política econômica das últimas décadas.

Para tanto, é importante recuperarmos o contexto da vitória de 2002, após a divulgação da “Carta aos Brasileiros” e consequente indicação de Antonio Palocci e Henrique Meirelles para o Ministério da Fazenda (MF) e para o Banco Central (BC), respectivamente. Apesar da saída do ex-prefeito de Ribeirão Preto da pasta em 2006, o comando da política monetária seguiu intacto, sempre nas mãos do ex-presidente internacional do Bank of Boston e deputado federal eleito pelo PSDB/GO. Na verdade, tudo indica que Lula tenha cumprido seu acordo e aceitado que Meirelles fizesse o que bem entendesse à frente do BC e do Copom. Na prática, ofereceu a ele a independência que só viria por lei muitos anos depois, em 2021, e uma blindagem que converteu de forma bizarra o cargo de um subalterno no MF ao status de ministro. A intenção desse pedido de Meirelles era evitar cenas constrangedoras de eventual prisão, como há havia acontecido no passado, além de oferecer a certeza da impunidade graças ao acesso ao foro privilegiado.

Evitar os equívocos de 2003-2010

Pois esse foi o quadro que permitiu que a política monetária praticada ao longo dos oito anos do governo Lula fosse marcada pelo conservadorismo e pelo arrocho. Com a condição de representante do financismo em seu DNA, Meirelles assegurou os ganhos extraordinários da banca. Entre 2003 e 2010, o governo brasileiro promoveu a transferência de R$ 2,2 trilhões do Tesouro Nacional a título de pagamento de juros da dívida pública. A tabela abaixo nos expõe os dados anuais, com as informações corrigidas para valores de junho de 2022.

Tesouro Nacional – Despesa com Juros – 2003/2010 – (R$ bilhões)

Fonte: STN

Esse movimento representou uma enorme transferência de renda do setor público em direção ao sistema financeiro. O gráfico abaixo apresenta a porcentagem dos valores das despesas financeiras da União, por meio de pagamento de juros da dívida pública, em termos de sua participação no PIB brasileiro a cada ano, ao longo dos dois mandatos de Lula. A independência oferecida a Meirelles no comando da política monetária permitiu que a média anual destes gastos fosse de 4,5% do Produto brasileiro. Uma loucura!

Despesas com Juros – 2003/2010 ( % do PIB )

Fonte: STN

Um dos fatores que ajudam a explicar esse brutal processo de apropriação privada de recursos públicos refere-se à política monetária, por meio da fixação da taxa oficial de juros, a Selic. Essa é uma atribuição que cabe ao Comitê de Política Monetária, o Copom. Ocorre que o colegiado é composto exatamente pelos integrantes da diretoria do BC. Como boa parte da dívida pública é corrigida pela Selic, a definição de seu patamar também é fator que determina diretamente o montante anual de juros a ser despendido pelo governo federal. Durante os dois mandatos de Lula, a taxa oficial de juros esteve em um patamar bastante elevado, contribuindo para o aprofundamento do processo generalizado de financeirização de nossa economia e provocando o aumento significativo nos custos financeiros dos empreendimentos e da própria rolagem da dívida pública.

Ao longo de 2003 a 2010, a Selic apresentou uma média de 15,5% ao ano. O gráfico abaixo nos apresenta a evolução da taxa ao longo dos 76 encontros periódicos ocorridos do Copom. Apesar da tendência de queda da taxa observada ao longo do octênio, o nível médio geral foi bastante elevado. O período tem início com vários meses em que a Selic esteve acima de 25%. Em seguida, houve um processo de diminuição, mas ao longo dos 96 meses, apenas durante 10 deles a taxa ficou levemente abaixo de 10%. Assim, o país se manteve por um longo período como sendo o mercado com maiores taxas de retorno financeiro no mundo. Além do estabelecimento da taxa oficial em níveis muito elevados, há que se levar em conta a total complacência do órgão regulador e fiscalizador do sistema financeiro com a prática dos mais elevados spreads do planeta, além da permissão para cobrança de tarifas igualmente abusivas por parte de bancos e demais instituições do setor.

Taxa Selic – 2003-2010 (% ao ano)

Nos anos 2003, 2004, 2005, 2006, 2007, 2008, 2009 e 2010. Fonte: BC

Esse histórico de como os dois mandatos de Lula se comportaram no quesito taxa Selic e despesas do Tesouro Nacional com juros exigiria a declaração pública de forma clara, por parte do candidato, a respeito de quais serão seus compromissos a partir de 2023, caso venha assumir a Presidência da República mais uma vez. Como é de seu feitio, Lula tem externado posições dúbias sobre o assunto. Em alguns momentos, se manifesta a favor da necessidade de revogação da regra do teto de gastos. Mas, logo em seguida, deixa a entender que seria necessário substituir a EC 95 por outro dispositivo de responsabilidade fiscal.

Não à austeridade e ao superávit primário

Por diversas vezes, ele repete a fala equivocada de que teria aprendido economia com sua mãe, Dona Lindu, que lhe ensinou que não se pode gastar mais do que recebe. Ora, como político experiente e que mantém uma boa interlocução com economistas do campo progressista, Lula já deve ter aprendido que não cabem mais estas comparações entre a dinâmica da economia individual ou familiar e a de entes nacionais, a exemplo do Estado brasileiro. Este último tem à sua disposição instrumentos para intervenção na economia, tais como o lançamento de títulos da dívida público, a criação de impostos e a eventual utilização das reservas internacionais para gerar recursos de que tem necessidade para levar à frente suas políticas públicas.

Além disso, ele não perde a oportunidade de se vangloriar, afirmando que foi durante os seus mandatos que o Brasil apresentou os “melhores” resultados em termos de geração de superávit primário. Na tentativa de oferecer uma suposta garantia aos representantes do capital, em especial o financeiro, Lula deixa transparecer algum tipo de apreço por essa opção de política econômica, que é uma das marcas registradas da austeridade fiscal, apesar de ela já estar superada na maior parte dos próprios países do centro do capitalismo.

Caso vença as eleições e esteja despachando em seu gabinete a partir de primeiro de janeiro do ano que vem, Lula encontrará um país destruído por anos e anos de políticas de austeridade, além de todos os demais desastres levados a cabo por Bolsonaro e Guedes. A estratégia de enfrentamento das questões emergenciais, como a fome, a miséria e o desemprego, deve estar combinada com a implementação de um plano de reconstrução nacional. Isso significa restabelecer políticas públicas voltadas à maioria da população e promover programas de investimento em infraestrutura.

Ora, esse panorama não combina com a manutenção de políticas de geração de superávit primário ou de reafirmação de uma austeridade fiscal sem nenhum compromisso com a perspectiva do desenvolvimento. Lula deverá saber resistir às chantagens e ameaças do financismo, que já apresenta seu cardápio para manter a drenagem de recursos públicos a seu favor, por meio de uma Selic elevada e de um compromisso com metas draconianas na política fiscal não-financeira. Nesse quesito, espera-se que Lula 3.0 venha a se revelar substancialmente diferente de suas versões anteriores.

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