Tu Youyou, retrato da China e suas contradições

Outras Palavras abre coluna sobre país decisivo. No primeiro texto, a Nobel de Medicina, o sistema de Saúde semi-privatizado e os planos para nova indústria farmacêutica

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“Outras Palavras” abre coluna sobre país cada vez mais decisivo para futuro do planeta. No primeiro texto, a Nobel de Medicina, o sistema de Saúde semi-privatizado e os planos para nova indústria farmacêutica

Por Fernanda Ramone

A edição deste ano do Prêmio Nobel de Medicina com a laureação de Tu Youyou, farmacóloga chinesa de 84 anos, surpreende. Oferece reflexões interessantes sobre a linha de premiações dos últimos cinquenta anos, uma relação de descobertas que lembram a disputa espacial da Guerra Fria e cenários de ficção científica. A cada ano os prêmios concedidos traziam embutidos o uso de tecnologias sofisticadas que nos levaram à realidade de mudanças genéticas, genética molecular, transplante celular e células tronco rumo a um entendimento cada vez mais distanciado da correlação entre indivíduo e seu organismo-corpo.

A premiação deste ano altera o rumo desta marcha, enfatiza a presença da China neste ambiente de reconhecimento da medicina, além de todos os outros espaços onde o país já se inseriu. E ao fazê-lo, registra pela primeira vez sua presença na lista do Nobel a partir da essência de sua sabedoria milenar, a Medicina Tradicional Chinesa (MTC), que se fundamenta na manutenção da energia vital através de práticas físicas, comportamentais e dietas, de modo a evitar a manifestação de doenças. Uma vez enfermo, a base antroposófica da MTC é aplicada.

Sua origem remonta ao período do surgimento das primeiras dinastias chinesas, há mais de dois mil anos. Ao propor a cura da malária — uma doença parasitária associada a países pobres, que mata a cada ano 500 mil pessoas – a partir do princípio ativo de uma planta, a artemisinina, e ser reconhecida por isso, Tu Youyou nos sugere a origem voltando ao natural e o estado de constantes paradoxos que sempre envolvem a China.

Tu vem mostrar ao mundo a complexidade de seu país de origem. Por um lado, é uma antiga defensora da MTC, formada em farmácia e escolhida por Mao Ze Dong, nos idos da Revolução Cultural, para liderar um projeto secreto militar pela cura da malária, numa época em que o país não mais desenvolvia pesquisas científicas e a doença ganhou status endêmico vitimando mais soldados vietnamitas do que na guerra contra a invasão norte-americana.

Por outro lado, a premiação de Tu oferece um contraponto para o atual cenário da saúde na China. Outro paradoxo chinês é que a saúde pública não é gratuita, neste país de dois sistemas. A prática vigente nas áreas rurais é a existência de um valor anual destinado a consultas médicas e um sistema de reembolso parcial para tratamentos e medicamentos. O governo arca em geral com 50% a 70% dos custos, desde que o atendimento seja realizado nas cidades rurais. Quando o paciente migra para as áreas urbanas, a porcentagem do reembolso é menor.

Neste cenário das diferenças entre regiões urbana e rural, e considerando que há pelo menos cinco anos a população urbana chinesa ultrapassou a rural e que houve o crescimento notório do poder aquisitivo, em especial da classe média, o cidadão chinês tem optado pela contratação de serviços privados de assistência médica – deixando para trás o antigo hábito de poupar o dinheiro de toda uma vida para o caso de emergências médicas. Não por acaso, entre as vinte maiores e mais lucrativas empresas chinesas listadas no ranking da Forbes de 2015, duas delas são seguradoras. A Ping An of China Insurance e a China Life Insurance ocupam respectivamente 8ª e 9ª posições na lista e as primeiras posições são ocupadas por bancos estatais chineses seguidos por uma petrolífera e uma operadora de telecomunicações — também estatais.

É inusitado pensar que as seguradoras desbancaram, por exemplo, construtoras ou empresas automobilísticas; e perceber que a seguradora com melhor desempenho – Ping An – não é uma empresa estatal (A China Life Insurence, sim, pertence ao Estado). Em comum, estas empresas operam de forma megalômana, organizadas em conglomerados, subsidiárias e mais subsidiárias. Em terra de antigos mandarins, a importância dada à palavra “subsidiária” no léxico do idioma é de considerável destaque e bastante presente na vida cotidiana das providências simples.

As subsidiárias inseridas nesta estrutura de funcionamento foram estrategicamente planejadas e caracterizam o modelo de desenvolvimento implementado nos “tigres asiáticos” e por posteriormente também na China. E neste país a alusão do papel das subsidiárias pode ser estabelecido entre a relação público-privado e a incontestável presença soberana do Estado, regulando e estabelecendo a participação de cada uma das células no funcionamento do todo. O fato de a principal seguradora do país não ser estatal sinaliza o modus operandi do governo chinês, através de acordos tácitos. No caso da Ping An of China Insurance, dado o fato de que hoje o governo ainda não consegue suprir as necessidades de acesso básico ao sistema de saúde, ter uma empresa privada que execute este papel é conveniente para acalmar as animosidades e desviar para o setor privado as eventuais insatisfações e cobranças de sua enorme população.

O bom desempenho das seguradoras conduz para o cenário mais amplo e intrincado das políticas, dos investimentos, das regulações em andamento e da realidade na China hoje na área da saúde. Os planos do governo para o setor, já sutilmente anunciados nas propagandas do seu décimo terceiro plano quinquenal (2016-2020), incluem uma série de investimentos (inclusive no exterior, via porcentagem do lucro das multinacionais farmacêuticas presentes no país). Também envolve planos para que sua indústria farmacêutica conquiste autonomia e atenda inteiramente seu atrativo mercado consumidor – atualmente o segundo maior do mundo.

Os chineses pretendem em especial, depois do anúncio do Nobel, regulamentar e adotar os padrões internacionais para que passem a exportar não apenas o ingrediente farmacêutico ativo, em cuja produção já tornaram-se líderes mundiais desde 2012. Querem passar a fabricar, para o mercado externo, os medicamentos da medicina tradicional chinesa. As iniciativas incluem ainda cooperações com outros países para o desenvolvimento de vacinas, tratamentos e curas para doenças que vão do câncer ao ebola – no caso desta última o anúncio do desenvolvimento do primeiro medicamento contra a doença foi anunciado ano passado.

O objetivo da China é tornar-se referência mundial em tratamentos, práticas, terapias e vir a ser um dos principais destinos de turismo médico. Antes disso, o país enfrentará as demandas e necessidades pelo acesso básico à saúde de sua própria população que vive os efeitos de um crescimento econômico sem precedentes – como os causados pela poluição atmosférica, que mata por ano aproximadamente 1,6 milhão de pessoas, em função de problemas no coração, nos pulmões e acidente vascular cerebral.

Estas doenças até podem ser tratadas por meio da Medicina Tradicional Chinesa, como proposto pela base antroposófica, mas também sucumbiram ao distanciamento de sua própria tradição. A premiação de Tu Youyou enaltece para o mundo uma prática que paradoxalmente vem perdendo espaço em seu próprio país, enquanto adentra aos cenários de ficção científica.

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