O autoritarismo social, segundo Marilena Chaui

Bolsonaro quer ser soberano “imorrível”, com terra e leis sob sua tutela. Não sendo monarca, opera com cinismo e violência. Seus seguidores expressam um Brasil privatista e hierarquizado – que elimina o outro quando não pode cooptá-lo

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Por Marilena Chaui, em A Terra é Redonda

Desde a Idade Média até a Revolução Francesa, um homem se tornava rei por meio de uma cerimônia religiosa na qual era ungido e consagrado pelo papa. A cerimônia possuía quatro funções principais: em primeiro lugar, afirmar que rei é escolhido por uma graça divina, sendo rei pela graça de Deus, devendo representá-lo na Terra (ou seja, não representa os súditos, mas Deus); em segundo, que o rei é divinizado, passando a ter, além de seu corpo humano mortal, um corpo místico imortal, seu corpo político; em terceiro, que o rei é Pai da Justiça, isto é, sua vontade é lei (ou como diz o adágio: o que apraz ao rei tem força de lei); em quarto, que é Marido da Terra, isto é, o reino é seu patrimônio pessoal para fazer dele e nele o que quiser.

No dia 6 de janeiro de 2019 (ou seja, no Dia de Reis do calendário cristão), na Igreja Universal do Reino de Deus, o pastor Edir Macedo ungiu e consagrou o recém-empossado presidente da república, Jair Messias Bolsonaro, declarando que este foi escolhido por Deus para governar o Brasil. Como Marido da Terra, Messias Bolsonaro está divinamente autorizado a devastar o meio ambiente; como Pai da Justiça, está divinamente autorizado a dominar o poder judiciário e a exterminar cidadãos por meio tanto de forças policiais como de grupos milicianos; e como corpo político imortal, está divinamente assegurado de que é indestrutível. Da Amazônia devastada a Jacarezinho destroçada, passando pelos cemitérios, com 450 mil mortos, reina Messias Bolsonaro, presidente da república pela graça de Deus.

A maioria de seus críticos afirma que se trata de um sociopata ou um psicopata. Essas designações, entretanto, pressupõem conhecimentos científicos que a maioria de nós não possui. Por isso, penso que um conceito vindo da ética seja o mais acessível porque todos nós somos capazes de conhecê-lo e compreendê-lo: o conceito de crueldade, que a ética considera um dos vícios mais terríveis, pois é a forma máxima da violência.

De acordo com os dicionários vernáculos, violência é: 1) tudo o que age usando a força para ir contra a natureza de algum ser (é desnaturar); 2) todo ato de força contra a espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém (é coagir, constranger, torturar, brutalizar); 3) todo ato que conspurca a natureza de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade (é violar); 4) todo ato de transgressão contra aquelas coisas e ações que alguém ou uma sociedade definem como justas e como um direito (é espoliar ou a injustiça deliberada); 5) consequentemente, violência é um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão e pela intimidação, pelo medo e pelo terror.

A violência é a presença da ferocidade nas relações com o outro enquanto outro ou por ser um outro, sua manifestação mais evidente encontrando-se no genocídio e no apartheid.

Assim sendo, podemos indagar: haveria algo mais violento e mais cruel do que a fala emblemática do presidente da república – “E daí? Não sou coveiro” – justificando o descaso diante da morte de seus governados, a desmontagem do SUS em plena pandemia, os cortes das verbas para a saúde, a recusa da compra de vacinas, a defesa de algo potencialmente mortal como a cloroquina, o inominável auxílio emergencial de R$ 150,00, e a recusa de condenar as empresas que usam trabalho escravo, infantil e de idosos? Haveria algo mais cruel do que, perante famílias enlutadas e mergulhadas na dor, fazer carreata de motocicletas no Rio de Janeiro, festejando a morte e o sofrimento alheios?

A maioria dos críticos de Messias Bolsonaro se refere às suas atitudes perante a pandemia com o termo “negacionismo”. Embora não seja incorreto, me parece um termo muito suave para caracterizá-las, podendo ser tomado simplesmente como o gosto pela ignorância e pela estupidez. Penso que iremos ao fundo dessa treva se designarmos suas atitudes e discursos como ódio ao pensamento. Por que? Porque a marca essencial do pensamento é a distinção entre o verdadeiro e o falso enquanto as falas de Messias Bolsonaro concretizam aquilo que Theodor Adorno denominou cinismo, isto é, a recusa deliberada de distinguir entre o verdadeiro e o falso, fazendo da mentira a arte de governar.

A exposição do cinismo está evidenciada a olho nu pela CPI da covid-19 e pela inacreditável declaração presidencial de que as nações indígenas são responsáveis pelo desmatamento da Amazônia. No caso específico da educação, esse ódio vem se exprimir na ideologia da Escola sem Partido, nas perseguições a professores e pesquisadores que levantam a voz contra a barbárie, nos cortes de verbas para a educação fundamental, para as universidades públicas e para as agências de fomento à pesquisa, cortes que são expressão política da frase, também emblemática, de Paulo Guedes: “os programas sociais dos governos anteriores permitiram que até o filho do porteiro fosse para a universidade”.

Podemos indagar porque a crueldade e o cinismo não são considerados por boa parte da população como o núcleo definidor da governança bolsonarista. Ou por que, no caso da pandemia, seguindo os passos do governante, muitos não percebem a si mesmos como violentos ao recusar o isolamento social e o uso de máscara, tornando-se agentes potenciais da morte alheia, portanto, assassinos. Podemos responder dizendo que Messias Bolsonaro e sua corte podem exibir-se como crueldade ou violência nua porque, no Brasil, a existência da violência é negada no momento mesmo em que é exibida. Refiro-me à produção de imagens da violência que ocultam a violência real e a procedimentos ideológicos que a dissimulam.

Comecemos pelas imagens usadas para falar na violência:

– fala-se em chacina e massacre para referir-se ao assassinato em massa de pessoas indefesas, como crianças, moradores de comunidades, encarcerados, indígenas, sem-terra, sem teto;

– fala-se em indistinção entre crime e polícia para referir-se à participação de forças policiais no crime organizado;

– fala-se em guerra civil tácita para referir-se ao movimento dos sem-terra, aos embates entre garimpeiros e índios, policiais e narcotraficantes, aos homicídios e furtos praticados em pequena e larga escala e para falar dos acidentes de trânsito;

– fala-se em vandalismo para referir-se a assaltos a lojas, mercados e bancos, a depredações de edifícios públicos e ao quebra-quebra de ônibus e trens do transporte coletivo;

– fala-se em fraqueza da sociedade civil para referir-se à ausência de entidades e organizações sociais que articulem demandas, reivindicações, críticas e fiscalização dos poderes públicos;

– fala-se em debilidade das instituições políticas para referir-se à corrupção nos três poderes da república;

– fala-se em desordem para indicar insegurança, ausência de tranquilidade e estabilidade, isto é, para referir-se à ação inesperada e inusitada de indivíduos e grupos que irrompem no espaço público desafiando sua ordem.

Essas imagens têm a função de oferecer uma imagem unificada da violência: chacina, massacre, vandalismo, guerra civil tácita, indistinção entre polícia e crime e desordem pretendem ser o lugar onde a violência se situa e se realiza; fraqueza da sociedade civil e debilidade das instituições políticas são apresentadas como impotentes para coibir a violência, que, portanto, estaria localizada noutro lugar e não nas próprias instituições sociais e políticas. Ora, justamente porque se trata de uma imagem e não de um conceito, nela permanece oculta a própria origem da violência.

Passemos aos procedimentos ideológicos que a dissimulam:

– procedimento da exclusão: afirma-se que a nação brasileira é não-violenta e que, se houver violência, esta é praticada por gente que não faz parte da nação (mesmo que tenha nascido e viva no Brasil). Trata-se da diferença entre um nós-brasileiros-não-violentos e um eles-não-brasileiros-violentos;

– procedimento da distinção: distingue-se entre o essencial e o acidental, isto é, por essência, os brasileiros não são violentos e, portanto, a violência é acidental, um acontecimento efêmero, uma “onda”, uma “epidemia” ou um “surto” localizado na superfície de um tempo e de um espaço definidos;

– procedimento jurídico: a violência fica circunscrita ao campo da delinquência e da criminalidade, o crime sendo definido como ataque à propriedade privada (furto, roubo, depredação) seguido de assassinato (latrocínio). Isso permite, por um lado, determinar quem são os “agentes violentos” (de modo geral, a classe trabalhadora e, nela, os negros) e, por outro, legitimar a ação policial contra a população pobre, os sem-terra, os negros, os indígenas, os moradores de rua, os favelados e afirmar que a existência de crianças sem infância decorre da “tendência natural dos pobres à criminalidade”;

– procedimento sociológico: fala-se em “onda” ou “surto” de violência como algo que acontece num momento definido do tempo, aquele no qual se realiza a “transição para a modernidade” das populações que migram do campo para a cidade e das regiões mais pobres para as mais ricas, causando o fenômeno temporário da anomia, no qual a perda das formas antigas de sociabilidade ainda não foram substituídas por novas, fazendo com que os migrantes pobres tendam a praticar atos isolados de violência que desaparecerão quando estiver completada a “transição”;

– procedimento da inversão do real: o machismo é considerado proteção à natural fragilidade feminina; o racismo, proteção contra a natural inferioridade dos negros, indígenas e orientais; a repressão contra os lgbtq+, proteção natural aos valores sagrados da família; a desigualdade salarial entre homens e mulheres, entre brancos e negros, indígenas, orientais como compreensão da superioridade natural dos homens brancos com relação aos demais humanos; a destruição do meio ambiente é propalada como prova de progresso e civilização; e assim por diante.

Conservando as marcas da sociedade colonial escravista e patrimonialista, a sociedade brasileira é marcada pelo predomínio do espaço privado sobre o público. É fortemente hierarquizada em todos os seus aspectos: as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades que reforçam a relação de mando-obediência.

O outro jamais é reconhecido como sujeito, tanto no sentido ético quanto no sentido político, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade e muito menos como cidadão. As relações, entre os que julgam iguais, são de “parentesco” ou “compadrio”, isto é, de cumplicidade; e, entre os que são vistos como desiguais, o relacionamento toma a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação; e, quando a desigualdade é muito marcada, assume a forma da opressão.

Podemos, portanto, falar em autoritarismo social como origem e forma da violência no Brasil. Situação, agora, ampliada e agravada pela política neoliberal, que não faz senão aprofundar o encolhimento do espaço público dos direitos e o alargamento do espaço privado dos interesses do mercado ao desviar o fundo público, destinado aos direitos sociais, para financiar o capital, de tal maneira que tais direitos são privatizados ao serem transformados em serviços vendidos e comprados no mercado, aumentando exponencialmente a divisão social e a desigualdade das classes sociais.

Eis porque a pandemia expõe, para além de todo limite admissível, a ferida que consome nossa sociedade, isto é, realização da luta de classes pela polarização máxima entre a miséria absoluta das classes exploradas e a opulência absoluta da classe dominante (estupidamente imitada por uma parte da classe média), cujo poder não esconde seu próprio cinismo, que se exprime no pleno apoio ao governante coveiro, miliciano ungido e consagrado pela graça de Deus.

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