Levante, novos capítulos

Chove uma chuva fininha e sem fim. Não penso nas mulheres que amei. Penso humildemente na sensação antiga, ancestral, de que as quedas lavavam um pouco os pecados do mundo

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Por Aírton Paschoa | Imagem: Oswaldo Goeldi

LANÇAMENTO:

Levante, livro mais recente de Aírton Paschoa, será lançado em 23 de Junho (6ª-feira), em São Paulo, às 19h

No Ateliê do Gervásio, espaço que também abriga Outras Palavras

Rua Conselheiro Ramalho, 945 – Bixiga (mapa) – Metrô São Joaquim (600m) ou Brigadeiro (1km)

Leia aqui a primeira série de pílulas do livro

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Castigos de roda

Cai, cai, bobão,/ cai, cai, bobão,/ caí. Penso nas tantas emoções estéticas que me abalaram ao longo da vida e nenhuma delas se iguala à primeira, à ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar. E cirandamos todos, pra frente a maioria, uns pra trás, de lado alguns e um ou outro em círculos, como nós, à roda. Quantas vezes ainda não me pego à roda do sono e das sônias! Mas, pedoamordafiliadedeus, não me levem a mal! Amei-as, as meninas, amei-as, as meias também, tipo soquete, e as sapatilhas e as saias e as tranças e as tiaras e as fitas e as franjas e os rabos e os rebola-bola-você-diz-que-dá-que-dá, e eu fingindo não dar bola/ cantigas pra boi dormir, enfim, e que acabaram, bem ou mal. Acabaram, acabaram as rodas, acabaram os suplícios, e o boi dorme. Mal. Apneia, opiniam os doutores, auscultando mal o que faz faltar ar. Querem que durma de máscara. Só me falta ser preta… Antes o boi da cara cheia.

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Valsa da dor

E pensar, meu eterno chorão, que houve tempo em que elas se abandonavam a nosso pasto! Bem sei que os delíquios eram menos obra dos beijos que dos espartilhos de tirar o fôlego, mas sabe bem você que há coisas que os cavalheiros calamos… Tempos de valsa, lembra? condenada aliás pela figuração que era da posse, e consentida, pois não ceder como ao encanto da rotação, quem duvida que celeste?

Tempos depois…

Nem precisa dizer que a dança que tantas cabeças virou, virou rito brega, de formandos, debutantes, pombinhos e demais penates. Tem coisa de mais debochada, ou de brochar, Heitor, que valsar com o velho? Posse então, nem se fale! Elas dançam, transam e transitam… Pasto só?

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Valse mélancolique

A Emils Darzins

As cordas convocam, a flauta tenta seguir, ensaia uns passos sopridos o oboé, ou uns sofros pavidos, sabe lá o batuta, mas é a clarineta quem se eleva e domina a sublevação. Delicadas, certas cordas disfarçam os pruridos em recatado pizzicato, enquanto as trompas abafam o enrosco. Uma hora, ressentido, o corne inglês irrompe do córner e interrompe o claro império, insuflando as cabeças de vento, as levianas flautas, alheias à serpentina a encantar os fagotes, a qual teima em reaver o reino. As trompas ameaçam, ameaçam e charamelam, mal se ouve o tímpano, que não é bobo nem bombo, mas as cordas se agitam de novo, parece que divisando o tutti, quando a clarineta, em arranque derradeiro, manda-as pras cordas e, já sem fôlego, os últimos suspiros exala. Acaba assim, melancólica, a falsa — valsa, digo. E tem gente que cala, tem gente que chora, tem gente que ri, tem gente que rege, tem gente que reage, tem gente que range, tem gente que geme, até brava gente tem que brada bis.

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Chouriço

Antigamente ia todo mundo pro beleléu. Aliás ia tudo pra lá. Beltrano foi pro beleléu, o Brasil foi pro beleléu, a saúde foi pro beleléu, a escola foi pro beleléu, a professorinha foi pro beleléu, o samba foi pro beleléu, o futebol foi pro beleléu… O belo Leo deve ter ido pro beleléu. E hoje? pra onde vai todo mundo? Tirando o lugar a que remetemos tanta gente que insiste em não ir, e que costuma retribuir com igual gosto, continuamos sem saber pra onde vamos. Já como vamos, continuamos sabendo desde sempre, eu, você, Jácomo, todos nós, ao léu, belo léu! Mas quando vai pro beleléu o próprio beleléu, anuncia o que o tristonho passamento? Confesso que não sei, suspeitando embora que têm que ver com o choriço os sinos, os hinos, até os pinos, ou a falta deles, que também já foram pro saco.

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Gostinho

Foi sempre assim, pra que nos culpar ou desculpar. Não, não faltou tempo, você sabe, tempo se cria, faltou a gente, o mundo atrai e distrai. Sim, eu sei que se a gente tivesse, sei lá, tivesse ficado assim, ia faltar o mundo, e quando falta o mundo, quem não sabe, falta tudo. É até pecado querer mais. Apesar de tudo, de tudo que não sabemos direito o que é, mas sentimos a pressão, ou impressão. Tem gente que não tem nem isso, esse gostinho, esse restinho. Vamos comer, vai.

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Passacalha

Ao Webern

Pensei em dizer que era você que ia passando, depois pensei melhor e achei que era eu que passava, depois pensei melhor ainda e vi que era a gente passando. Seja. Pensei em dizer que era eu que ia na frente, depois pensei melhor e achei que era você que seguia adiante, depois pensei melhor ainda e vi que era a gente rente. Seja. Pensei em dizer que era você que virava a cabeça, depois pensei melhor e achei que era eu virando a cabeça, depois pensei melhor ainda e vi a gente de cabeça virada. Seja. Pensei em dizer que eu, que você, que a gente, e passou alguém ou a sombra de alguém ou a sobra de alguém e calei, ou veio a calhar. Seja, pensei.

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Fogueira

Muita coisa chama, sereia, nave, vela, fogueira, e cada qual que bote mais lenha. Eu boto uma manhã que faz manha, um realejo, um céu de joelhos, que é o que restou de verde, e até um olhar maduro, vai, que chama, mas é melhor apagar.

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Poema só para Manuel Bandeira

À Rita,

que corrigiu o poeminha

Chove. Chove uma chuva fininha e sem fim. Não penso nas mulheres que amei, eu que deixei de fumar, nem nas mulheres que me amaram, eu que deixei de fumaçar. Penso humildemente na sensação antiga, ancestral, de que as quedas lavavam um pouco os pecados do mundo. Mas a chuvinha, fina e sem fim, talvez queira apenas lembrar que nunca fez senão se precipitar.

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morro

suave subir desce e sumir

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