No tempo dos "cones de silêncio"

O que o velho Agente 86, um seriado dos anos 1960, poderia dizer sobre a “nova” era de vigilância global

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Por J.R.Cabrera

Sempre gostei muito de assistir televisão. Passei parte da infância entre gibis, desenhos e seriados norte-americanos e japoneses. Continuo, ainda que muito mais seletivo, assistindo a filmes e séries produzidas pela indústria do entretenimento do Norte. Nem tudo é ruim: com alguma dose de senso crítico e bom humor é possível extrair coisas boas e divertidas das muitas séries que nos visitam diariamente.

Nessa história com a TV, suas séries e meu sofá nutri especial interesse por suspense e de ficção científica. Na década de 1990, conheci Arquivo X, cujos protagonistas – Fox Mulder (David Duchovny) e Dana Scully (Gillian Anderson) – tentavam desvendar mistérios que envolviam possíveis extraterrestres, conspirações governamentais, mutações genéticas e todo tipo de esquisitice. Desafiando o “bom senso” e a racionalidade dominante, iam indicando, a cada episódio, a rede de informações sigilosas que, ao mesmo tempo, encobria e favorecia uma estrutura de corrupção e de poder presentes nas instituições norte-americanas. Curiosamente, a série oscilava entre a denúncia do poder nefasto das agências sobre o governo ou a suspeita de que eram, elas próprias, o governo.

Quando se via em situações enigmáticas e sem solução aparente, o agente Mulder solicitava auxílio de um trio de nerds, muito nerds, experts em computação e espionagens que viviam reclusos, pesquisando tudo e todos. Sua intenção era clara: desfazer o novelo da teoria da conspiração. Estes personagens se autodenominavam Pistoleiros Solitários. Apareceram em 36 dos 202 episódios da série Arquivo X.

Em 2012, outra série de TV por assinatura passou a explorar a paranoia do controle e vigilância exercida pelo governo dos EUA sobre todos os cidadãos, através de recursos digitais ilimitados. Person of Interest descreve a vida de um sofisticado nerd bilionário. Howard Finch (Michael Emerson), que criou, a pedido do governo, uma máquina capaz de detectar atos e comportamentos suspeitos que. Monitorando todos os contatos, conversas e ações, seria capaz de prevenir e desbaratar qualquer possibilidade terrorista.

O mais impressionante são os mecanismos de espionagem, maquiagem de dados e interferência sobre a vida privada utilizados pelos protagonistas. Nada, ou quase nada daquilo é ficção. Tudo está disponível por aí, usado e manipulado à vontade. Um cidadão londrino que trafega pela cidade, de carro ou à pé é fotografado cerca de 400 vezes por dia. O computador em que escrevo transmite informações minhas para uma série de sites de companhias nacionais e estrangeiras, que monitoram nossas ações, transformando-as em informações mercantilizadas. Assim como a TV vende nosso potencial consumidor aos anunciantes, a web capta nossa personalidade e utiliza-a sem escrúpulos.

Ampliaram-se, além disso, as formas de extração de trabalho. Cada trabalhador tem na tecnologia de informação um multiplicador de suas atividades. Ainda que existam meios de limitar tais ações, a liberdade associada às inovações tecnológicas, idealizada em Marx e Rosa Luxemburgo, transformou-se em seu inverso. Amplia o tempo de trabalho e multiplica sua produtividade sendo forma e conteúdo de um novo aprisionamento.

As potencialidades dessa maquinaria tecnológica têm sentidos antagônicos. Exploram e captam imagens do dia a dia e fazem da web campo propício para os contatos, a crítica, a construção coletiva, a mobilização explosiva. Ainda que a tecnologia per si não seja neutra, representando sempre os interesses de seus desenvolvedores corporativos, nada impede meios alternativos de diálogos entre máquinas, pessoas e redes. Mas aí voltamos ao princípio: há como não ser monitorado e minhas ideias e pensamentos circularem apenas entre aqueles que eu permito? Como preservar a privacidade, no sentido amplo do termo, num ambiente onde a comunicação é dependente dos meios privados – telefonia, internet – orientada para o lucro e que trata seus usuários como clientes e não como cidadãos? Qual o papel do Estado e da sociedade civil nessa articulação, considerando que a informação, a despeito de seu atual caráter mercantil, é um direito?

No final do século XX, depois do ataque avassalador do capital sobre as empresas estatais e os serviços públicos, orientados pelo Consenso de Washington, Atílio Borón1 apontava as contradições – supostamente insuperáveis – entre Estado e mercado.

Na década de 1990 o Estado havia sido satanizado e o mercado era elevado à categoria de salvador da pátria, única atividade capaz de retomar a iniciativa econômica diante da inoperância burocrática dos Estados afundados na crise. Para uma abordagem inovadora acerca desse movimento vale ver um filme de Naomi Klein, A doutrina do choque.

Borón sustentava que o mercado orienta-se por uma lógica sempre hierárquica, respeitando os organogramas empresariais, enquanto os Estados são mais democráticos, na medida em que as decisões se assentam numa premissa ascendente. O mercado por sua própria estrutura competitiva se orienta para a exclusão daqueles que não conseguem competir, ao passo que um Estado é mais democrático se se torna capaz de garantir direitos e cidadania a um conjunto cada vez maior de indivíduos. O mercado move-se pelo lucro, pela garantia de segurança e felicidade aos acionistas. Esse é seu leit movit. O Estado democrático orienta-se, ou deveria se mover, em direção à justiça em suas ações, o que, na maioria das vezes colide com os interesses do mercado. Por fim, Borón indicava que os direitos, sob ataque neoliberal transitam cada vez mais da “pólis ao mercado”, sendo seu exercício submetido aos ditames do cálculo econômico, da privatização dos direitos, chamados de “privilégios” e da mercantilização. Um Estado é cada vez mais democrático quando amplia seus direitos sociais tirando-os do âmbito do mercado, universalizando-os e provendo-os àqueles que não poderiam tê-los por estarem de fora do mercado consumidor.

Embora Borón trabalhe numa abordagem global, citando princípios e contradições entre o funcionamento do capitalismo e os princípios democráticos nada impede que a exploremos a partir do tema da informação.

As lógicas que se contrapõem nesse episódio da espionagem estão além do tema da soberania, cuja importância é central, e envolvem os conflitos apontados acima. O controle descendente exercido pelo grande capital obstaculiza sua democratização. O compartilhamento ascendente e democrático põe uma cunha na porta que insiste em fechar.

A exclusão daqueles que não se submetem a essa lógica – wikileaks, megaupload etc – contraria a ideia de inclusão horizontal e democrática. Justiça e lucro também se contrapõem quando pensamos a informação enquanto direito e o papel das teles em não tratar a todos como iguais (ver Antônio Martins2).

Por fim, pólis e mercado se digladiam diante das definições acerca dos direitos e dos mercados. Cidades digitais contrariam interesses e ampliam a cidadania. Informação plural também. Aqui reside importante campo de batalha. O tema do discurso de Dilma Roussef na Assembleia Geral da ONU tem força, mas deve ir além. Explorar as contradições do capitalismo e da democracia é uma possibilidade para muito além da ONU. Exige usar a democracia contra o próprio capitalismo3, mas isso é tarefa de muitos.

Sobre a informação e a internet, a criação de uma gestão global e democrática, como um marco regulatório, deve explicitar ainda mais esse conflito, apontando a necessidade de ir além. Enquanto não temos um amplo e forte movimento de massas capaz de garantir que a informação seja tratada como direito humano e que os Estados possibilitem meios democráticos para a gestão, o acesso e a construção de um novo paradigma de comunicação, talvez devamos nos inspirar no personagem criado por Mel Brooks em 1965, Get Smart, o agente 86, e utilizarmos preventivamente e provisoriamente um Cone do Silêncio para garantirmos nossa privacidade.

1BORON, Atílio A. Os “Novos Leviatãs” e a polis democrática: neoliberalismo, decomposição estatal e decadência da democracia na América Latina. In: GENTILI, Pablo e SADER, Emir (Org.). Pós-neoliberalismo II – que Estado para que democracia? Petrópolis, RJ: Paz e Terra, 1999

3WOOD, Ellen M. – Democracia contra o capitalismo: a renovação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo, 2010.

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Um comentario para "No tempo dos "cones de silêncio""

  1. Paulo S. disse:

    Boa análise. Os links estabelecidos com Marx e Rosa Luxemburgo ajudam a compreender o processo que vem se desenvolvendo desde após a primeira guerra. Muito difícil imaginar uma linha de resistência capaz de deter tudo isso. Pudemos observar os acontecimentos desde a ‘primavera árabe’ e a capacidade da mídia em manipular, desviar a atenção e como se organiza agora em torno do processo do chamado ‘mensalão’, atraindo a atenção das pessoas tendo em vista as eleições de 2014. Controle, manipulação e poder.

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