Por que uma nova esquerda é necessária

Vitória de Trump abala projeto neoliberal, mas leva ao poder direita autoritária. Quem lutará, agora, por justiça, igualdade e soberania popular?

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Por Christophe Ventura | Tradução: Inês Castilho | Imagem: arte de rua no Cairo (2011)

A eleição de Donald Trump – cuja primeira explicação é a rejeição, no seio das classes populares, de Hillary Clinton, a encarnação do pior conluio entre dinheiro e política – confirma o “momento populista” mundial [1].

O que se percebe por trás desse “momento” intensamente político?

O deslocamento de nossas democracias. Em direção a quê? A regimes tipo “autoritários identitários” [2], se a esquerda não trabalhar, pelo menos nas lutas que a caracterizam, em favor de uma “radicalização da democracia” [3], que esteja a serviço de três ideias: soberania, igualdade e justiça. Três marcadores progressivamente abandonados pela esquerda realmente existente, em especial nos Estados Unidos e na Europa.

Populismo de direita: “entre nós, e todos contra nós”

Não há esperança, mas uma nova gestão social e política do desespero. Esta é, no fundo, a magia obscura proposta pelo populismo de direita. Compreendamos que o sujeito político chamado Donald Trump cristaliza e condensa a energia incandescente e negativa de numerosas cóleras populares – especialmente a das categorias socioeconômicas devastadas pelos efeitos do livre mercado e da desregulação financeira durante o ciclo Reagean-Bush-Clinton-Obama/Hillary. Bruto, revoltado e violento, o levante Trump ocorre quando as populações dominadas e abandonadas à tirania dos donos do mundo não veem alternativas a sua condição. Elas assumem, em resposta, uma relação de desconfiança legítima, não somente diante da representação política, mas do próprio sistema político. Donald Trump é o produto negativo de suas exigências democráticas e sociais desprezadas e massacradas por muito tempo, especialmente pelos partidos – os democratas, neste caso – que supostamente as representariam. Essas populações encontraram, na falta de uma esperança, o meio passageiro de assustar o sistema introduzindo, no coração de seu quartel-general, uma granada de mão pronta para ser detonada. E isso, por meio dos próprios mecanismos eleitorais desse sistema que permite que se possa tornar presidente sem haver ganho a maioria dos votos.

Donald Trump é um objeto político sofisticado e bem sucedido. Ele conseguiu incendiar as paixões populares, construir um “povo” no meio da população, isto é, uma nova aliança sociopolítica formada além das filiações partidárias tradicionais, que funcionavam até então em favor do equilíbrio de uma ordem política e social com a qual a maioria da sociedade ainda consentia.

A vitória de Donald Trump indica a ruptura desses equilíbrios e uma recomposição. O populismo – ainda que de direita – indica e encarna uma transição entre um desequilíbrio e um novo equilíbrio, uma nova ordem da sociedade. O alcance e a natureza do que se desenhará no decorrer desse processo depende das orientações desse populismo, de sua capacidade de mudar a economia, manter a coesão de seus apoiadores, produzir instituições que acabarão por superar e mudar as relações de força na sociedade.

No caso de Donald Trump, a aliança forjada encontrou seu cimento eleitoral no ressentimento contra todas as elites – especialmente a esquerda intelectual empoleirada em seu conforto universitário e midiático – e uma classe política “Coca-Cola – Pepsi-Cola” que pratica as mesmas políticas e defende os mesmos interesses. Uma classe política incapaz de resolver os problemas concretos das pessoas, pela simples e boa razão de que esses problemas não podem ser solucionados aceitando o quadro e as estruturas da globalização econômica e financeira – especialmente o livre mercado, que desindustrializa os países do Norte, proletariza os do Sul, devasta o ambiente e oferece liberdade sem restrições ao capital e às finanças. Tudo isso impossibilita qualquer controle democrático do poder econômico e mina toda possibilidade de políticas de redistribuição social.

Brexit, fracasso dos acordos comerciais, vitória de Trump: as revoltas cegas [orig. “jacqueries”] contra a globalização e seus poderes mundiais e nacionais propagam-se e se sistematizam. As sociedades gritam, de modo cada vez mais violento, “não” à globalização, território econômico e financeiro sem equivalente político e democrático possível.

Donald Trump foi quem – cúmulo da ironia – colocou no coração da campanha (assim como Bernie Sanders) as questões econômicas e sociais e conseguiu encarnar a vontade de um poder público que volte a controlar a economia – posição oposta ao consenso entre os dois partidos de governo.

Trump venceu sobre as cinzas do “establishment” de seus próprio campo e dos anos Obama, que desembocaram em promessas não mantidas – especialmente junto às classes populares –, guerras intermináveis, agravamento das desigualdades sociais e pauperização crescente de dezenas de milhões de pessoas nos Estados Unidos.

Trump não é, ele próprio, um ganhador da mundialização? Sem dúvida alguma. Mas ganhou as eleições afirmando que, no seio do reino em perigo, desafiava a política do rei e de seus principais vassalos. Afirma que é preciso ajustar as leis fundamentais da globalização aos interesses de seu país – separado aqui do “business” americano – mal conduzidos desde 2008 (e desde o início dos anos 2000, com o crescente poder da China e de outros novos atores mundiais). Como? Refreando o ritmo e o avanço da globalização financeira e econômica – para não mais sofrer suas consequências e desordens. Posicionando os Estados Unidos, a tempo, no coração da competitividade fiscal mundial (reduzir os impostos das empresas para atrai-las e fixá-las no país). Criando as condições para um novo ciclo geopolítico de retirada e reequilíbrio estratégico.

Deste ponto de vista, forte ressonância com as orientações lançadas pelos discursos da nova primeira ministra britânica Theresa May. Trinta e cinco anos depois de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, um novo pulso anglo-saxão de dimensão mundial parece estar sendo preparado. Desta vez, visa conduzir a globalização a um rumo cujos marcos são perceptíveis. Maior controle estatal sobre o poder financeiro e bancário. Criação de mastodontes capitalistas em todos os setores estratégicos da economia e das indústrias por meio da multiplicação de processos de fusão/aquisição. Protecionismo (em plano nacional mas igualmente no quadro dos clubes de afinidades do país diante dos outros). Fechamento das fronteiras nacionais para gerir os fluxos migratórios mundiais. Em outras palavras, uma reorganização da sociedade – não um recuo, mas uma reorganização – para reposicionar os Estados Unidos (e o aliado britânico) aos postos avançados da concorrência capitalista mundial… que coloca o mundo inteiro contra a parede.

Se confirmado, esse projeto beneficiaria os eleitores de Trump? Ou os que, na França e em outros países europeus, votam ou são tentados a votar nos candidatos populistas de direita? Não, porque o novo presidente americano – ou Marine Le Pen na França – não têm como projeto a emancipação do “povo” que eles criam e mobilizam. O que pretendem é estabelecer controles e promessas de um alívio cosmético, obtido graças à repressão interna de outras partes da população (especialmente os imigrantes).

Seu projeto é, ao fim das contas, a radicalização do sistema que eles pretendem desafiar. As forças “populistas” de direita – a Frente Nacional francesa, de Marine Le Pen, oferece a matriz mais avançada da Europa – conseguiram reconstruir um povo mobilizando um discurso do tipo “eles querem o pouco que temos; eles não vão ficar”. Esse discurso procura, com sucesso, mobilizar alguns setores da sociedade contra outros (notadamente os imigrantes e os pobres) em período de escassez de trabalho e de recursos do Estado para financiar o sistema social — porque esses Estados tornaram-se prisoneiros de seu endividamento nos mercados financeiros, de suas escolhas fiscais e de suas políticas de austeridade.

Redistribuir a riqueza e conceder benefícios sociais, sim, mas em pequenas quantidades e para os nacionais. Como? Reposicionando o país a seu favor na competição internacional. Mantendo a exploração econômica dos trabalhadores que vivem ali (mas praticada por um patronato nacional revitalizado). Reduzindo os direitos dos grupos mais deprotegidos da população (estrangeiros, pobres, mulheres etc). Eis, em resumo, o projeto de sociedade proposto por cada um dos “populismos” de direita.

De qualquer modo, cada um entre si todos contra todos. Agindo assim, o populismo de direita elabora um discurso mobilizador da defesa das identidades tradicionais (a cristandade, a região, a comunidade étnica etc.) — que ele ajuda a manter – para unificar os setores aos quais ele se dirige contra a “elitocracia”.

Esse projeto é vão pois não modifica as causas das dificuldades das populações e contribui com a sobrevivência de um sistema em perigo que, in fine, recorre aos populistas de direita para que sejam mais um dos tantos corta-fogos que o defendem – especialmente diante dos riscos de desordem social. Hoje os migrantes, os estrangeiros instalados. Amanhã as mulheres, os sindicatos, as associações. Cada um de nós monitorado por sua tela, seu telefone, seu computador.

De qualquer forma, o triunfo de Donald Trump nos Estados Unidos não deixa de ser um novo golpe contra a esquerda em todo o mundo. Tragicamente, o magnata novaiorquino toca exatamente em seu oposto: justiça, igualdade e soberania não são possíveis nos limites da globalização financeira e econômica. Todos os meios que permitiram à esquerda, antes da globalização, lutar por seua objetivos no quadro de um capitalismo industrial submetido a contole nacional estão ultrapassados, no cenário de um capitalismo altamente financeirizado e pós-industrial

Populismo de esquerda: (re)construir um “povo pela emancipação”

Que políticas a esquerda atual propõe para enfrentar a despossessão global das sociedades? Por meio de que estratégias e mediações ela concebe reconstruir seu “povo” – ou seja, uma nova aliança formada a partir de sujeitos políticos e sociais heterogênios e com múltiplas aspirações? Estas questões constituem desafios e concentram diversas dificuldades.

Mas é preciso ter em mente que a energia da cólera captada pelos populista de direita é líquida. Ela pode produzir outros efeitos. Outro “populismo” e outras identidades coletivas são possíveis Abandonar o medo imposto por aqueles que determinam as regras do jogo e ditam os termos da batalha intelectual permite enxergar que a noção de “populismo” é, antes de tudo, expressão de uma nova disponibilidade para a política. O “populismo” não é, em si, nem de esquerda, nem de direita; nem reacionário, nem progressista. Ele torna-se uma coisa ou outra, ao redefinir e reorganizar as fronteiras e as clivagens políticas anteriores, apagadas (élimés) e desviadas (dévoyés) pelo consenso e a prática dos partidos instalados no centro do dispositivo de poder.

Para citar a frase famosa do geógrafo anarquista Elisée Reclus (1830-1905) – “o homem é a natureza que toma consciência de si mesma” –, poderíamos afirmar que “o populismo é a política (re)tomando consciência de si mesma”. O “populismo” traduz um estado de tensão na organização da sociedade. É expressão dos “murmúrios” das populações subalternas. Revela uma situação de difusão (diffusion”) em toda a extensão da sociedade, de descontentamento diante do bloqueio dos canai tradicionais por onde transitavam normalmente das demandas e exigências lançadas às instituições (partidos, imprensa, sindicatos, empresas etc). O “populismo” não é um projeto político em si e não pode sê-lo. É um processo de mobilização por meio do qual se reconstroem, na ordem política, uma cidadania de intervenção refratária ao mundo como ele é e uma estratégia de conquista do poder.

É por esta razão que cabe à “esquerda” a responsabilidade de não renunciar à construção de um povo pela emancipação, e de fecundar com suas melhores tradições o “populismo” que está em formação.

Nesse proceso, a defesa e promoção da soberania popular será o núcleo de uma batalha singular. Tal ideia de soberania foi literalmente desvertebrada devido ao fato de que a maior parte das questões econômicas e monetárias que determinam a vida concreta e quotidiana dos indivíduos é tratada for a do campo da deliberação coletiva.

No quadro da economia globalizada, defender a soberania popular pode servir a dois projetos antagônicos. A serviço das forças da ordem estabelecida – e de seu cão de guarda de extrema direita – esta defesa constitui uma técnica de desumanização [4] da sociedade, para favorecer a eclosão de um projeto autoritário que estimulará múltiplas competições no interior dos povos. Significará dividi-los e discipliná-los, num cenário de luta global contra as outras “unidades-países” do sistema.

Mas esta mesma ideia de soberania popular pode tornar-se chave para a humanização da sociedade, da economia e do mundo. Para isso, é preciso um projeto e um discurso voltados à construção política de um país melhor – e não à mera administração daquele em que vivemos sob as lógicas atuais. Para isso, é preciso retomar os princípios de justiça social e de inclusão dos setores hoje subalternos, por meio de políticas que promovam a redistribuição efetiva de riquezas.

Relocalizar a economia na esfera da soberania política [5], a serviço da justiça e da distribuição de riquezas é o mapa do caminho para um “populismo” de esquerda. A perspectiva de um populismo de esquerda induz a construção de um discurso capaz de unir vaários setores em torno dos paradigmas do comum, da justiça e da redistribuição como motores de prosperidade coletiva e individual. A estes paradigmas deve se remeter uma estratégia de ações pacientes, capaz de articular a esquerda politica, social e intelecual em torno das demandas múltiplas e específicas que partem da sociedade.

Trata-se da agir a favor do desenvolvimento de solidariedades concretas com as populações e de pensar, a partir daí, as mediações (daí o papel da liderança) e os instrumentos que permitam aumentar os níveis de organização popular, tendo em vista a (re)construção progressiva do povo da emancipação

O povo é uma aliança. Cabe a nós construí-la.

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