Duas denúncias e uma demissão muito suspeita

Acusado de exigir propina para comprar duas vacinas distintas, governo afasta diretor do ministério da Saúde. Exoneração relâmpago, e sem direito de defesa, sugere queima de arquivo. E mais: a proteção quase total das máscaras PFF3

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SEM PROPINA, SEM VACINA

Uma denúncia grave eclodiu ontem à noite em reportagem publicada pela Folhao Ministério da Saúde teria pedido propina na compra de vacinas da AstraZeneca. Foi Luiz Paulo Dominguetti Pereira, representante de uma empresa chamada Davati Medical Supply, que revelou a história à jornalista Constança Rezende.

De acordo com ele, a Davati entrou em contato com o Ministério em fevereiro para oferecer 400 milhões de doses do imunizante, e o diretor de Logística da pasta, Roberto Ferreira Dias, impôs a condição de se “compor com o grupo”. Para essa “composição”, a empresa deveria acrescentar US$ 1 no preço de cada dose. Ou seja, cada pessoa vacinada renderia R$ 10 de propina. Dominguetti contou também que a reunião em que o negócio foi proposto aconteceu em um restaurante, num shopping, e que havia outras duas pessoas: “Era um militar do Exército e um empresário lá de Brasília”, disse, embora sem citar nomes. 

Ele afirmou ter recusado a proposta, que foi reforçada no dia seguinte, dessa vez dentro do próprio Ministério. Depois de nova negativa, não houve mais interesse da pasta pela compra. “Tentamos conversar com o Élcio Franco [ ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde], explicamos para ele a situação também, não adiantou nada. Ninguém queria vacina”, relatou.

Como dissemosontem, Roberto Ferreira Dias, que teria pressionado o servidor Luís Ricardo Miranda durante o processo de compra da Covaxin, chegou a ser indicado por Jair Bolsonaro para assumir uma diretoria na Anvisa em 2019. E, embora sua indicação para o cargo atual tenha partido do ex-deputado Abelardo Lupion (DEM-PR), ela foi referendada por Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo na Câmara e um dos focos do escândalo da Covaxin.

Logo após a publicação da matéria, o ministro Marcelo Queiroga decidiu exonerar Dias.

E Dominguetti vai ser ouvido pela CPI da Covid ainda esta semana: segundo o presidente da Comissão, Omar Aziz (PSD-AM), o depoimento será na sexta-feira.

Em tempo: deputados da oposição ao governo vão enviar representação ao Ministério Público Federal solicitando a apuração do caso.

PONTAS SOLTAS

Ainda há muita coisa para se investigar em relação à própria Davati Medical Supply, uma empresa pouco conhecida. Chama a atenção o fato de que a AstraZeneca sempre declarou que só negocia suas vacinas contra a covid-19 diretamente com governos federais e organizações multilaterais, o que torna a história inteira muito estranha. 

Em março, a empresa se viu no centro de uma polêmica no Canadá depois que uma federação que representa os povos indígenas do país tentou comprar vacinas por fora dos processos governamentais. Na época, a vacinação por lá caminhava a passos muito lentos, e a empresa se ofereceu para intermediar a venda de doses da AstraZeneca. 

Tanto o governo do Canadá como a própria AstraZeneca advertiram que era furada. A porta-voz da farmacêutica britânica disse à polícia canadense que havia vários relatos de terceiros oferecendo seu imunizante de forma suspeita: “Posso compartilhar que comunicamos aos governos que, se uma organização está oferecendo o fornecimento privado de nossa vacina AstraZeneca / Oxford, provavelmente não é uma oferta legítima”, declarou. Por sua vez, o CEO da Davati, Herman Cardenas, se recusou a explicar como conseguiria milhões de doses se governos de praticamente todo o mundo tinham tanta dificuldade para vacinar suas populações.

Na mesma época, o Estadão reportou que centenas de prefeituras Brasil afora estavam assinando contratos com intermediadoras de vacinas para conseguir doses da Sputnik V e da AstraZeneca, mesmo com as farmacêuticas dizendo que não negociavam dessa forma. O destaque era a empresa búlgara TMT Globalpharma, mas a Davati também era citada: “Um documento apresentado à reportagem cita que a TMT buscou 70 milhões de doses da vacina de Oxford/AstraZeneca por meio da empresa Davati Medical, dos Estados Unidos. O produto seria entregue ao governo federal, mas o Ministério da Saúde disse que jamais recebeu proposta destas empresas”. Também em março, o Consórcio Paraná chegou a entrar em contato com a Davati pedindo uma oferta para a aquisição de doses.

Dois meses depois, o repórter Lucas Ragazzi se fez passar por representante de uma cidade fictícia para negociar com pessoas que andavam entrando em contato com prefeituras mineiras para ofertar vacinas – e tentar entender o que estava havendo. Mesmo sem nenhuma comprovação, os negociantes diziam representar a Davati. E, para forjar alguma credibilidade, eles ainda diziam que a prefeitura de São Paulo tinha contratos com a empresa, o que é mentira. 

MAIS UMA ACUSAÇÃO

A bomba da Folha não foi a única da noite. A outra veio da Revista Crusoé, segundo a qual o deputado Luís Miranda (DEM-DF) recebeu oferta de propina para não atrapalhar a negociação da Covaxin. 

Ele disse que, dias após falar com Jair Bolsonaro sobre os indícios de irregularidade, esteve em uma reunião com Silvio Assis, lobista ligado ao deputado Ricardo Barros (PP-PR), e recebeu uma oferta milionária (mas sem valor definido) para que ele e seu irmão ficassem em silêncio.

A coisa esquenta: ainda segundo a matéria, um mês depois Miranda teve outra reunião com Assis e com o próprio Ricardo Barros. Foi feita então uma nova oferta de propina, agora no valor de R$ 1 milhão. Silvio Assis confirmou ter se encontrado com Miranda, mas negou o teor da conversa. E Ricardo Barros não declarou nada – disse que vai falar só com a Polícia Federal.

O complicado é que o próprio Luís Miranda não atestou o conteúdo da matéria da Crusoé, como nota a Folha. Ele afirmou que a revista “é responsável por suas matérias e certamente arcará com o que escreve! Não quero ser usado para criar narrativas e volto a afirmar que todas as minhas conversas com Ricardo Barros foram republicanas e não vou me pronunciar sobre fatos que não posso provar!”.

SUSPENSÃO

Cinco dias após dizer que “a preocupação do Ministério da Saúde com esse assunto Covaxin é zero”, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, anunciou a suspensão temporária do contrato para a aquisição de 20 milhões de doses. Ele sustenta que, pela análise preliminar da Controladoria-Geral da União, não há irregularidades, mas que a suspensão será para “uma análise mais aprofundada”.

A CPI vai pedir ao Executivo mais detalhes sobre a decisão. “Quero saber quais foram os pareceres e quando foram dados esses pareceres. Ficará mais suspeito se os pareceres que eles pegaram para suspender forem de muito tempo. Se o parecer é de um mês atrás, por que não fizeram antes?”, declarou o presidente da Comissão, Omar Aziz (PSD-AM).

ESPERE UM POUQUINHO

A Procuradoria-Geral da República pediu ao STF que espere o fim da CPI para dar andamento à notícia-crime que pede a investigação do presidente Jair Bolsonaro por crime de prevaricação.

O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), disse ontem que as denúncias sobre a compra da Covaxin foram apuradas de maneira “cautelosa e criteriosa” pelo coronel da reserva Elcio Franco, ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde. Franco teria concluído que “não houve irregularidades contratuais”.

Em tempo: o superpedido de impeachment será apresentado à Câmara hoje. São 120 pedidos reunidos em um só, com 23 tipos de acusação.

NEGÓCIO INTERESSANTE

Como se sabe, quem primeiro se interessou por trazer rapidamente a Covaxin ao Brasil foi o setor privado. Ainda em dezembro do ano passado, uma comitiva de representantes de clínicas foi à Índia para negociar a compra de cindo milhões de doses.

Pois agora o Estadão conseguiu o contrato firmado em janeiro entre a Associação Brasileira de Clínicas de Vacinas e Frederico Maximiano, sócio da Precisa Medicamentos (que tinha acabado de firmar acordo para representar a Bharat Biotech no Brasil). A Precisa esperava receber no mínimo R$ 800 milhões com o negócio, cobrando até US$ 40 por dose. É nada menos que o dobro do preço máximo estipulado pela Bharat. 

Como a legislação que permitiria a venda pelo setor privado acabou não vingando e a Anvisa ainda não deu aval para utilização desse produto, as doses nunca foram efetivamente compradas nem entregues. Mas há quem tenha feito parte do pagamento adiantado: a MDC Vacinas entregou 10% de seu pagamento total e está a ver navios.

PROTEÇÃO QUASE TOTAL

Que máscaras diferentes oferecem graus diferentes de proteção, isso já se sabe. Mas um estudo (ainda preprint) conduzido em um hospital em Cambridge, no Reino Unido, mostrou que é possível praticamente zerar o risco de contaminação usando respiradores PFF3, mesmo em ambiente hospitalar, de altíssimo risco de contágio.

Durante a maior parte do ano passado, o hospital seguiu a orientação oficial do governo, que era geralmente oferecer aos profissionais máscaras cirúrgicas. Lá, pacientes com confirmação de covid-19 ficavam em enfermarias “vermelhas”, e aqueles sem sintomas e com teste de SARS-CoV-2 negativo ficavam nas “verdes”. A análise dos dados revelou que o risco de os profissionais das alas vermelhas pegarem o vírus era simplesmente 47 vezes maior do que nas verdes.

Mas quando começou  a segunda onda o hospital mudou as regras e ofereceu PFF3 às equipes. Resultado: a taxa de infecção nas duas alas se igualou – mesmo que os profissionais nas alas vermelhas estivessem em contato direto e constante com pessoas infectadas, mesmo que pacientes não usem máscaras e mesmo com nova variante. Ainda houve algumas infecções, mas, como aconteceram na mesma proporção que na alas alas dos pacientes sem covid-19, isso sugere que elas provavelmente não foram adquiridas no trabalho. 

Já se fala muito sobre PFF2 no Brasil, mas pouco sobre as PFF3. A diferença entre elas em relação à proteção individual conferida é muito pequena: segundo a ABNT, as PFF3 precisam garantir que a penetração dos aerossóis nos testes não ultrapasse 1%, ou seja, elas devem reter no mínimo 99% dessas partículas. Já as PFF2 devem reter no mínimo 94%, o que ainda é um percentual extremamente alto. É sempre bom lembrar que, em todos os casos, para a proteção ser efetiva os respiradores precisam estar bem ajustados no rosto.

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