Crônica na Avenida Paulista, ou A lição de seu Valter

Dilma e o vendedor de fitinhas têm algo em comum: não querem ser Fla, nem Flu. Mas quem disse que a neutralidade é boa conselheira?

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Por João Peres e Tadeu Breda

Seu Valter não quer ser Fla nem Flu. E hoje, domingo, é dia de Fla-Flu – ou melhor, de Fla, porque o Flu teve sua chance na sexta-feira. Seu Valter não quer abrir mão de seus princípios apenas para agradar a um dos lados e ganhar mais dinheiro. “A concorrência tá brava”, queixa-se, num fim de tarde em que seus negócios andaram muito mal. Os demais vendedores cobram o dobro, mas entregam o produto mais desejado e seguem a máxima de que o cliente sempre tem razão: “Fora, Dilma”.

Seu Valter é um comerciante mais moderado, menos capitalismo selvagem. “Optei por um produto mais neutro.” Optou e se deu mal. Pelo menos financeiramente: volta para casa carregado das faixinhas “Brasil, pátria amada” que oferecia a R$ 2,50 cada – as outras, antipetistas, não custavam menos de R$ 5. Não volta pra casa feliz, mas em sintonia com sua consciência. “Teria de mudar todos os políticos. Não tem prova contra a Dilma.” Não deixa de ser curioso que uma mensagem tão verde-amarela encalhe num dia marcado por camisas canarinho, caras pintadas, bandeiras e hino nacionais a rodo.

Claramente, não era momento para ficar em cima do muro ou tecer algumas ponderações politicas. É um dia para mensagens explícitas, com grito bem claro e alvo definido. É também dia para algumas poucas certezas, muitas dúvidas, dezenas de questões. Uma perplexidade tão grande que desespera. O que está acontecendo? A data – 15 de março de 2015 – ainda será debatida e disputada durante um bom tempo, até que se desdobre e ganhe seus significados para os torcedores do Fla e do Flu. E também para o resto que não veste nenhuma camisa. Nem a verde-amarela que se imagina ser de todos os brasileiros.

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Uma coisa é certa entre a multidão que compareceu à Avenida Paulista: a saída imediata de Dilma Rousseff do Palácio do Planalto, melhor ainda se acompanhada pela extinção do PT e tudo que possa recordá-lo na face da Terra. Também parece ser clarividente que a maioria dos presentes é favorável ao impeachment como método para defenestrar a presidenta, apesar de parcela significativa ser entusiasta da “intervenção militar”, ora desavergonhadamente reconhecida como golpe, ora defendida como direito constitucional. O resto – uma enxurrada de cartazes, gritos e chiliques – é mote para debate.

Ainda não eram 15 horas e a Avenida Paulista já estava cheia. É possível que uma certa “ansiedade revolucionária” tenha forçado paulistanos a sacrificarem o sacrossanto almoço de domingo em prol de uma missão para eles ainda mais nobre que a família reunida em torno à mesa: “salvar o país”. Também é possível que a cobertura ao vivo de protestos que aconteciam logo pela manhã, em outras capitais, tenha empurrado para as ruas, antes do horário combinado, parte da população da maior cidade do país. Copacabana repleta de manifestantes às 11h deve ter ajudado. Imagens de cidadãos felizes envoltos nas cores nacionais, com crianças e policiais sorridentes, idem.

Poucas vezes se viu a Avenida Paulista tão cheia. Talvez nas paradas gays. Talvez no reveillón. Talvez em junho de 2013. Mas não dá para negar que havia um oceano de gente. Entrar na discussão sobre se eram 210 mil, como garante o Datafolha, recém-alçado a oráculo da verdade pelos simpatizantes do governo, ou 1 milhão, como estima a Policia Militar, é uma picuinha sem tamanho. Para efeitos comparativos com a marcha petista da sexta-feira, 13 de março, não é necessário recorrer às contagens do instituto ou da corporação. Se a ideia de alguém era medir forças, os que pediram “Fora, Dilma” foram incomparavelmente mais numerosos do que os que cobraram sua permanência. Não estavam apenas na Paulista, mas também nas ruas adjacentes. Quem saísse alguns minutinhos da muvuca veria muitos verde-amarelos pela Alameda Santos. E sabe-se lá onde mais.

A dinâmica da manifestação teve suas semelhanças com os dias finais das jornadas de junho, há dois anos, quando os movimentos de esquerda se viram rodeados de pessoas que jamais haviam sido vistas protestando. Gente andando pra lá e pra cá, alguns blocos coesos, gritarias localizadas, pluralidade de cartazes, desfile de reivindicações. Uma profusão de individualidades que, se se colocasse a dialogar entre si, não chegariam a um consenso sobre tantas “urgências” políticas – com exceção da mais urgente de todas: fim da corrupção e destituição de Dilma, que para eles parecem ser ingênuos sinônimos.

Não se pode acabar com a corrupção sem acabar com o PT. O PT é a corrupção”, definiu um jovem rapaz que discursava no trio elétrico do Movimento Brasil Livre. “Vocês acham que a Dilma sabia? Sabia, né? E se ela sabe, é mais um crime que vai configurar o impeachment.”

Havia bastante sintonia entre quem falava do alto dos caminhões e as pessoas que estavam no asfalto, especialmente nas primeiras horas. A execução do hino nacional a torto e a direito, em todas as suas estrofes, até o fim, funcionou como outro elemento agregador aos manifestantes. “Esta é a música que nos unifica”, disse um dos oradores da tarde.

Muitas das ideias defendidas no domingo pareciam impensáveis três ou quatro anos atrás. A visão de que o PT é uma força a serviço do comunismo global, prestes a transformar o Brasil em uma extensão do eixo Cuba-Venezuela, já não é palavra de ordem de meia dúzia: arrasta milhares. “We won’t be another Venezuela”, dizia um entre centenas de cartazes alusivos ao suposto perigo representado pela conexão entre Lula, Fidel Castro e Hugo Chávez. O Foro de São Paulo, articulação de partidos de esquerda latino-americanos, voltou a ser lembrado como tentáculo da ameaça soviética nestas bandas do mundo.

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A ojeriza ao vermelho do PT, por outro lado, não representa exatamente uma novidade. “É uma cor tão bonita, pena que foi sequestrada pelos petralhas”, lamentava um rapaz do alto do carro de som. O sentimento ruim pelos tons escarlates e a intrepretação sobre o que ela representa parecem seguir intactos desde a Guerra Fria para parte dos manifestantes do domingo. Novo é o fato de que multidões gritem ao mesmo tempo: “A nossa bandeira jamais será vermelha”. Eram muitos, e por muitas vezes, a demonstrar qual é a cor mais quente do momento político nacional.

VPR é, para a história brasileira, sigla que designa a Vanguarda Popular Revolucionária, grupo de resistência à ditadura que teve Dilma Rousseff como integrante. Para quem esteve na Paulista, porém, VPR é Vem pra Rua, um dos movimentos que coordenaram o ato com seu trio-elétrico-ostentação estacionado na transversal sobre quase toda a largura da avenida. A enorme carreta exibia uma faixa igualmente grande: “O Brasil não é do PT. É dos brasileiros. Fora Cuba. Fora Venezuela.” Enquanto isso, um rapaz vestido de Tio Sam, com cartola e bandeira dos Estados Unidos, desfilava debaixo de inofensivos gracejos.

Outros caminhões agitaram a tarde de protesto verde-amarela. Cada movimento tinha seu proprio aparelho de som, e os manifestantes circulavam entre os veículos, paravam, ouviam e interagiam quando lhes agradava. Menos assíduo que o hino nacional, mas entoado com fervor parecido, rezou-se o pai-nosso. Também houve músicas do Legião Urbana (“Que país é esse”), O Rappa (“Vem pra rua”), Raul Seixas (“Aluga-se”) e Gabriel Pensador (“Até quando”). Um jingle gravado especialmente para o momento, “Impeachment”, de uma dupla chamada Os Reaças, embalou a rebeldia dominical ao lado de uma versão antipetista de “Caminhando”, de Geraldo Vandré: “Dilma, vai embora, que o Brasil não quer você. Aproveita e leva o Lula e os vagabundos do PT.”

Entre preces e canções, apareciam palavras de ordem. Clássicos da esquerda latino-americana, como “O povo unido jamais será vencido”, foram ressignificados. Os manifestantes riram e saltaram ao bradar “Quem não pula é comunista”. Xingamentos machistas contra Dilma não deram o tom, ainda que tenham sido ouvidos aqui e acolá. “Eu vim de graça”, em referência à ajuda de custo paga pela Central Única dos Trabalhadores a parte dos manifestantes no protesto governista de sexta-feira, teve sua força. Alguns complementavam o grito com “E ainda paguei metrô”, em referência aos ônibus fretados pelos sindicalistas. “Lula, cachaceiro, devolve meu dinheiro” foi bastante entoado, inclusive por animados jovens que secavam no bico uma garrafa de catuaba, respingando suas camisetas brancas com a inscrição “A culpa não é minha, votei no Aécio”.

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A turma saudosa da ditadura se identificou rapidamente com os caminhões parados em frente ao parque Trianon. Eram dois, e ostentavam faixas como “Intervenção militar já. O Brasil exige ordem e progresso” ou “Impeachment é coisa de otário, patriota mesmo exige intervenção militar”. Como nos anos 1960, bradaram contra os comunas. Um rapaz lembrou que na Coreia do Norte existe canibalismo. Outro xingou um tal “Che Pega na Vara”, em referência ao revolucionário argentino, a quem criticou por ser homofóbico.

Entediados com a falação, os partidários do golpe logo concordaram em deixar a companhia dos frouxos que pediam reforma política, e que por vezes vaiavam a estética milica, para caminhar até o quartel mais próximo, onde pediriam à caserna que resolvesse a questão. “Viva o Brasil. Militares, nós amamos vocês. Militares, nós precisamos de vocês. A nação está em perigo. Os militares são nossos anjos da guarda.”

Uma senhora, provavelmente com mais de 60 anos, brindava sorrisos angelicais para câmeras que a filmavam exibindo uma cartolina com os dizeres “SOS Militares”. Depois, dizia: “Quero que a Dilma vá para o inferno”. A frase provavelmente não coube no cartaz e precisou ser trazida verbalmente ao protesto. Minutos depois, ela subiria ao caminhão para confessar suas saudades da ditadura. “O Brasil virou uma bagunça. Todo mundo só canta e dança funk. Brasília tem uma corja de vermelhinhos. Estou cansada disso. As crianças estão perdendo a referência de tudo, de pátria, de família, de Deus.”

Cuidado com as palavras, argumentos embasados e discursos elaborados, por sinal, não foram o forte da manifestação de domingo. Do chão da rua e especialmente do alto dos caminhões jorravam conclusões estapafúrdias e informações de fácil contestação. Uma avalanche de besteiras e mentiras que não são exclusividade dos antipetistas, mas que por eles foram carinhosamente cultivadas nas redes sociais até desabrocharem na avenida como flores rasteiras verde e amarelas.

Marcello Reis, fundador do grupo Revoltados Online, trajou terno para comandar seus liderados. A elegância, disse, era porque minutos antes estava conversando com os Estados Unidos. “Acabei de receber a informação de que Washington vai provar que as urnas foram fraudadas”, bradou, para delírio geral, sem dar maiores detalhes sobre com que Estados Unidos falara e qual Washington provaria a fraude eleitoral. Logo depois, chorou de emoção, ladeado por faixas louvando o heroísmo da Polícia Federal e do juiz Sérgio Moro, da Justiça Federal de Curitiba, responsável pelas investigações na Petrobras.

Tirando todas as faixas contra Lula, Dilma e o PT, o ministro José Antonio Dias Toffoli foi o homem mais citado da tarde – o que não significa que tenha sido um campeão de audiência, longe disso. Alguns manifestantes estavam indignados pelo fato de um ex-advogado-geral da União e ex-advogado de José Dirceu ser agora o relator do inquérito relativo à Operação Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal. Se o protesto ocorresse quatro anos atrás, provavelmente haveria uma grita contra Joaquim Barbosa, relator do mensalão, hoje convertido em herói nacional e paladino da justiça.

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Depois de Toffoli, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, foi lembrado em alguns cartazes e discursos. Uma cartolina dizia “Je Suis Janot”, em curiosa referência aos atentados terroristas que vitimaram cartunistas do jornal Charlie Hebdo na França. Parte dos manifestantes apoiam o chefe do Ministério Publico por ter oferecido denúncia contra vários políticos acusados de corrupção. Outros o odeiam por não ter incluído o nome de Dilma Rousseff na lista de suspeitos encaminhada ao Supremo. “A presidenta foi citada onze vezes nas delações”, indignaram-se. Menções aos presidentes da Câmara, Eduardo Cunha, e do Senado, Renan Calheiros, réus em potencial da Lava Jato, foram ínfimas.

Se algum policial militar um dia sonhou em ser herói, esse sonho pôde ser realizado no domingo. Membros da tropa de choque nunca tiveram de concordar com tantos abraços e apertos de mão, nunca receberam tantos sorrisos e tapinhas nas costas durante um protesto. Nunca foram tão requisitados para fotos. A satisfação dos homens fardados era flagrante. Alguns se esforçavam para sustentar a cara fechada do ofício, mas, por mais que tentassem manter-se carrancudos, uma risadinha escapava pelo canto da boca. Carregaram crianças no colo. Posaram para selfies. Uma mulher fez questão de demonstrar sua excitação após sentir o toque da mão de um soldado sobre seu ombro nu. E ruidosos aplausos recebiam pequenas patrulhas que caminhavam pela multidão.

Frente a uma manifestação inédita, o governo ofereceu, mais uma vez, respostas convencionais. Os ministros da Justiça, José Eduardo Cardozo, e da Secretaria-Geral da Presidência da República, Miguel Rossetto, foram os escolhidos para dar as caras após o protesto, ainda no começo da noite de domingo. Garantiram que o Palácio do Planalto tinha plena consciência de quais vontades foram expressadas nas ruas e por quem. Voltaram a dizer que a contestação e as crises foram superadas várias vezes ao longo de doze anos. E prometeram, novamente, que Dilma apresentará nos próximos dias um extenso pacote anticorrupção, a exemplo do que foi dito na esteira das manifestações de junho de 2013 e durante todo o desenrolar do processo eleitoral.

Enquanto os ministros falavam na televisão, panelas voltavam a bater pelo país. E Aécio se deixava ser fotografado na sacada de seu apartamento, em Ipanema, no Rio de Janeiro, com uma camisa verde-amarelo. Mais tarde postou um vídeo no Facebook basicamente repisando as louvações utilizadas durante sua campanha, interpretando que os brasileiros agora se reencontram com seus valores e suas virtudes. “Depois de refletir muito, eu optei por não estar nas ruas neste domingo, para deixar muito claro quem é o grande protagonista destas manifestações. E ele é o povo brasileiro, o povo cansado de tantos desmandos, cansado de tanta corrupção.”

Marina Silva, que antes dos protestos havia cobrado respeito à vitória eleitoral de Dilma Rousseff e adotado tom mais cauteloso, comparou o protesto ao espírito presente nas jornadas de junho, classificando-o como “livre e autoral”, mas desta vez com um objetivo claro de se colocar contra o governo e a corrupção. “O povo brasileiro exige uma posição da presidente da República em resposta aos seus justos e legítimos reclames. Esta, sim, é a hora de falar e dizer a verdade. Reconhecer os erros, assumir a responsabilidade por seus atos, propor soluções para os problemas, nada mais e nada menos que isso. Uma fala da presidente, não do marketing.”

Mas, quando veio, na tarde do dia seguinte, a fala da presidenta fez oferecer certezas de que a visão transmitida na véspera por seus ministros não era um caso à parte. Dilma repisou a necessidade de respeitar as urnas, a importância da democracia, a necessidade do combate à corrupção e da reforma política, a disposição de seu governo para o diálogo com quem queira dialogar. Não apresentou nenhuma diferença no tom usado nas últimas semanas, nos últimos meses, nos últimos anos, inclusive na acusação de que há na classe política partidários do “quanto pior, melhor”.

Reiterou o otimismo com uma suposta solidez democrática do país e um também suposto apego da população à construção do Estado democrático. Disse que governa para todos os brasileiros, independente de preferência partidária ou participação em manifestações contra o governo. E buscou a todo instante dizer que saberá reconhecer seus erros, sempre que indicados. “Ouvir é a palavra. Dialogar é a ação. O sentimento tem de ser de humildade e firmeza.” Desta vez, seu discurso não foi recebido com panelaços.

Depois de escutar a voz das ruas e dos palácios, é possível perceber que Dilma e seu Valter, o vendedor de fitinhas, têm pelo menos um ponto em comum: não querem ser Fla, nem Flu. Mas com uma diferença crucial. Enquanto a presidenta esconde as bandeiras vermelhas de quem a elegeu no ano passado e acena para seus detratores com as faixinhas verde-amarelas da conciliação nacional, o comerciante tem, agora, plena consciência de que a neutralidade não é boa em se tratando de ganhar a vida com política.

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