Rafael Braga: 5 anos de injustiça

Símbolo de uma justiça criminal seletiva que superencarcera jovens negros e de favelas, o caso do ex-catador de latas difere dos demais apenas pelo contexto de sua injustiça flagrante. Entenda em que pé encontra-se o caso que evidenciou a situação de milhares de pessoas como ele

Reportagem de Luiza Sansão

A injusta prisão do ex-catador de latas Rafael Braga Vieira completou cinco anos neste 20 de junho. Em prisão domiciliar para o tratamento da tuberculose que contraiu no sistema prisional, ele completou 30 anos em janeiro, em meio à saga que teve início no contexto da grande manifestação que levou um milhão de pessoas às ruas do centro do Rio de Janeiro em junho de 2013.

Em abril do ano passado, a 39ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ) condenou-o a 11 anos e três meses de prisão por tráfico e associação ao tráfico de drogas — sendo seis anos e nove meses por tráfico e quatro anos e seis meses por associação. A sentença refere-se ao processo iniciado em 12 de janeiro de 2016, quando Rafael encontrava-se em regime aberto com uso de tornozeleira eletrônica havia pouco mais de um mês e foi preso com novo flagrante forjado.

Hoje, o Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH), responsável pela defesa do jovem, aguarda a posição do Ministério Público sobre o recurso de embargos infringentes, que permite que a decisão seja reanalisada e alterada. A expectativa é de que Rafael seja absolvido da acusação de associação ao tráfico e a pena pela condenação por tráfico seja revista. Só que não há como prever quando o MP se posicionará, segundo a defesa.

Rafael Braga no carro em que foi levado para casa, no dia em que deixou o Sanatório Penal, em Bangu, para tratar tuberculose em prisão domiciliar. | Foto: Luiza Sansão

Mas as violências e injustiças que vitimam Rafael não tiveram início naquele 20 de junho em que seu nome passou a representar o símbolo da seletividade do sistema penal. Jovens com o perfil de Rafael têm seus direitos violados desde o momento em que chegam ao mundo, muitas vezes com a violência obstétrica que mulheres negras e faveladas sofrem no momento do parto.

As violações continuam, ao longo da vida, com a dificuldade ou impossibilidade de acesso à educação, à saúde, à cultura, à moradia e alimentação dignas — direitos fundamentais negados a pessoas como Rafael e sua família, por aquele que tem o dever de garanti-los: o Estado, maior violador.

Favela na Penha, Zona Norte do Rio, onde vive a família de Rafael Braga. | Foto: Luiza Sansão

Últimas etapas do processo

O DDH protocolou, em janeiro, os embargos de declaração contra o acórdão (decisão em 2ª instância) da 1ª Câmara Criminal do TJ-RJ, que manteve a condenação de Rafael. Recurso que tem como objetivo sanar contradições, omissões ou pontos que não estiverem suficientemente claros em uma determinada sentença, os embargos declaratórios foram negados em fevereiro.

Em março, a defesa entrou com os embargos infringentes medida que pode resultar em alteração no resultado do julgamento. O procedimento cabe quando a decisão dos desembargadores em 2ª instância não é unânime, como quando o recurso de apelação à sentença condenatória foi negado pela 1ª Câmara Criminal do TJ-RJ, em dezembro de 2017.

Na ocasião, o desembargador Marcos Basílio apresentou voto divergente com relação às colegas Katya Monnerat (relatora) e Sandra Kayat, que negaram o recurso. Basílio absolveu Rafael pelo crime de associação ao tráfico, reduzindo a pena para seis anos de reclusão e 600 dias-multa. Ele entendeu que, conforme alegado pela defesa do ex-catador, não há nenhuma prova de que o acusado estivesse associado a ninguém.

Em função da divergência de Basílio, será julgada a questão da condenação por associação e a dosimetria da pena aplicada no caso do tráfico. Assim, ele pode ser absolvido na acusação de associação e ter a pena reduzida na acusação por tráfico.

Rafael na casa de sua família. | Foto: Luiza Sansão

Resumo do caso

Rafael foi preso injustamente, sob a acusação de portar material explosivo quando levava apenas dois frascos lacrados de produto de limpeza — em 20 de junho de 2013, quando um milhão de pessoas tomou a região central da capital fluminense para protestos cuja motivação o então catador de latas desconhecia.

O jovem negro, pobre, morador de favela e analfabeto foi preso como se pretendesse usar como “coquetel molotov” — que ele sequer sabia o que era — um frasco plástico de desinfetante Pinho Sol e outro de água sanitária da marca Barra, na manifestação que ele não sabia por que estava acontecendo.

Para ele, “não são só 20 centavos” e outras frases cunhadas em cartazes e palavras de ordem contra os governos do estado e do país naquele junho não faziam o menor sentido. Ele não sabia sequer quem era o governador do Rio ou o prefeito da cidade na qual ele sempre ocupou apenas a margem.

Recolher latas e outros materiais recicláveis pelas ruas movimentadas do Centro era o mais perto que ele chegava da visibilidade — que era nenhuma, até ele se tornar símbolo da seletividade do sistema penal brasileiro, com seu rosto estampado em muros por toda a cidade.

Tornou-se o único preso condenado no contexto das manifestações de junho de 2013, quando pessoas que participaram dos protestos chegaram a ser presas, sendo posteriormente libertadas.

Azulejo que homenageia Rafael Braga no muro da casa de sua família, em favela na Penha, Zona Norte do Rio. | Foto: Luiza Sansão

Em 12 de janeiro de 2016, o ex-catador estava em regime aberto, com uso de tornozeleira eletrônica, havia pouco mais de um mês, quando foi preso novamente sob acusação de tráfico de drogas e associação ao tráfico, com base na versão dos policiais que o abordaram.

Ele caminhava da casa de sua mãe para uma padaria na favela onde vive sua família, no complexo da Penha, zona norte do Rio, quando policiais militares da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) local abordaram-no violentamente e o conduziram a um beco, onde o agrediram com socos no estômago, apontaram-lhe um fuzil e o ameaçaram de diversas formas para que ele delatasse traficantes da região, pois, do contrário, iam “jogar arma e droga na conta” dele, conforme contou Rafael ao depor no dia dos fatos e também em audiência no TJ-RJ posteriormente — versão também contada por uma testemunha que assistiu a cena da janela de sua casa.

Conduzido à 22ª Delegacia de Polícia (Penha), ele se deparou com 0,6 g de maconha, 9,3 g de cocaína e um rojão, cujo porte lhe foi atribuído pelos policiais que o prenderam, levando-o a ser autuado por tráfico de drogas, associação para o tráfico e colaboração com o tráfico.

O TJ-RJ o condenou, em abril de 2017, a 11 anos e três meses de prisão por tráfico e pagamento de R$ 1.687 (mil seiscentos e oitenta e sete reais), conforme decisão do juiz Ricardo Coronha Pinheiro. Movimentos populares realizaram uma série de protestos contra a prisão do jovem, debatendo a seletividade da Justiça contra negros, pobres e favelados.

    Rafael Braga no dia em que deixou o Sanatório Penal, em Bangu, para tratar tuberculose em casa. | Foto: Luiza Sansão

O pedido de habeas corpus sustentado por sua defesa foi negado no dia 8 de agosto pelo TJ-RJ. Um novo pedido, liminar, quando Rafael já estava com tuberculose, foi novamente negado pelo TJRJ no dia 31 de agosto.

Tendo contraído tuberculose na prisão, ele esteve internado no Sanatório Penal de Bangu, tendo em setembro iniciado tratamento em prisão domiciliar.

O recurso de apelação contra a sentença que o condenou a 11 anos e três meses de prisão foi negada em dezembro. Os embargos de declaração impetrados em janeiro foram negados em fevereiro e ainda não há uma posição sobre os embargos infringentes impetrados em março, o que pode ocorrer a qualquer momento.

Abaixo, todas as matérias que produzi sobre o caso, em ordem cronológica:

O primeiro e único condenado das manifestações de junho de 2013

Preso injustamente desde 2013, Rafael Braga volta a trabalhar fora da prisão

Rafael Braga é preso com novo flagrante forjado, diz advogado

Rafael Braga volta à prisão após audiência de custódia

PM se contradiz ao depor contra Rafael Braga, preso nas manifestações de junho de 2013

Segundo PM a depor contra Rafael Braga contradiz colega

“Mandaram eu abrir a mão, botaram pó na minha mão, me forçando a cheirar”, revela Rafael Braga

Mobilização pela liberdade de Rafael Braga ganha seis países além do Brasil

Advogados de Rafael Braga afirmam que Juiz nega direito à ampla defesa do ex-catador de latas

Sarau mobiliza moradores de favela em apoio a Rafael Braga no Rio

Rafael Braga é condenado a onze anos de prisão

Defesa de Rafael Braga entra com recurso de apelação à sentença de condenação

Julgamento de habeas corpus para Rafael Braga é adiado

Por 2 votos a 1, Tribunal de Justiça decide manter Rafael Braga preso

Rafael Braga é internado sob suspeita de ter contraído tuberculose

Rafael Braga contraiu tuberculose, confirma advogado

TJ nega pedido para Rafael Braga tratar tuberculose em casa

Rafael Braga poderá tratar tuberculose em casa

Rafael Braga deixa prisão e sorri: ‘Quero agradecer todo mundo que luta por mim’

“Não quero passar por isso mais”, diz Rafael Braga sobre prisão

TJ julgará recurso que pode reverter condenação de Rafael Braga

TJRJ mantém condenação de Rafael Braga

Rafael Braga, 30

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8 comentários para "Rafael Braga: 5 anos de injustiça"

  1. Marilene Ssnsão disse:

    Não podemos deixar passar o tempo sem que reivindiquemos a liberdade desse moço, para viabilizar a recuperação de sua saúde física e mental.

  2. Marilene Ssnsão disse:

    Não podemos deixar passar o tempo sem que reivindiquemos a liberdade desse moço, para viabilizar a recuperação de sua saúde física e mental.

  3. marcelo disse:

    oi, excelente texto, poderia fazer a gentileza de me passar a referência para eu poder citá-la?

  4. marcelo disse:

    oi, excelente texto, poderia fazer a gentileza de me passar a referência para eu poder citá-la?

  5. Maria Rita Py Dutra disse:

    Olá,
    Sou Maria Rita Py Dutra (71), curso Pós Doutorado em Educação na UFSM e durante o desdobramento do caso Rafael Braga Vieira acompanhei, engajei-me nas manifestações que aconteceram na minha cidade, contribuindo com material escrito para o jornal local (Diário de Santa Maria). Gostaria de saber qual a situação de Rafael Braga Vieira, no momento. Continua em domiciliar? Não progrediu de medida? Participarei de um evento no curso de Serviço Social, pediram que eeeeeu falasse sobre oportunidades desiguais entre brancos e negros. Penso falar sobre o caso Rafael Braga Vieira e a seletividade da justiça brasileira. Fico no aguardo.
    Atenciosamente
    Maria Rita Py Dutra

  6. Importa? disse:

    É impressionante como vocês adoram defender bandido. Condenado a 11 anos por tráfico de drogas é vítima da sociedade agora? Se poupem

  7. Excelente artigo! Importante destacar que os pedidos relacionados a prisão domiciliar baseado na cotaminação do preso por Covid-19 se insere nos requisitos do artigo 318, inciso II, do Código de Processo Penal.

    Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
    I – maior de 80 (oitenta) anos; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
    II – extremamente debilitado por motivo de doença grave; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
    III – imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
    IV – gestante a partir do 7o (sétimo) mês de gravidez ou sendo esta de alto risco. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
    (Revogado)
    IV – gestante; (Redação dada pela Lei nº 13.257, de 2016)
    V – mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos; (Incluído pela Lei nº 13.257, de 2016)
    VI – homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos. (Incluído pela Lei nº 13.257, de 2016)
    Parágrafo único. Para a substituição, o juiz exigirá prova idônea dos requisitos estabelecidos neste artigo. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
    Art. 318-A. A prisão preventiva imposta à mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência será substituída por prisão domiciliar, desde que: (Incluído pela Lei nº 13.769, de 2018).
    I – não tenha cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa; (Incluído pela Lei nº 13.769, de 2018).
    II – não tenha cometido o crime contra seu filho ou dependente. (Incluído pela Lei nº 13.769, de 2018).
    Art. 318-B. A substituição de que tratam os arts. 318 e 318-A poderá ser efetuada sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 deste Código. (Incluído pela Lei nº 13.769, de 2018).

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