Em Panidron, as utopias ciganas e as nossas

Numa peça de rua, o drama dos removidos pelo “progresso”, mas também a busca de um novo viver junto e um futuro em que possamos respirar

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Por Heyk Pimenta, editor do blog Entre Águas

Encenada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (URFJ) em 2014, Panidron busca financiamento coletivo para nova temporada. É possível contribuir com valores a partir de R$ 10, aqui.

Panidrom é uma peça de trajeto, as cenas acontecem se formos atrás delas, como é habitual em companhias como o Teatro da Vertigem (BR3, Bom Retiro 958 metros) e a companhia São Jorge de Variedades (Barofonda). São dez atores em cena, seis músicos, um carro, mais diretores e dramaturgos, captadores de áudio e vídeo, iluminadores, fotógrafos, fazedores de gifs.

Para a construção de uma represa, um bairro será alagado. Seus moradores serão removidos e outros bairros do entorno já estão embaixo d’água. Um time padrão de desgraçados, crianças sem família, mendigos, loucos, prostitutas, usuários de drogas, famílias incompletas e gente sozinha dentro e fora das barrigas são atraídos e guiados a uma terra de promessa, seu nome é Panidrom.

Dentre os integrantes da peça está gente que vem testando a rua como suporte e objeto, como experimentação de formas de viver, saber, fazer e prazer. Gente como as artistas visuais Cassia Lyrio e Gaya Rachel e os músicos Guilherme da Mata e Renan Montuno. Um stêncil de Cassia e Gaya que é encontrável pelas ruas do Rio traz duas mulheres de mãos dadas, pretas, velhas e pobres, cada uma com um facão na mão. Estão prontas e não têm medo. Essas duas mulheres estão também nos muros da Praia Vermelha. Marenka, uma das personagens da peça, poderia ser uma delas.

É interessante pensar também que de alguns anos pra cá a música e a cultura ciganas passaram a fazer parte da vida de alguns grupos das grandes cidades. A trilha da peça, vista ao vivo e em cortejo, tem matriz cigana. Não há como não ver nela a banda que acompanha os ladrões de banco nas primeiras cenas de Underground – Mentiras de Guerra, de Emir Kusturica. O nome Panidrom (estrada para a água) é uma referência ao filme Latcho Drom (rota segura) de Tony Gatlif, que mostra a diáspora do povo cigano desde a Índia até a Espanha e a transmissão dessa cultura às crianças. Como os ciganos, os habitantes de Panidrom não encontraram ainda seu lugar, são os eternamente removidos. Os atingidos por barragens, os perseguidos por grileiros urbanos e rurais, os removidos para os grandes eventos, as favelas incendiadas.

Marenka tem olheiras, carrega sacos de lixo, está grávida. Desconfiada e gritalhona, mas contente, segue o cortejo dos removidos, Peixe, Melanias, Puta, Zoé e sua irmã, Homem Chamado Cavalo. Um carro de som e um picareta profissional com ares de apresentador de programa de auditório é o chefe da excursão. Em nome da construção da represa, Lopez, o picareta, promete moradia, pilates, churrasco e vida mansa em Panidrom. Com ares de líder messiânico, congrega e convence os removidos, eles o seguem cantando, a banda faz parte dessa promessa.

Essa diáspora (cujo único porto aceitável é a miragem bíblica, a terra prometida, o sonho de bonança e leite e mel) me remeteu a outra peça montada na mesma praia, entre as universidades UNIRIO e UFRJ. Xambudo – outro lugar nenhum, texto de Aderbal Freire Filho e direção de Ticiano Diógenes, veio a público em 2010. Xambudo é um país. Num acontecimento mágico, uma ilha se desprende do continente e passa a navegar no rio da Prata, entre Brasil, Argentina e Uruguai. Um homem, uma mulher e um cachorro escrevem uma constituição e exigem reconhecimento de seu país recém fundado. O bordão que guardo de Xambudo: “o realismo fantástico é a saída política para a América Latina”. Panidrom-Xambudo, utopias. A diferença é que uma é autonomeada e autônoma (o único homem de Xambudo desafia os presidentes Menen, FHC e Sanguinetti a um duelo mano a mano, quem vencer decide se Xambudo é ou não um país), a outra é uma “mentira de guerra”. Panidrom é murada. Não tem casas, nem nada, “só areia seca como o céu da boca dos bichos”, diz Melanias. Não tem água, nada, os moradores começam a juntar cuspe num balde, “temos que economizar em tudo”, diz Marenka.

Assim como o stêncil, a música cigana, as peças de rua, a utopia e o como viver junto são temas recorrentes nas conversas e nas propostas artísticas que presencio por aí. Todos querem saber se ainda há forma de respirarmos tranquilos um dia. Em Panidrom não é diferente, é êxtase que carrega as pessoas atrás do carro de som, dançam como quem renasce, como quem conhece a fome e a sacia.

O que vem é o desastre, é mentira, não há terra boa, nem água, nem teto. Lopez, o picareta de auditório, tenta fugir mas é pego e feito prisioneiro. Começa a sobrevivência. Em assembleia, os novos moradores desse lugar sem casas decidem construir ali seu futuro, agregam o prisioneiro e começam as obras.

Januária guarda um saco de terra da casa antiga, guarda bonecas, flores, caixas de pessoas que podem voltar, podem sentir falta daquilo. Januária é a sobrevivente que quer montar a memória dos seus, como os sobreviventes dos campos de concentração, cheios de óculos e anéis nos bolsos, queriam levar adiante a história das vítimas, outras pessoas precisavam saber o que aconteceu. Januária é Yuri Firmeza enchendo o MAR de escombros dos removidos do Morro da Providência, de removidos do Morro do Castelo. Januária é a memória de todos os removidos de todos os tempos, o fio colado a todas as diásporas. “Aqui as mulheres têm que se ajudar e os homens têm que ser menos homens”, conclama na assembleia.

Mas chega a fome, o delírio, a desigualdade. A Puta é apedrejada. O Melanias foge. Zoé é criança, especula outras dez futuras remoções e enlouquece, se esconde para sempre numa “árvore imortal de frutos infinitos”. Não à toa é zoé – a vida fora das regras, fora das classificações, o caos que somos todos, plantas, bichos. So perceber seu lugar de desempoderada, seu lugar de ser fome e sede, Zoé não topa as regras, vira bicho, planta, nunca mais desce, só fugindo Zoé continua sendo zoé.

O Homem Chamado Cavalo (nome de batismo feito de um verso de Stela do Patrocínio, poeta, preta e profética, dado ao personagem preto, poeta e profético enrolado em cobertor azul, “escolhi o azul porque o azul estava desprezado, meu tênis já é vermelho, por que eu ia querer o manto vermelho? era mais bonito, mas o azul é que ninguém queria, eu quis”) toma a Puta por santa mãe e quer que ela o abençoe, sua forma de pedir a bênção e o furor da sua fé são tão violentos quanto as pedras.

O peixe tem convulsões por estar fora d’água, ao receber o cuspe de seus patrícios e ficar molhado novamente, sobrevive, se levanta, puto, cospe em Marenka. Começa o trabalho de parto, mas Melanias volta com novidades de sua fuga, o filho de Marenka não será habitante de Panidrom.

Talvez a utopia seja mesmo a dos piratas, a dos ciganos, a utopia de Pinto Calçudo, personagem de Serafim Ponte Grande de Oswald, que comanda El Durazno, um barco república para habitantes sem calças que navega os setes mares e para apenas para recarregar-se de abacates. A utopia dos ciganos, que nunca estão em casa, sempre inventando a forma seguinte de viver, num lugar novo, num outro possível. Os ciganos armam tenda para desarmar. A utopia de Panidrom é a do perecível, a do “ainda não terminou”, é incompletude, é precariedade, e o sempre inacabado. Taraf de Haidouks ao fundo. Veja fotos, a equipe, o processo e gifs fantásticos aqui: http://panidrom.wix.com/site

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