Carl Dreyer e a metafísica da luz

Saem no Brasil as grandes obras do autor de “A paixão de Joana d’Arc”. Poeta do, ritmo, luz e enquadramentos, foi também narrador de dramas de intensidade insuperável

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Imagem de “Joanna d’Arc” (1928). Dreyer considerava o rosto humano uma intrigante paisagem e buscava ver nele a expressão de uma verdade que transcende a “interpretação” do ator

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Saem no Brasil as grandes obras do autor de “A paixão de Joana d’Arc”. Poeta da composição, ritmo, luz e enquadramentos, foi também narrador de dramas de intensidade humana insuperável

Por José Geraldo Couto, no blog do IMS

O dinamarquês Carl Theodor Dreyer (1889-1968) é um caso singular na história do cinema. Em sua filmografia relativamente pouco numerosa (catorze longas-metragens em meio século de atividade) figuram ao menos cinco obras-primas, realizadas cada uma numa década: A paixão de Joana d’Arc (1928), O vampiro (1932), Dias de ira (1943), A palavra (1955) e Gertrud (1964).

A boa notícia é que esses cinco filmes essenciais estão chegando em DVD ao público brasileiro, em bem cuidados lançamentos da Versátil: Joana d’Arc num volume avulso, os outros quatro numa caixa repleta de extras. Seria impossível falar de todos eles aqui. Cabe apenas destacar alguns pontos e tentar entender em que consiste a força e a originalidade dessa obra extraordinária.

Muito se falou sobre o misticismo de Dreyer, seu depurado cristianismo, sua elevada espiritualidade. O interessante é investigar como essas inquietações íntimas se traduzem em cinema. Em grande, imenso cinema. Perfeitos em sua composição, em seu equilíbrio estético interno, em seu ritmo, em seu controle absoluto da luz, dos enquadramentos e dos movimentos de câmera, os filmes de Dryer, para o crítico André Bazin, estão entre as “raras obras cinematográficas que sustentam a comparação com as melhores produções da pintura, da música ou da poesia”.

O rosto como paisagem

Mas não se trata de um esteticismo ornamental ou vazio. Pelo contrário, há nesses dramas metafísicos uma intensidade humana insuperável. Neles, o espírito se faz carne, pulsação, vida que vibra em cada gesto e em cada palavra.

Por falta de espaço e de um instrumental mais refinado de análise, limito-me a destacar aqui dois aspectos dessa estética ao mesmo tempo tão escandinava e tão universal.

Um deles diz respeito aos closes, tão evidentes quando se fala de A paixão de Joana d’Arc, um filme feito predominantemente de rostos: o de Maria Falconetti, no papel da heroína, e os de seus juízes, mas também os dos monges que a cercam (um deles vivido por Antonin Artaud), dos carcereiros, dos carrascos, do público que assiste ao seu martírio.

Dreyer, admirador de Griffith, considerava o rosto humano uma intrigante paisagem (como diz numa entrevista nos “extras” dos DVDs). Buscava ver nele a expressão de uma verdade que transcende a “interpretação” do ator. Pelos rostos de Joana, de seus algozes e dos outros circunstantes vemos passar toda a variedade de expressões psicológicas e morais: esperança, compaixão, ódio, desprezo, alegria, fé. Filmados em leve contre-plongée (de baixo para cima), esculpidos no inigualável preto e branco do diretor de fotografia Rudolph Maté, esses rostos nos assombram como ícones religiosos, como fantasmas, como signos atemporais, mas ao mesmo tempo como testemunhos das fraquezas e contradições de indivíduos concretos, demasiado humanos. Aqui, a sequência da execução da heroína (não há spoiler de um fato ocorrido há seis séculos):

A mesma ambivalência entre o carnal e o espiritual, entre o transitório e o eterno, vemos na fisionomia de Lisbeth Movin (a jovem e bela e possível bruxa de Dias de ira), na de Preben Lerdorff Rye (o louco e visionário e possível santo de A palavra), na de Nina Pens Rode (a cantora lírica e esposa burguesa que anseia pelo amor absoluto em Gertrud). Aqui vai um exemplo de transformação impressionante de um rosto, o da possuída Léone (Sybille Schmitz) em O vampiro:

Metafísica do branco

A par dessa exploração em profundidade do rosto humano há na obra de Dryer o que alguém chamou de “metafísica do branco”, em contraposição à prevalência do negro tenebroso no expressionismo alemão. “Amo um branco intenso capaz de fazer ressaltar os meios-tons”, declarou o cineasta numa entrevista a Lotte Eisner. A luz em seus filmes atravessa as cortinas, as nuvens e frequentemente os próprios seres e objetos, ainda que tudo permaneça sempre nítido e em foco. Mais uma vez, uma espécie de dialética da transcendência e da imanência, traduzida no modo de iluminar o mundo.

Mesmo em seu filme mais sobrenatural, O vampiro, Dreyer se afasta de uma contraposição binária entre luz e sombra, entre preto e branco que não se misturam nem se matizam. Ali tudo flui com certa leveza entre os planos do sonho e da vigília, do real e da fantasia, dos vivos e dos mortos. Em certos momentos, a sombra ganha autonomia em relação ao corpo que a projeta, em outros é o próprio corpo que se desdobra em duas imagens (uma que dorme, outra que age). Estamos distantes da pesada iconografia gótica do Drácula de Bram Stoker e de suas versões no cinema. (A inspiração de Dreyer foi a novela Carmilla, de Sheridan Le Fanu, despojada de suas implicações homoeróticas.)

Essa precisa ciência da luz e dos enquadramentos, aliada ao décor despojado e ao gestual contido, quase hierático, dos atores conferem aos filmes do diretor uma qualidade estética atemporal, que em sua época muitos consideraram antiquada ou anacrônica. Na verdade, a austera estilização – talvez fosse melhor dizer essencialização – é fundamental ali para elevar a encenação do naturalismo rasteiro e realçar suas ressonâncias místicas.

A palavra e a carne

O equilíbrio mais perfeito entre um certo grau de realismo e uma alta intensidade metafísica se dá, a meu ver, no extraordinário A palavra, baseado em peça teatral de Kaj Munk e ambientado num vilarejo rural dinamarquês nas primeiras décadas do século XX. O ambiente é de um cotidiano prosaico e caloroso em que vibram no entanto as grandes questões religiosas e morais. Duas noções de cristianismo se contrapõem: uma alegre, aberta à vida e às manifestações imanentes da divindade; a outra, severa e punitiva.

Vários planos se entrelaçam naturalmente: o embate doutrinário entre dois patriarcas, o fazendeiro Morgen (Henrik Malberg) e o alfaiate Petersen (Ejner Federspiel); o romance interdito entre o filho caçula de um e a filha única do outro; o primogênito descrente de Morgen (Emil Hass Christensen), cuja mulher (Birgitte Federspiel) está grávida do terceiro filho; por fim, o filho louco de Morgen, Johannes, que se crê Jesus Cristo reencarnado.

Este último é um dos personagens mais fascinantes da obra de Dreyer e de todo o cinema. Por seu talento precoce, o pai almejava para ele o futuro de um profeta e enviou-o para estudos de teologia. “De tanto estudar”, como sugere a cunhada, ou “de tanto ler Kierkegaard”, segundo o irmão mais velho, Johannes teria perdido o juízo. Como um hipnotizado ou um sonâmbulo, passou a falar por meio de parábolas e citações bíblicas, anunciando mortes, castigos e redenções.

A certa altura, ele se julga capaz de realizar um milagre e reverter um acontecimento trágico para a família Morgen e para toda a comunidade. Só sua sobrinha pequena acredita nele e o incentiva a ousar o gesto, a dizer a palavra. A cena, que não vou antecipar aqui, é um dos momentos mais sublimes da história do cinema e aquele em que atinge seu ápice a arte de Dreyer de plasmar espírito e matéria por meio da luz. O milagre do cinema emulando o gesto de modelar uma figura em barro e, com um sopro, dar-lhe vida.

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