O quê as revoltas de 2013 têm em comum

Na Turquia, Brasil, Bulgária e Peru o que se assemelha não é ideologia – mas arquitetura de convocação das multidões

 Manifestantes protestam em Lima, no Peru. Milhares de estudantes universitários que marcharam em direção ao prédio do Congresso Nacional contra um projeto de lei que, segundo eles, viola a autonomia universitária

Milhares de estudantes protestam em Lima, no Peru, marcharando em direção ao prédio do Congresso Nacional contra um projeto de lei que, segundo eles, viola a autonomia universitária

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Por Bernardo Gutiérrez, na Al Jazeera | Tradução: Marcos Camargo

Como o acampamento no parque Taksim de Istambul influenciou os protestos no Brasil? O surgimento repentino de os Indignados do Peru se explica como contágio regional? Existe algum ponto em comum nos protestos dos três países anteriores e as manifestações na Bulgária contra seu governo? Os analistas costumam buscar motivos concretos para explicar as revoltas dos últimos tempos. E transformam o diagnóstico inicial em tese irrefutável. Istambul se levantou para proteger o parque Taksim da mercantilização neoliberal. As urbes brasileiras se levantaram contra o aumento do preço do transporte. Os peruanos se indignaram frente a um governo que tentou distribuir cargos públicos de forma pouco transparente. Os búlgaros cercam o congresso durante semanas para protestar contra o aumento exagerado das faturas de água e gás e o conluio da classe política com grupos mafiosos. Mas ditas causas explicam as intensos protestos dos últimos meses?

Os motivos concretos nos apresentariam quatro rebeliões quase desconexas. Talvez poderíamos tentar unir as peças soltas da Turquia e do Brasil sob o prisma das cidades rebeldes das quais fala David Harvey, com a privatização do bem público como combustível da indignação coletiva. O desejo de uma democracia mais participativa, talvez, poderia ser comum aos quatro processos. No entanto, a lógica causa-efeito não explica revoltas não lineares nem dicotômicas. Não explica protestos plurais e transversais que se saem do eixo direita-esquerda. O ponto comum em todas as revoltas tem mais a ver com uma nova arquitetura de convocação e protesto, do que com componentes ideológicos ou motivos concretos.

O que as revoltas na Bulgária, Brasil, Turquia e Peru têm em comum? Em primeiro lugar, em todos os protestos os velhos mediadores (sindicatos, partidos políticos, grupos estruturados) são quase irrelevantes. No Brasil e na Turquia, nenhum coletivo social clássico influenciou nos chamados das primeiras manifestações. No Peru, a convocação que encheu as ruas de Lima nasceu nas redes sociais, listas de e-mails e grupos não ideológicos (1). E quando um jornalista insinuou a liderança da ativista de direitos humanos Silvia Santisteban, uma das pessoas que convocavam, a resposta foi clara: “Nós convocamos, não lideramos”.

Outro detalhe importante: as convocações iniciais de todas as revoltas se construíram em torna de causas concretas e de fácil adesão. Nos lemas, que funcionavam como o máximo comum divisor matemático, podiam conviver inclusive ideologias antagônicas. A união substitui à divisão; o “pró” ao “anti”. As torcidas de futebol de Istambul e de São Paulo desfilaram juntas nas ruas, esquecendo velhos rancores. E o “Não é por 0,20 centavos, é por direitos” (é mais que pelo aumento do transporte) das manifestações de Brasil funcionou como o “não somos mercadoria nas mãos de políticos e banqueiros” do 15M espanhol.

Por outro lado, o desencadeamento da violência policial, ignorada pelos grandes meios de comunicação e divulgado na internet, transformou as manifestações iniciais de Istambul e São Paulo no que John Robb denomina revoltas de código aberto (2). Revoltas corais, policêntricas, abertas, onde nenhum grupo consegue impor sua agenda. Protestos nos quais os próprios cidadãos se autoconvocam em rede. Protestos nos quais a autocomunicação de massas da qual fala Manuel Castells põe em dúvida os meios de comunicação e despedaça os consensos fabricados pelo Estado, a mídia ou o mercado.

Um estudo do núcleo Interagentes de São Paulo sobre os protestos de junho no Brasil (3) prova que o Movimento Passe Livre perdeu a liderança nas convocações e conversas em rede justamente depois da violência policial do dia 13 de junho. O incidente abriu espaço para muitas outras causas e mal-estares. Na histórica manifestação de 17 de junho (#17J ) no Brasil milhões de pessoas abarrotaram as ruas com um grito apartidário e cartazes plurais que ultrapassavam as petições iniciais contra o aumento do preço do transporte. Da educação à sexualidade, da saúde à transparência democrática. Tudo cabia no “Não é por vente centavos, é por direitos”.

A mesma coisa ocorreu nos primeiros dias do incipiente movimento #deringezi na Turquia. Após o uso de gás lacrimogêneo por parte da policia, a defesa de um parque se converteu na luta por direitos civis, por uma democracia mais transparente e por outro modelo econômico. #Direm (resistência) começou a se usar para muitas outras causas.

O estudo Tecnopolítica: A potência das multidões conectadas, de Javier Toret e o grupo 15Mdatanalysis do 15M inclui chaves teóricas sobre o que há de comum nas revoltas em rede: “Esta multidão conectada tem uma anatomia híbrida, física e virtual, na qual se destacam as identidades coletivas, possui forma de rede e a capacidade de produzir ativações emocionais, convertendo o mal-estar em empoderamento”.

O que as revoltas da Bulgária, Brasil, Turquia e Peru têm em comum? Outro ponto comum poderia ser a não destruição do código do poder. “Talvez a melhor subversão não é a de alterar os códigos em vez de destruí-los?”, escrevia o pensador francês Roland Barthes nos anos sessenta. As multidões conectadas, reunindo emoções, não destroem o código. Alteram-no. Remixam-no.

Fazer yoga na porta do Congresso búlgaro ou na câmara municipal ocupada em Niterói (Rio de Janeiro) – que ocorreu recentemente – pode ser mais revolucionário que tomar o poder. Celebrar uma assembleia horizontal numa câmara municipal ocupada – algo que ocorreu em dezenas de câmaras do Brasil – é uma ambiciosa alteração do código político. O mesmo ocorre no âmbito linguístico. Por acaso existe algo mais parecido à guerrilha semiológica que pregava Umberto Eco do que os mecanismos ativados pelas revoltas em rede?

Quando o governo turco chama os manifestantes de ‘chapullers’ (vândalos), a multidão se apropria do código, se autoproclama chapulling movement e cria a Chapull.tv. Quando a mídia brasileira chama os manifestantes de “vândalos”, a multidão ressignifica o termo vandalismo (“vandalismo é o que fazem com teu pai na fila do SUS”) e cria a ‘vândalos news’ (5).

Alterar, remixar, hackear. Virulizar. Os Indignados peruanos transformam a “repartija” (como se conheceu a tentativa de distribuir cargos políticos sem transparência) na ‘lagartija’, um ícone irônico para viralizar emocionalmente a convocação. Os búlgaros levaram melancias às portas do parlamento no 45o dia dos protestos. E o converteram em metáfora comum, em arma coletiva. Watermelom (диня, Dinya) soa similar a ‘dia’ (ден, den) e “ano” (година, Godina). Os comunistas governaram durante 45 anos. Os búlgaros rodearam o parlamento durante 45 dias. O país estava, então, maduro para uma mudança de ciclo. O ícone circula em redes emotivas, analógicas, digitais. E reforça o grito comum de “Stop mafia” que desde janeiro ressoa em toda a Bulgária contra a elite política que se reparte o poder com diferentes grupos monopolistas.

Como se não bastasse isso, todas as revoltas estão conectadas de alguma forma. Aquela bandeira brasileira na praça Taksim de Istambul ou o grito “Brasil vai ser outra Turquia” nas manifestações brasileiras serviriam de metáfora. Mas o estudo de redes (6) realizado por Interagentes de São Paulo contem uma prova: na convocação do primeiro ato contra o aumento do preço do transporte (6 de junio) de São Paulo houve dois perfis do Facebook da Turquia entre os dez mais influentes: Direm Gezi Parkı (7) e Recep Tayyip Erdoğam – Türkiye’nim Gururu (8). no caso do levante no Peru, a chave empírica da conexão poderia vir de um passado mais remoto: a hashtag usado no Twitter para mobilizar foi #TomaLaCalle, o mesmo que levou milhares de espanhóis às ruas em maio de 2011. Do #TomaLaCalle do 15M ao #VemPraRua (a hashtag mais habitual no Brasil), o fluxo das redes às ruas é um dos grandes aspectos comuns de todas as revoltas. Protestos que ultrapassam o formato de manifestação e compõem, como revela o estudo Tecnopolítica de Javier Toret, “um sistema rede mutante, com fronteiras móveis, híbrido, cyborg, um corpo coletivo que resiste ao tempo e que pode se estender no espaço”.

Pode ser que a revolução global não tenha feita nada mais de que começar. Pode ser que apenas possamos intuir seu fluxo imprevisível observando pequenos detalhes. Gestos, gritos, ícones, fotografias, streamings. “Eu não sou ninguém”, disse um dos membros do Movimento Passe Livre a um meio de comunicação brasileiro. Somos os 99%, gritavam as redes-ruas do Occupy Wall Street. “Somos uma nova horizontalidade que busca forma”, parecem sussurrar as ruas. Somos um desejo de democracia distribuída (9). Somos uma nova gramática social. “Somos parte de uma luta maior, de uma luta mundial”, como gritou uma multidão sem líderes no teto do Congresso Nacional brasileiro na madrugada do dia 18 de junho. (10)

O filosofo Peter Pal, descrevendo o que está acontecendo no Brasil, nos ajuda a entender melhor o protótipo da revolução em rede que sacode o mundo: “Talvez esteja (re)nascendo outra subjetividade política e coletiva, aqui e em outros pontos do planeta, para a qual carecemos de categorias. Mais insurgente; de movimento, mais do que de partido; de fluxo, mais do que disciplina; de impulso, mais do que finalidades; com um poder de convocação incomum, sem que isso garanta nada, muito menos que ela se transforme no novo sujeito da história”.

*Bernardo Gutiérrez é um jornalista e escritor espanhol, radicado em São Paulo. Participa, escreve e pesquisa sobre a chamada #GlobalRevolution. É o fundador da rede de inovação FuturaMedia.net. Participa na P2P Foundation. 

(1) http://www.larepublica.pe/31-07-2013/el-amanecer-de-los-indignados-peruanos

(2) http://globalguerrillas.typepad.com/globalguerrillas/2013/07/protests-everywhere-heres-why.html

(3) http://interagentes.net.br/2013/06/22/o-movimento-passe-livre-e-a-politica-na-era-informacional/

(4) http://www.uoc.edu/ojs/index.php/in3-working-paper-series/article/view/1878

(5) http://www.youtube.com/watch?v=JXp37zTYiX8

(6)http://interagentes.net/2013/07/11/cartografia-de-espacos-hibridos-as-manifestacoes-de-junho-de-2013/

(7) https://www.facebook.com/geziparkidirenisi)

(8) https://www.facebook.com/turkiye.gurursuz.degil

(9) http://pad.w3c.br/p/DemocraciaRealePoliticaDistribuidaJa

(10) http://www.youtube.com/watch?v=6_WOBGpFA4w

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4 comentários para "O quê as revoltas de 2013 têm em comum"

  1. raul milan disse:

    Uma coisa em comum que essas revoltas têm é de que sabem que os parlamentos e os governos não as representam mais, mas sim são meros gerentes das corporações econômicas e financeiras. Apontam para nós, que ainda somos ingênuos ou acomodados, que o sistema representativo tradicional apodreceu e está fedendo em todo o lugar e que nós que nos contentamos e aceitamos, que bastaria haver eleições para haver democracia estamos perplexos com esse nosso erro trágico e grosseiro. Deveríamos ter defendido veementemente – democracia é poder popular, é controle social da mídia, do parlamento, é democracia direta. Democracia é aterrorizar a classe dominante, é o temor dos poderosos com as nossas inssurreições e com o que nós podemos fazer com eles e seus privilégios. Com dizem os anarquistas – Se votar mudasse alguma coisa, seria proibido.

  2. Gabi Juns disse:

    #direngezi em vez de deringezi ; )

  3. Luis Chaves disse:

    Pela primeira vez leio um artigo que ensaia uma comparação empírica e analítica sobre todas essas revoltas contemporâneas. Isso é muito importante. Geralmente o que vemos são textos que juntam e unificam todos esses movimentos naquele velho roteiro ideológico marxista: “movimentos anticapitalista que só evidenciam que este sistema está falido e o fim está próximo e o que ‘estou’ escrevendo e falando há anos faz sentido”.
    No mais, tem uma teoria social que está virando corriqueira, que fala muito de fluxos, híbridos, emoções, subjetividades, múltiplos, indefinidos etc. Têm um quê de niilismo, falam muito e definem pouco. O importante é que, apesar delas também se fazerem presentes por aqui, não dão o tom do artigo, que vale a pena a leitura!

  4. Tácio disse:

    Excelente artigo!

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