O microscópio e a câmera

Romance de Lima Lins tem, como protagonista, personagem às voltas com medos, onipresença da mídia, vida banal. Resta-lhe buscar, numa irmã desconhecida, alguma humanidade

Imagem de microscópio

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Novo romance de Lima Lins tem, como protagonista, personagem às voltas com medos, onipresença da mídia e vida banal. Resta-lhe buscar, numa irmã desconhecida, alguma humanidade

Por Haron Gamal

Crítica de 

João, o microscópio e a vida selvagem

Romance de Ronaldo Lima Lins

Editora 7 Letras, 196 páginas, R$ 39, disponível na internet

Logo no início do mais recente romance de Ronaldo Lima Lins, João, o protagonista diz: “Vou procurar o Dr. Adamastor, preciso de um checkup. Gostaria de viver mais algum tempo. Temo sofrer perturbações.” João, o microscópio e a vida selvagem (Editora 7 Letras, 190 páginas), portanto, inicia-se com um temor, uma preocupação, “O perigo? É o medo.” E João tentará de todos os modos superar os obstáculos que encontrará pela frente, tentará vencer seus medos. Assim como aprendeu a vencer as dificuldades devido à infância em meio à pobreza e à ausência do pai, ele utilizará todas as armas para, pelo menos, viver numa situação de equilíbrio. Mas nem sempre isso será possível. Os obstáculos, sempre os obstáculos.

Renunciando a qualquer tipo de perspectivas positivas, o romance apresenta a pedra angular da vida contemporânea, a desumanização. Assim como em outros romances do autor, não apenas a cidade com todo o seu aparato de violência e armadilhas, mas também a própria vida contemporânea, incluindo aqui a falsa comodidade oferecida pela tecnologização da cultura, mostrar-se-ão falaciosas. João ganhou do pai um microscópio quando criança, desse mesmo pai que logo depois o abandona e desaparece. Mas o garoto acaba vencendo. O presente (o microscópio) o estimula a ingressar no setor óptico, e João acaba tornando-se um próspero comerciante no ramo das lentes. Mas a felicidade soa fugaz ou, quando muito, lhe rende uma família estável, com mulher e filhos, ao contrário da vivida ao lado da mãe lavadeira.

É a vida selvagem, no entanto – como antecipa o próprio título –, que predominará na história e tentará, de todas as formas, aniquilar o personagem. Não é a primeira vez que essa questão aparece na obra de Lima Lins. Já num de seus primeiros livros, na verdade um livro sobre o teatro de Nelson Rodrigues, o autor antecipa o que lhe servirá de tema nas obras seguintes: a violência e os acidentes urbanos. Numa cidade que se adiantou na marcha para a modernidade, houve sempre descompassos entre o modo de vida dos seus habitantes e a avassaladora industrialização. O ser humano apequena-se à medida que as máquinas avançam. E não se pode dizer que elas estão aí para lhe facilitar a vida, porque não apenas veículos transformam-se em armas letais, mas também a violência se sofistica através de expedientes tão mortíferos como as armas de fogo. Não é raro que a cidade todos os dias ofereça o desagradável espetáculo da morte violenta, antes por atropelamento, agora pelas mãos de bandidos e por mecanismos de estado.

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Neste último livro, o autor embute na discussão a TV. Toda uma crítica velada à cultura de massa permeia o romance, sobretudo crítica aos programas em que os entrevistados são pessoas do povo, homens comuns utilizados pelo sistema, moídos numa máquina que lhes rouba o sumo atirando-os a seguir ao léu. É o capital a descobrir caminhos tormentosos mas lucrativos. A figura do apresentador está a perseguir João, até mesmo num dos bares onde toma cerveja após o expediente. O protagonista vai a um desses programas porque descobre que possui uma irmã, mas não sabe onde nem como encontrá-la, nem mesmo sabe de quem se trata. Não demora a perceber que tal atitude, imbuída de ingenuidade, será um ingrediente a mais a lhe estorvar a vida.

Interessante observar que esse jogo de perspectivas é o fiel da balança no romance. Assim como João observa no antigo microscópio, que mantém como relíquia, os seres pequenos que se agigantam sob as lentes, a vida contemporânea também se potencializa por trás das lentes das câmeras de TV, mas sob sua mira o ser humano, por paradoxal que pareça o conceito, apequena-se cada vez mais.

Outro ponto que o romance insinua é o papel do estado na vida dos cidadãos. Aquele que deveria ser o organizador da vida, o protetor, o conciliador, transforma-se no mais cruel dos inimigos, e se configura no espaço geográfico denominado cidade. João e um sócio possuem uma ótica, tentam ser honestos, praticam o comércio com ética e respeito ao consumidor mas, apesar de darem tudo de si para viver dentro da lei, são constantemente ameaçados por fiscais. Estes procuram nas menores causas encontrar algum suposto delito. Na verdade, o objetivo é extorqui-los. João precisa fazer amizade com pessoas de certo poder, tem de provar que é honesto para livrar-se de seus perseguidores.

Os obstáculos, que se afiguram no início como problemas de saúde, vão pouco a pouco se multiplicando por meio das mais requintadas e tortuosas formas, até que atingem o ápice na afirmação de uma organização social extremamente selvagem. A busca de João pela irmã pode ser lida como uma metáfora da busca por uma irmandade, ou humanidade, perdida.

A literatura de Ronaldo Lima Lins não é agradável, assim como também não pode ser agradável toda grande literatura. Literatura não é autoajuda nem autoengano. Adamastor, o médico que prescreve a João o tratamento, nada fala sobre a perspectiva de vida do paciente, porque sabe que toda cura, preservando o eufemismo, também é uma espécie de autoengano.

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