Caminho para o nada, janelas para o abismo

Volta, em DVD, filme de Monte Hellman que passou despercebido, injustamente. Poucas vezes cinema desnudou-se tanto como “mentira a 24 quadros por segundo”

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Volta, em DVD, filme de Monte Hellman que passou despercebido, injustamente. Poucas vezes cinema desnudou-se tão plenamente como “mentira a 24 quadros por segundo”

Por José Geraldo Couto, no blog do IMS

No mercado cinematográfico americano – e também no brasileiro – parece haver uma lei não escrita segundo a qual quanto mais relevante for o filme, quanto mais questões ele suscitar, menos espaço ele terá no circuito exibidor e menos visibilidade na mídia.

É o caso do esplêndido e perturbador Caminho para o nada, de Monte Hellman. Lançado há três anos nos cinemas brasileiros, passou praticamente despercebido aqui, a exemplo do que ocorrera nos EUA. Por sorte, ele chega agora ao DVD, pela Lume Filmes, dando aos cinéfilos uma segunda chance de conhecê-lo – ou de vê-lo de novo e explorar suas múltiplas camadas.

Pois é de camadas sobrepostas – ou antes, contrapostas, refratadas como num jogo de espelhos – que se trata aqui, neste filme sobre um filme. Esclarecendo: num lugarejo atrasado da Carolina do Norte, um jovem cineasta, Mitchell Haven (Tygh Runyan), tenta reconstituir num longa-metragem de ficção um rumoroso drama local, a dupla morte de uma moça cubana, Velma Duran, e seu amante, o escroque Rafe Taschen.

Fundos falsos

Tendo como principais fontes uma blogueira do lugarejo (Dominique Swain) e um investigador de companhia de seguros (Waylon Payne), Haven se move num cipoal de dúvidas e versões. Assassinato, suicídio, trocas de identidade, fraude imobiliária, sonegação fiscal, promiscuidade entre o capital, a polícia e o poder político, tudo isso se embaralha numa narrativa feita de fundos falsos, em que nunca sabemos o que é “de verdade” e o que é encenado.

Para complicar, o cineasta se apaixona pela atriz (Shannyn Sossamon) que encarna Velma Duran e que tem tanta semelhança com a própria a ponto de causar perplexidade nele, na polícia e no espectador.

Hitchcock costumava chamar de McGuffin o pretexto em torno do qual gira a ação. Em geral é algo (um documento, um segredo, uma arma secreta etc.) que tem muita importância para os personagens, mas que só interessa ao cineasta como dispositivo que faz a narrativa avançar e cria momentos de tensão e emoção.

Pois bem: em Caminho para o nada, de certa forma, tudo é McGuffin. Não há um “real verdadeiro” a ser alcançado por trás da representação, mas apenas mais representação.

Janelas para o abismo

No primeiro diálogo do filme, Haven, o cineasta, diz à blogueira que lhe serviu de fonte: “Velma Duran foi a janela que me levou para dentro dessa história”. E janela, de fato, é a imagem que define o modo de construção do filme de Monte Hellman. Enquanto Haven conversa com a blogueira, vemos, pela “janela” da tela do computador, Velma (ou a atriz que a representa) na cama, secando as unhas e os cabelos. No plano seguinte, a câmera vai até uma janela, de dentro para fora vemos um carro chegar. “Atravessamos” a janela, vemos o homem pegar alguma coisa no carro, colocar num saco plástico. Em seguida, há uma casa vista do exterior, à noite. Um homem chega e entra, um tiro é disparado, fora do quadro.

Trata-se da mesma casa? Das mesmas janelas? Não importa. De fora para dentro ou de dentro para fora, queremos atravessar a janela, ver o que há do outro lado. Às vezes o filme nos mostra, às vezes nos sonega. Às vezes embaralha o exterior de uma casa com o interior de outra. Cria um espaço virtual, mental, que só existe na imaginação, isto é, no cinema.

Mais do que simplesmente embaralhar os tempos e lugares na montagem descontínua, como já é moeda corrente há décadas no cinema narrativo, o que Caminho para o nada faz a todo momento é puxar o tapete das certezas debaixo dos pés do espectador, deixando-o num vácuo de dúvida e curiosidade. Mesmo num momento dramático crucial, em que um personagem (não vou dizer qual para não estragar a surpresa) se move atarantado num quarto onde duas pessoas acabam de ser mortas, um brevíssimo contraplano mostra uma equipe de filmagem captando a cena. Não é por acaso que se costuma chamar esse procedimento de “construção em abismo”.

Xadrez com a morte

Poucas vezes o cinema se desnudou tão plenamente como “a mentira a vinte e quatro quadros por segundo”, para usar a definição sarcástica de Brian DePalma. Traições, assassinatos, suicídios, tramas políticas mirabolantes, é como se tudo isso fosse visto num sonho em que as partes não se conectam plenamente e o sentido geral nos escapa. “Se tudo fizesse sentido, eu não estaria interessado”, diz o cineasta à blogueira, certamente ecoando o pensamento do próprio Monte Hellman.

Outras pistas para ler Caminho para o nada e multiplicar suas implicações são os filmes que ele cita explicitamente. Em As três noites de Eva, comédia de Preston Sturges em que uma vigarista (Barbara Stanwyck) se passa por uma lady inglesa, há o tema da troca de identidade; em O espírito da colmeia, de Victor Erice, há o trânsito entre a fantasia cinematográfica e a vida cotidiana; em O sétimo selo, por fim, há a tentativa de driblar a morte (mediante uma partida de xadrez).

São essas três ideias básicas que norteiam – ou desnorteiam – a estrada de Monte Hellman. O cinema como jogo de identidades, transfusão entre fantasia e realidade, xadrez para ludibriar a morte.

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