De Woody Allen a Francisgleydisson

Novo filme do diretor norte-americano foca crise financeira e desdobramentos sócio-morais. Cearense Helder Gomes explora possibilidades de cine brasileiro pós-Globo

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Novo filme do diretor norte-americano foca crise financeira e seus desdobramentos sócio-morais. Cearense Halder Gomes explora possibilidades de cine brasileiro pós-Globo

Por José Geraldo Couto, no blog do IMS

Blue Jasmine certamente não é o melhor Woody Allen. Mas está longe de ser o pior. Na história das duas irmãs de trajetórias contrastantes o diretor recicla algumas de suas ideias sobre a moral contida nas relações sociais, situando-as no contexto muito contemporâneo do capitalismo financeiro global. Para isso, interrompeu sua turnê turístico-cinematográfica europeia e voltou à matriz.

A socialite Jasmine (Cate Blanchett) perde o dinheiro, mas não a pose, quando o marido ricaço (Alec Baldwin) é preso por conta de tenebrosas falcatruas com o dinheiro alheio. Com uma mala Vuitton na frente e outra atrás, viaja de Nova York a San Francisco para se instalar na casa da irmã pobretona Ginger (Sally Hawkins), que tem dois filhos e um namorado tosco e folgazão (Bobby Cannavale).

Instaura-se assim, como já se observou, uma situação cômico-dramática análoga à da peça Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams, levada às telas por Elia Kazan em 1951. Até aí, nada de mais. Woody Allen sempre viu a tradição literária, teatral e cinematográfica como um patrimônio a ser explorado livremente. Tolstói, Tchekhov, Bergman e Fellini já foram devidamente saqueados por ele, com resultados variados.

Da sátira à tragédia

Aqui, um certo esquematismo no contraste entre a high society de Manhattan e o ambiente proletário-alternativo de San Francisco, bem como entre a chique Jasmine e a brega Ginger, é essencial para a constituição de um certo tom de parábola: sobre as reviravoltas irônicas do destino, claro, mas também sobre o caráter inconsistente e volátil da riqueza na sociedade atual, em que parecemos viver dentro de uma bolha especulativa: o poderoso milionário de hoje pode ser o falido e humilhado de amanhã.

Além do mais, ao brincar com os estereótipos, Allen acaba por matizá-los, revelando desvãos insuspeitados tanto na irmã ex-rica como na eternamente pobre. Alguém disse que “o filme é Cate Blanchett”. Talvez seja exagero. Mas o fato é que o que eleva Blue Jasmine da sátira ligeira à tragédia é a personagem Jasmine, com sua fragilidade e sua fúria de princesa destronada, no limiar da loucura. É um magnífico trabalho conjunto de roteiro, direção e atuação.

Cine Holliúdy e o cinema popular

Informações preliminares indicam que, depois de se tornar um fenômeno de público no Nordeste, Cine Holliúdy, de Halder Gomes, também está se saindo bem, embora sem o mesmo ímpeto, nas bilheterias do Sudeste.

O caso merece estudo e reflexão. Assumidamente primitivo e visceralmente popular, o longa cearense vem na contramão do cinemão padrão Globo que impera no nosso circuito exibidor viciado e elitizado.

Para quem não sabe, trata-se da história de um empreendedor quixotesco (Edmilson Filho) que tenta criar e manter vivo um cinema numa cidadezinha do Nordeste na década de 1970, momento em que a televisão está desbancando o cinema como principal entretenimento popular. Só a sinopse já faz pensar em uma mistura de Cinema Paradiso com Bye bye Brasil.

O humor do filme vem um tanto da autoironia em face de suas precariedades e outro tanto da exacerbação de traços regionais, a ponto de os personagens falarem uma linguagem tão peculiar que supostamente exige legendas em português.

É uma celebração do cinema de matiz popular, que a hegemonia das telenovelas e a elitização do circuito exibidor (com o fim dos cinemas do interior e das salas “de rua” das grandes cidades) vieram liquidar: as chanchadas, Mazzaroppi, faroeste espaguete etc., ainda que os filmes que Francisgleydisson exibe, dubla e remonta em seu arremedo de Cine Paradiso sejam predominantemente de kung fu, outro gênero popularíssimo.

Ou seja, uma exaltação de todas aquelas produções execradas como “malfeitas” ou de “mau gosto” pelo cidadão colonizado de classe média que predomina hoje nos multiplexes de nossas metrópoles.

Como, então, Cine Holliúdy está conquistando esse público tão deformado pelas telenovelas, pelas sitcoms e pelos blockbusters americanos ou globais?

Desmontando resistências

Tenho duas hipóteses que se complementam. Primeira: o arguto lançamento de Cine Holliúdy, inicialmente no Ceará, em seguida no restante do Nordeste, apelando claramente para o orgulho regional, criou um fenômeno de público e de mídia espontânea que precedeu sua chegada ao Sudeste, criando o “pequeno milagre” que, segundo o crítico Pedro Butcher, é necessário hoje para levar um cidadão a sair de casa para ver um filme brasileiro que não seja da Globo Filmes.

Segunda hipótese: a autogozação do filme, caricaturando traços nordestinos dos quais os paulistas e cariocas adoram zombar (não é por acaso que o protagonista se chama Francisgleydisson), cria uma comunicação fácil com as plateias dessas praças. É como se Cine Holliúdy inoculasse no espectador do Sudeste o antídoto contra o seu preconceito, desmontando resistências.

Tudo isso seria inútil se o filme não fosse, de fato, engraçado, se não contivesse piadas inventivas e bons comediantes – e parece que no Ceará eles proliferam como na Itália e em outros lugares privilegiados do mundo. Irregular e precário, Cine Holliúdy sabe fazer disso uma vantagem, uma fonte de inspiração, humor e festa. O cinema ainda pode ser, contra todas as expectativas, uma diversão popular.

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