O Haiti sem a ONU: "órfão sem irmãos" novamente?

Termina missão internacional que Brasil liderou. Teve objetivos ambiciosos, mas desviou-se deles. Questão essencial é: que será do país, agora?

Operation unified Response

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Por Tadeu Morato Maciel, do projeto Brasil no Mundo

No dia 13 de abril de 2017, o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) decidiu encerrar sua missão de paz no Haiti, conforme Resolução 2350 (2017). Estabelecida em 2004, após uma série de conflitos armados e convulsões sociais em diversas regiões do país, e culminando na saída para o exílio do ex-presidente Jean-Bertrand Aristides, a Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (MINUSTAH) será finalizada em 15 de outubro de 2017. Os 2.358 capacetes azuis (de 19 nacionalidades) que ainda a compõem serão retirados de forma gradativa.

Uma nova operação será implantada imediatamente após o encerramento da MINUSTAH, a Missão das Nações Unidas de Apoio à Justiça no Haiti (MINUJUSTH), a qual deverá ser composta por sete unidades com aproximadamente 980 agentes e 295 oficiais. Entre os principais objetivos desta operação constam o fortalecimento da Polícia Nacional Haitiana (PNH), a garantia do Estado de Direito e o monitoramento, análise e relatoria da situação dos direitos humanos. Segundo a Resolução 2350 (2017), a MINUJUSTH está autorizada, caso necessário, a proteger civis em caso de ameaça iminente de violência física, conforme suas capacidades e em coerência com o seu mandato.

Embora a MINUSTAH não estivesse no rol das operações mais caras da ONU (custo aproximado de US$ 346 milhões ao ano), o seu encerramento aponta para uma tendência da instituição em favor de operações menores (a nova embaixadora norte-americana na ONU, Nikki Haley, tem destacado a necessidade de rever todas as 16 operações de paz vigentes). Em março de 2017, por exemplo, o Conselho de Segurança já havia reduzido o tamanho de sua operação de paz na República Democrática do Congo (MONUSCO), diminuindo o contingente de 19.815 militares para 16.215. Da mesma forma, deverão ser reduzidas ou finalizadas as missões na Libéria, Costa do Marfim e na região de Darfur, no Sudão.

Apesar dos quinze atuais membros do Conselho de Segurança terem decidido pelo encerramento da MINUSTAH de forma unânime, o texto final da Resolução 2350 (2017) não esteve isento de críticas e controvérsias. Enquanto a representante dos EUA na ONU exaltava a inclusão do parágrafo 18, relacionado a novos esforços para o controle e responsabilização de atos ilegítimos cometidos por peacekeepers, o representante brasileiro, Mauro Vieira, esteve dentre os delegados que expressaram preocupação em relação a tal dispositivo. Para o Brasil (país que liderou os esforços militares da MINUSTAH), discussões sobre questões de comando e controle efetivo da tropa, recusa de militares em obedecer ordens, respostas inadequadas aos ataques contra civis, entre outros, não refletiam o desempenho predominante dos soldados da MINUSTAH e não haviam sido abordadas no “Grupo de Amigos do Haiti” (Brasil, Canadá, Espanha, Estados Unidos, França, a União Europeia e a Organização dos Estados Americanos, OEA e ONU). Além disso, os representantes da Federação Russa, Petr Iliichev, e da Bolívia, Sacha Llorentty, questionaram a referência feita pela Resolução ao Capítulo VII da Carta das Nações Unidas (implicando o uso da força), relativamente aos pontos operativos da MINUJUSTH.

Durante os últimos 13 anos a MINUSTAH não se mostrou como uma operação mais tradicional e pontual de peacekeeping. Ao contrário do que havia ocorrido em intervenções anteriores no Haiti, buscou-se implementar uma missão multidimensional e complexa, a qual prometia a garantia da segurança, restauração da justiça, o fortalecimento da democracia e a viabilização de projetos de cooperação internacional ao desenvolvimento. Além disso, o caso do Haiti não se encaixava nos modelos tradicionais de missões de paz porque não havia um conflito entre duas facções rivais com poder de fogo semelhante. Em consequência, durante a maior parte da missão os peacekeepers da ONU assumiram atividades vinculadas à ajuda humanitária/cooperação para o desenvolvimento e realizaram funções policiais de patrulhamento cotidiano, visando a “pacificação” e “conciliação” dos diversos atores sociais haitianos em um cenário de pujantes dificuldades socioeconômicas.

Após o fim da MINUSTAH, a nova força policial da ONU (MINUJUSTH) assumirá, no prazo de dois anos, esta tarefa de auxiliar o Haiti a se inserir “nos trilhos certos”, ajudando-o, principalmente, na formação e consolidação da Polícia Haitiana. Da mesma forma que a MINUSTAH instigava o debate sobre a atribuição de função de polícia aos militares, a MINUJUSTH demandará discussões sobre o inédito uso de policiais da ONU em missões de paz sem o simultâneo apoio militar. Tal opção se mostra como uma tentativa de diminuir os custos da presença da ONU em Estados considerados falidos, enquanto entende-se que não há plenas condições das forças policiais locais de patrulhar e garantir a “paz civil” em meio à miséria abissal na qual grande parte da população desses países está inserida.

O Brasil avalia como positiva tanto a experiência geral da MINUSTAH quanto a sua atuação em específico. Não obstante, uma evidente dificuldade da participação brasileira, a qual deve ser compartilhada aos demais membros da missão, foi a impossibilidade de efetivar a transição de uma ênfase em objetivos de segurança de curto prazo para a proeminência de objetivos de desenvolvimento a longo prazo. Desde o início da MINUSTAH diversos representantes da sociedade civil haitiana afirmavam que os projetos de desenvolvimento se limitavam a ações pontuais ou à privatização de empresas estatais, sem grandes intervenções estruturais vinculadas às reais necessidades locais, fazendo com que a pobreza extrema continue a assolar aquela população.

Além disso, destacam-se algumas polêmicas que envolveram peacekeepers da ONU, tais como acusações de abuso sexual infantil, uso de força excessiva, estupros, abandono de filhos que tiveram no país e a disseminação do cólera, deixando, desde 2010, mais de 9.500 mortos. Assim, a MINUSTAH não questionou as diversas formas de violência cotidiana ou da pobreza na ilha caribenha, pelo contrário, apresentou-se como forma de “gerir” alguns conflitos daquela sociedade, colocando-os dentro de níveis “aceitáveis”, de forma que não afetem a governança global vigente.

Segundo o ex-Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Antonio Patriota, até o início do século XX a primeira república negra, a qual inspirou diversos processos libertadores ao longo do século XIX, permanecia como um “órfão sem irmãos” na própria região onde se localiza. Após o anúncio de finalização da MINUSTAH, mais uma dentre as diversas intervenções internacionais que caracterizam a conturbada história haitiana, desenha-se para aquele país um cenário no qual ele tende a retomar o status de “órfão” em sua própria região. No soçobrar de mais uma intervenção internacional, resta à população haitiana continuar encarando de frente a permanência das dificuldades históricas que marcam o seu cotidiano.

 

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