Ciência: a reconstrução abre novos horizontes

Brasil poderia liderar movimento global de democratização do conhecimento. Cooperação e novas epistemologias serão necessárias – e repensar educação e pesquisa desde baixo. Além de enfrentar implacavelmente o negacionismo

Imagem: Julia Jabur
.

Por Eleonora Albano

Por ocasião da publicação do primeiro texto desta série (intitulada “Um lugar para o Brasil na democratização da ciência?”), em março de 2022, todo o campo progressista brasileiro estava unido em torno da esperança de reconstrução do país, representada pela candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva a um terceiro mandato. Naquele momento, poucos imaginariam que as urnas viessem a acusar uma diferença tão estreita entre os candidatos – e, muito menos, que os resultados pudessem suscitar contestações tão violentas. 

Não obstante, devido à sua coesão e dimensão, o nosso sistema público de ensino e pesquisa, por combalido que esteja, permanece de pé. Isso, em princípio, nos habilita a liderar o esforço por uma ciência democrática e descolonizada, na qual a inclusão e a diversidade prometam alimentar a criatividade e a relevância. Nos três ensaios anteriores (leia aqui o segundo e o terceiro), vimos que nenhum país do mundo tem condições tão propícias para a realização de tal projeto. Cabe, portanto, agora, alargar, estender e matizar essa tese com base nos novos rumos dados à nossa sociedade pela eleição.

O último texto examinou os estragos causados pelo governo fascista na educação de todos os níveis e propôs uma reflexão sobre a sua reparação. A primeira condição sine qua non a saltar aos olhos foi a necessidade de reverter a severa desfiguração da Constituição de 1988. Neste caso, porém, como já se viu, a saída está clara, graças ao preciso e detalhado relatório do Revogaço, produzido por um grupo de pesquisadores da UFRJ.

Entretanto, há outras condições menos discerníveis, ainda que necessárias à restauração da educação pública. Este texto fecha a série levantando questões sobre a prospecção e mapeamento desse desiderato, levando em conta o “Brasil profundo” aflorado no 8 de Janeiro. Sustento que o agravamento do obscurantismo ao longo dos últimos anos reorganiza, mas não inviabiliza, a nossa vocação para perseguir um projeto de ciência plural, criativa, ambiciosa e, por conseguinte, profundamente crítica da hierarquia de saberes do Norte global.

Reiteremos, de saída, que a desmilitarização dos cargos governamentais e o saneamento das instituições públicas são condições sine quibus non para abraçarmos tal projeto. É sabido que a disseminação do ódio sob tutela armada potencializa o negacionismo e o obscurantismo. Por isso, o melhor antídoto contra esses males é defenestrar a extrema-direita do setor público – o que exige que a caserna seja definitivamente posta no seu devido lugar. 

Na minha opinião, os gestos do atual governo nesse sentido são acertados, embora estejam levando muito tempo para se aprumar, medrar e frutificar. Todas as demissões foram cautelosas e responderam a atos de insubordinação intoleráveis. 

Por outro lado, como argumenta Manuel Domingos Neto, à luz de décadas de estudo do militarismo, o presidente Lula precisa ir além, assumindo integralmente o comando das Forças Armadas e abrindo um debate sobre a Defesa Nacional, com ampla participação da sociedade civil. Nas palavras do historiador, trata-se não de dizimar o “inimigo interno”, como querem os militares, mas de “proteger nosso espaço territorial, marítimo, aéreo e cibernético do estrangeiro cobiçoso”.

Lembremos que a doutrina brasileira da segurança nacional é uma cópia fiel do modelo estadunidense – importada no âmbito do acordo de intercâmbio entre a Academia Militar de Agulhas Negras (AMAN) e a Academia de West Point (a United States Military Academy (USMA)). 

Sob o pretexto de defender a “democracia” ocidental contra a “ditadura” comunista, os EUA impõem essa tese há mais de 70 anos. Pretendem, assim, manter a sua hegemonia e justificar a repressão a movimentos de libertação, seja de segmentos oprimidos da sua própria população, seja de nações sob o seu jugo imperialista. Tal referência extrínseca faz da cartilha da segurança nacional brasileira uma simples servidão da colonialidade do Norte global e, portanto, uma ameaça à nossa soberania. Urge varrê-la definitivamente dos nossos quartéis e escolas militares.

Isso, evidentemente, só será possível quando o protagonismo adquirido pela educação pública entre 2002 e 2016 for restaurado.

A disposição do atual governo para viabilizar essa restauração refletiu-se em medidas tomadas desde o primeiro mês. Haja vista a reunião de janeiro do presidente com as/os dirigentes das universidades e institutos federais. Nela, todas as falas reafirmaram o papel da educação pública de qualquer nível para o progresso da ciência, da tecnologia e da inovação, e sublinharam a indispensabilidade desses três pilares para a soberania nacional. A subsequente reunião da ministra da Ciência e Tecnologia com representantes da academia brasileira reforçou essa perspectiva. Outra medida afim foi a tentativa do MEC de atualizar o valor das bolsas de pós-graduação.

Nas seções abaixo, apresento e discuto, via exemplos escolhidos, três tarefas que merecem atenção da comunidade científica de todas as áreas – sejam elas “duras” ou “moles” (i.e., hard ou soft). São ações que podem ajudar o governo, bem como a nós mesmos, intelectuais, cientistas e cidadãs/ãos concernidas/os, a superar o clima de terra arrasada, que, como demonstraram os pesquisadores da UFRJ, foi meticulosamente implantado, com alta capilaridade, nos últimos quatro anos. 

A primeira tarefa decorre de que o combate à escalada da extrema-direita no mundo supõe um esforço conjunto para entendê-la por parte dos governos democráticos. Haja vista a pauta do encontro entre os presidentes Lula e Biden em fevereiro. O mundo inteiro sabe que o Brasil dispõe, agora, de farta documentação sobre o assunto. Cabe-nos, pois, trabalhar sobre ela e, sempre que possível, compartilhá-la com colegas estrangeiros interessados. Ressalte-se que, embora esteja apenas começando, a discussão precisa produzir resultados imediatos.

A esse respeito, Fernando Nogueira da Costa propôs uma interpretação do 8 de Janeiro à luz da Psicologia de Massas do Fascismo, de Wilhelm Reich. Concordo que os insights de Reich sobre a repressão da sexualidade sejam reveladores. Mas pondero que visões mais atuais da psicanálise podem ser ainda mais úteis. Além disso, parece-me urgente tratar o acontecimento empiricamente, i.e., com tantos dados quanto possível. Para ilustrar a utilidade de uma abordagem empírica calcada numa referência psicanalítica sensível à nossa realidade, esboço, na próxima seção, uma análise dos primeiros dados disponibilizados a esse respeito pelo governo federal. 

A segunda tarefa deve-se ao fato de termos sabido preservar, ainda que a duras penas, um respeitável sistema de educação pública – construído, aliás, em cerca de um século. Ampliar a influência nacional e internacional dos pioneiros dessa construção é o primeiro passo para fortalecê-la e atrair parcerias interessadas em reeditar as iniciativas educacionais democratizantes do nosso passado, tendo como horizonte o futuro global. 

A terceira tarefa deve-se ao fato de que a política de relações exteriores do atual governo é altamente favorável à cooperação multilateral. Cabe, pois, à nossa comunidade científica contribuir para fortalecê-la, divulgando e expandindo as suas experiências bem sucedidas, algumas já bastante consolidadas. 

Mas isso não basta. Cabe-lhe também reivindicar a ampliação do apoio a projetos de pesquisa multilaterais, com intercâmbio de estudantes, docentes e pesquisadores com os países parceiros. É preciso, ainda, que as nossas universidades e institutos de pesquisas se tornem polos de atração para jovens participantes de acordos de intercâmbio em áreas estratégicas para o futuro do mundo e que, reciprocamente, os seus países acolham a nossa juventude.

Um esboço de psicologia social do 8 de Janeiro 

Conjugo abaixo um olhar psicanalítico a um exercício simples de demografia para sugerir que, por repugnantes que sejam os fatos, o estudo do comportamento de massa da extrema-direita pode iluminar a nossa reflexão sobre o Brasil de hoje.

A base de dados encontra-se no site do governo federal. Trata-se das listagens dos homens e mulheres autuados/as em flagrante durante o ataque golpista à Praça dos Três Poderes. Essas listas destinam-se a auxiliar as famílias e as/os advogadas/os das/os detidas/os a localizá-las/os. Contêm nome, data de nascimento e unidade federativa (UF).

Agrupei os dados numéricos em categorias simples, tais como gênero, idade e UF, e baseei a interpretação desses agrupamentos em análises da alienação contemporânea por dois importantes autores brasileiros. O primeiro é o dramaturgo e roteirista Izaías Almada; o segundo é o psiquiatra e psicanalista Jurandir Freire Costa.

O procedimento consistiu em dividir as datas em faixas etárias e organizar as UFs por regiões. Essa partição revelou padrões significativos, resumidos nos dois gráficos abaixo. 

O primeiro gráfico exibe os números de detidas/os por unidade federativa, com as regiões dispostas em sentido horário, ou seja: Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste. 

Quanto ao gênero, não é surpresa que a maioria das UFs exiba uma adesão masculina bem maior que a feminina. Por outro lado, é desconfortante que o sudeste, o sul e o centro-oeste somem um número tão elevado de adesões femininas (a saber, 65, o que representa 35% da participação desses estados).

Gráfico 1 – Invasores da Praça dos Três Poderes por região: Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste.

Quanto à geografia, é inquietante que, na visualmente inconspícua região norte, os estados que têm exorbitado do garimpo em terras indígenas (a saber, Pará, Tocantins, Rondônia e Roraima) somem o expressivo número de 60 casos. A exceção que confirma a regra é Roraima (um único caso). Lembremos que o próprio governador do estado zombou da ilegalidade da prática, minimizado a responsabilidade do garimpo pela crise sanitária nas terras yanomami. 

Outro fato digno de nota é que, na região nordeste, o estado que sobressai é a Bahia, onde a votação do presidente Lula foi a maior do país. A aparente contradição se deve, provavelmente, à queda do desempenho eleitoreiro das elites patrimonialistas, inimigas ferrenhas do Partido dos Trabalhadores. É razoável suspeitar que tenham patrocinado as/os detidas/os, que somam 46.

O padrão das regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste é, por sua vez, coerente com o crescimento da sua participação em atividades econômicas predatórias nos últimos anos. Saltam aos olhos os estados de Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. 

Note-se que esse padrão converge com o do emplacamento dos ônibus atualmente investigados por envolvimento nos atos golpistas. Eis os números, publicados pela Agência Pública: São Paulo, 31; Paraná, 23, Minas Gerais, 14; Mato Grosso e Mato Grosso do Sul somados, 5.  

Acrescente-se que os veículos de São Paulo se concentram no interior, principalmente nas cidades situadas entre a capital e Limeira, abarcando toda a região metropolitana de Campinas. Esses municípios são, aliás, os que mais contribuíram para a desconcertante vitória do capitão e seus aliados no estado mais rico da nação. 

O conjunto desses dados indica que os patrocinadores dos atos golpistas são empresários beneficiados pelo surto de desregulação causado pela recente reedição, discutida no ensaio precedente, da prática da ditadura militar de governar por meio de decretos, portarias, etc. Esses empresários apostam no extremismo por temerem que a necessária regulação de certas atividades cerceie a “liberdade” dos seus negócios. Justificam-no através de uma crença inquebrantável no dogma de que qualquer programa social tende a gerar déficit fiscal.

Passemos agora ao Gráfico 2, que exibe a distribuição das/os detidas/os em três faixas etárias: menos de 30 anos, entre 30 e 59 anos e mais de 60 anos.

Aqui, embora as proporções dos gêneros sejam obviamente as mesmas, a faixa etária predominante, a saber, de 30 a 59 anos, é a única que tem um número importante de mulheres, 280, o que representa 30% do total. Lembremos que os membros desse grupo ficaram particularmente sujeitos ao desemprego e/ou ao subemprego desde a primeira crise internacional do capital financeiro, deslanchada pela quebra do banco Lehman Brothers nos EUA em 2008. Naquele momento, já havia um número significativo de mulheres disputando o mercado de trabalho brasileiro – com uma probabilidade de se frustrarem muito maior que a dos homens.

No Brasil, os reflexos dessa crise se aguçaram na década seguinte, dificultando a redução da desigualdade e ensejando o implacável lawfare da Lava-Jato contra partidos e políticos de esquerda. Abriu-se assim o caminho para o golpe de 2016 e a ascensão da extrema-direita. Paralelamente, o conservadorismo se expandia, graças à disseminação da teologia da prosperidade e da sua pregação meritocrática pelas igrejas neopentecostais.

Apreciemos, agora, a atualidade do texto de Izaías Almada publicado no Blog da Boitempo em novembro de 2011, sob o título A Espetacularização da Barbárie:

“Mal a humanidade inicia a sua caminhada pelo século XXI adentro e os sinais exteriores da barbárie reclamam seu perverso protagonismo no dia a dia de todos nós cidadãos e começam a pontuar, a se destacar, nos grandes feudos de comunicação em massa. O capitalismo perdeu a compostura de vez e escancara para quem quiser ver a verdadeira natureza de suas entranhas.
A mídia corporativa, a televisão em especial, dominada pelo entretenimento e pelo jornalismo de mau gosto dos últimos anos, avançou um degrau no plano de embrutecimento das consciências, na banalização sistemática dos costumes, dos sentimentos, e na alienação política dos cidadãos.” 

As palavras do escritor poderiam se aplicar aos acontecimentos de Brasília, mas referiam-se, na verdade, à série de assassinatos de líderes muçulmanos ocorridos em torno da virada da década de 2010, cobertos com espalhafato pela mídia internacional. Nunca é demais lembrar que os referidos crimes foram em geral cometidos pelas agências de segurança do Norte global, sob o emblema de “guerra ao terrorismo”.

Observe-se que a espetacularização da barbárie é um dos modos mais populares de insuflar a forma de alienação que Hannah Arendt chamou de “banalização do mal”. 

Já na década de 1960, Guy Debord demonstrou que qualquer acontecimento novo incita a mídia a alimentar a engrenagem voraz da “sociedade do espetáculo”. Menos de cinquenta anos depois, a tecnologia tratou de permitir que qualquer pessoa pudesse se julgar capaz de produzir seu próprio espetáculo – não importa quão tresloucado – sem medo de conspurcar o verso terso de Cazuza: “Faz parte do meu show”.

É um efeito da espetacularização da barbárie que os homens e mulheres que se fotografaram e/ou filmaram depredando a sede do governo federal neguem qualquer envolvimento com o terrorismo, apesar de terem postado as provas do crime nas redes sociais. Tão apartadas/os estão da sua cidadania que sequer se dão conta de que o seu “show” faz parte de uma ação criminosa orquestrada e, muito menos, de que essa ação serve a interesses alheios aos seus.

Passemos, agora, às reflexões, igualmente antecipatórias, de Jurandir Freire Costa sobre o comportamento dos cidadãos comuns cooptados pela ultradireita – disponíveis apenas em vídeo. Trata-se de uma aula magna proferida no Congresso PSB 40 em agosto de 2019 e intitulada “Desigualdade e Desencantamento”. Naquele momento, o que se buscava compreender eram as razões da vitória de Jair Bolsonaro em 2018.

O psicanalista afirma que a sociedade globalizada, financeirizada e espetacularizada produz desencanto: privadas dos seus laços de solidariedade e confusas quanto aos seus valores e desejos, as pessoas tendem a procurar culpados pelas suas frustrações, voltando-se, quase sempre, contra instituições e/ou autoridades constituídas. Segundo o autor, a alienação por desencantamento divide-se em três tipos: o desenraizamento, o ressentimento e o desvalimento.

O desenraizamento afeta a maior parte da elite econômica, que despreza a sua terra e seu povo e os reduz a meros objetos de espoliação. Assim, as/os “desenraizadas/os” são colonizadas/os empedernidas/os, identificadas/os com o colonizador. Da mesma forma, deslumbram-se com o Norte global e aproveitam qualquer oportunidade, não importa quão ilegal, que impulsione os seus lucros. 

O ressentimento, por sua vez, afeta aquelas/es que se consideram fracassadas/os em comparação com os seus pares ou modelos de sucesso. Elas/es geralmente atribuem o suposto fracasso aos “desmandos” e/ou “incompetência” de quem quer que esteja (ou tenha estado) à frente de alguma instituição pública no momento da crise que os/as atingiu. 

Finalmente, o desvalimento afeta aquelas/es que se julgam destituídos/as até de um lugar no mundo. São atraídas/os pela criminalidade, mas tendem a evitar o crime organizado e abraçar promessas de salvação, ainda que envolvam violência e crimes contra a humanidade. Assim, participam de grupos de ódio, injúria e difamação; e disseminam notícias falsas; ou até, no limite, aderem à destruição espetacularizada.

Lembremos que essa trilogia foi proposta como uma descrição sucinta da mentalidade dos que haviam votado em Jair Bolsonaro em 2018. Aqui, revisei apenas a sua caracterização empírica, atualizando o inventário de comportamentos abarcado por cada categoria. Mas o ponto forte da taxinomia permaneceu e até sobressaiu: captar o sintoma da violência latente, fadada a explodir logo que a população se sentisse suficientemente “respaldada” por armamentos. 

Não é surpresa que essa previsão tenha se cumprido, pois os comandos militares conheciam bem o poder das bombas de efeito retardado, físicas ou psicológicas. Sabe-se que um bom número de indivíduos, depois de admitidos nas polícias ou forças armadas, passam a imitar, pouco a pouco, os sanguinários feitores e capitães do mato que escreveram com sangue alguns dos capítulos mais tristes da nossa história. 

Ademais, a trilogia joga nova luz sobre os comportamentos resumidos nos gráficos acima. Pode-se dizer que o padrão regional dos ‘ressentidos’ e ‘desvalidos’, expresso no Gráfico 1, serve para estimar a proporção de patrocinadores ‘desenraizados’ por UF. É lamentável que as regiões mais prósperas tenham contado com um patrocínio maciço, evidenciando o triunfo do patrimonialismo em encabrestar o progresso e a justiça social. Em contrapartida, é animador que as elites do Norte e Nordeste não tenham logrado participar na mesma proporção.

Já o Gráfico 2 sugere que o ressentimento afeta sobretudo os adultos maduros não idosos – os quais, como já vimos, foram os mais atingidos pelos desastres econômicos globais do final da década de 2000. No Brasil, essas pessoas vêm sendo alvo de manipulação pela direita desde que essa se infiltrou nas manifestações populares de 2013 – quando as mais jovens tinham apenas cerca de 20 anos.

Em suma, a alienação por ‘desencantamento’ provoca uma atrofia da cidadania, com perda progressiva de memória. O/a ‘desencantado/a’ renega o passado coletivo e aposta no individualismo e na meritocracia como possibilidades únicas de futuro. Isso aponta para a urgência de avaliar as chances de revertermos o desencantamento na amostra populacional constituída pelos/as terroristas citados/as. Quanto mais improvável essa reversão, mais imperioso é impedir que esse mal contagie as novas gerações. 

E eis que chegamos de volta à pauta da educação. Assumi-la plenamente em todos os níveis governamentais (federal, estadual e municipal) nunca foi tão imperioso quanto é agora. Trata-se não apenas de resgatar as novas gerações da terra arrasada a que foram relegadas, mas, sobretudo, de lhes devolver a capacidade de acreditar e sonhar.

A mobilização cidadã como condição de refundação da educação pública

Muitas/os já atribuíram a causa dos crescentes índices de suicídio e dependência de drogas em adolescentes e jovens adultos à “perda de sonhos”. Lembremos que, segundo a OMS, o suicídio é terceira causa mortis dos brasileiros entre 15 e 29 anos

Como imaginar o futuro e apostar nele tendo que crescer sob condições tão adversas quanto as do Brasil atual? Ao menos para as/os menos favorecidas/os, não há outra saída senão a escola pública – desde que seja plural, inclusiva e capaz de alimentar o anseio por uma vida digna e produtiva. Já em 1932 essa ideia era explicitada no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova:

“Mas, de todos os deveres que incumbem ao Estado, o que exige maior capacidade de dedicação e justifica maior soma de sacrifícios; aquele com que não é possível transigir sem a perda irreparável de algumas gerações; aquele em cujo cumprimento os erros praticados se projetam mais longe nas suas consequências, agravando-se à medida que recuam no tempo; o dever mais alto, mais penoso e mais grave é, decerto, o da educação que, dando ao povo a consciência de si mesmo e de seus destinos, e a força para afirmar-se e realizá-los, entretém, cultiva e perpetua a identidade da consciência nacional, na sua comunhão íntima com a consciência humana.”

Dentre os signatários do documento estavam Anísio Teixeira, Cecília Meirelles e Fernando de Azevedo. É notável que os ensinamentos desses fundadores tenham inspirado as próximas gerações a erigir, em menos de um século, um sistema de educação pública sólido o bastante para sobreviver à ascensão da extrema-direita deslanchada pelas crises sucessivas do capitalismo.

Mas é preciso admitir que, após a naturalização da barbárie pelo governo fascista, esse sistema está combalido e exige praticamente uma refundação. Avaliemos, o mais objetivamente possível, as nossas condições de alcançá-la. 

A primeira notícia animadora surgiu em abril, quando o presidente Lula anunciou um repasse de 2,44 bilhões às instituições federais de pesquisa e ensino superior, sendo R$ 1,7 bilhão destinados à recomposição direta das finanças, a serem distribuídos entre as universidades (R$ 1,32 bilhão) e os institutos (R$ 388 milhões). Os R$ 730 milhões restantes destinam-se a atender obras e demais iniciativas interrompidas pelo governo fascista.

Menos de um mês depois, o presidente assinou uma medida provisória que assegura R$ 4 bilhões aos estados e municípios para alcançar a meta de um milhão de novas matrículas em tempo integral. O MEC e o BNDES garantirão, ainda, recursos adicionais às novas escolas. Eis mais um grande acerto do novo governo. Desde a gestão de Anísio Teixeira no INEP, é consensual entre os educadores progressistas que o regime de tempo integral é o mais propício à construção da cidadania. 

Não obstante, o projeto de ampliar a rede pública de ensino enfrenta óbices que podem reduzir significativamente o seu alcance – e até o seu êxito.

O primeiro e mais grave deles é a política educacional instituída pela lei federal n.º 13.415, conhecida como Novo Ensino Médio, inicialmente proposta como medida provisória por Michel Temer em 2017. Como apontaram especialistas tais como Nora Krawczyk e colegas, o projeto ameaça o futuro do alunado das escolas públicas, além de agravar a precarização do professorado. 

Sob o pretexto da flexibilização do currículo, as disciplinas científicas e humanísticas obrigatórias tornam-se eletivas, em prol de alternativas profissionalizantes agrupadas nos chamados “itinerários formativos”. Para lecionar as últimas – que podem incluir conteúdos tais como “empreendedorismo” e “sustentabilidade” – basta ser um/a profissional do mercado com suficiente experiência no ramo. Em outras palavras, a exigência de formação docente é relativizada ou mesmo dispensada. 

É majoritária entre pesquisadores, professores e alunos a visão de que a lei federal n.º 13.415 deve ser revogada e não reformada. Entretanto, às vésperas do prazo final para a sua implementação – a saber, 2024 –, a controvérsia persiste, sendo mais debatida em foros externos que internos ao governo. Cabe lembrar que, num Congresso dominado pelo fisiologismo do Centrão, não haverá acordo favorável à revogação sem uma forte pressão do MEC, assim como do presidente da República e dos congressistas da sua base de apoio.

Em vista da composição e da presidência da Câmara dos Deputados, precisamos permanecer atentas/os contra atrasos da tramitação na casa. Haja vista o projeto de lei n.º 56/2023, que revoga a instituição das escolas cívico-militares pelo decreto n.º 10.004, de 5 de setembro de 2019. Apresentado pelo deputado Rogério Correa, do PT-MG, em 1 de março de 2023, está até agora parado na mesa do Presidente aguardando despacho.   

É importante lembrar que esse projeto é bem menos controverso que o do Novo Ensino Médio, pois concerne escolas civis cuja permanência sob tutela militar é considerada inconstitucional pela maioria dos juristas. Todavia, em face das recentes manobras do ativismo de extrema-direita para forçar o policiamento escolar – p. ex., os sucessivos episódios de violência física e moral contra alunos e professores de todo o país –, é possível que a população, tomada pelo pânico, faça demandas de policiamento, o que pode dificultar ou atrasar a revogação. Antecipando-se a isso, o ministro Flavio Dino instituiu a Operação Escola Segura, que mantém a guarda das escolas sob controle do seu ministério.

Por outro lado, em franco contraste com o ensino “cívico-militar”, outra matéria controversa que afeta seriamente a imagem do Brasil no exterior foi votada às pressas no último 30 de maio. Trata-se do projeto de lei n.º 490/07, conhecido como “marco temporal da demarcação das terras indígenas”, que retrocede a vigência dos territórios a 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. 

Note-se que os protestos veementes no plenário e da bancada progressista não impediram a aprovação do regime de urgência. Tampouco foram suficientes para obter um placar menos vergonhoso que os 283 votos favoráveis contra os 155 contrários. Pior ainda, o PL saiu-se com a descabida proposta misógina de punir seis deputadas do PT e do PSOL pela veemência das suas falas – tachadas de “falta de decoro”.

Como era de esperar, a repercussão internacional dessa votação foi extremamente negativa para o Brasil, até então visto como o líder natural da preservação da Amazônia. Veículos de imprensa tais como The Guardian deram extensa cobertura aos fatos, ecoando os protestos das etnias prejudicadas e das/os parlamentares que as apoiaram e disseminando-os por todo o mundo.

Isso indica que o governo, por mais progressista que se queira, é hoje refém não só da elite econômica, historicamente contrária ao avanço social, mas também dos seus prepostos em instituições-chave, tais como o Congresso Nacional e o Banco Central (a esse respeito, veja-se a conclusão).

Perante esse cenário instável e preocupante, que inclui até participação de alunos e professores universitários em atos de agressão a pessoas e ao patrimônio público, está claro que o obscurantismo e sua sequela mais grave, o negacionismo, ainda não foram suficientemente debelados da nossa sociedade. Se não conseguirmos extirpá-los, teremos, em pouco tempo, um arrefecimento do interesse da juventude pela ciência.

Portanto, todas/os nós – cidadãs/ãos que fizemos campanha e votamos pelo retorno a um Brasil democrático e progressista – não podemos nos deixar intimidar e cruzar os braços neste momento. Não há outra saída senão irmos às ruas, não só para apoiar os esforços de reconstrução do governo, mas também para cobrar-lhe o cumprimento de outras promessas de campanha, sendo a mais urgente – e inadiável – a erradicação da fome. 

Sem um firme engajamento da sociedade civil, a capilaridade do desmonte logrado pelos fascistas vai continuar corroendo por dentro as nossas instituições até esvaziar a nossa capacidade de contribuir para a construção de uma ciência efetivamente comprometida com a saúde do planeta e com a dignificação da espécie humana.

Dar o tom na cooperação multilateral

As falas do presidente Lula a favor da multipolaridade, que têm suscitado irritação nos dirigentes do Norte global e admiração nos seus colegas do Sul, têm constituído uma esperança para a parcela da comunidade científica que acredita no potencial criativo da descolonização. 

Mas a esperança é apenas o primeiro passo na construção de um projeto. De fato, há muitos cientistas brasileiros dispostos a compartilhar dados, teorias, tecnologias, programas de formação, etc. com os seus colegas dos BRICs ou de quaisquer outros países que queiram colaborar. Graças ao seu vasto território e à sua diversidade étnica, o Brasil tem uma vocação natural para produzir ciência alinhada com modos de vida sustentáveis. 

Tem igualmente, como vimos em textos anteriores desta série, uma comunidade científica engajada e disposta a discutir questões éticas e políticas sempre que necessário.  Haja vista a inclusão de temas tão promissores quanto controversos, tais como a biotecnologia, na pauta do seminário “Ciência, Tecnologia e Inovação”, que inaugurou a série “Projeto para um novo Brasil”, promovida pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) em junho do ano passado.

Nas ciências naturais, o nosso potencial inclui o estudo de uma ampla farmacopeia, de fontes de energia renováveis, de procedimentos zootécnicos sustentáveis, de formas não poluentes de mineração, etc.

Nas ciências humanas, estamos entre os poucos países que já possuem uma geração de intelectuais e antropólogas/os indígenas em plena atividade de construção de uma nova narrativa sobre os povos originários. Da mesma forma, implantada a lei de cotas, um bom número de intelectuais afrodescendentes passou a defender trabalhos de mestrado e doutorado com novas leituras das senzalas, quilombos, favelas e periferias. Contrastem-se essas conquistas das minorias étnicas brasileiras com a recentíssima decisão da Corte Suprema estadunidense contra os programas de ação afirmativa nas universidades do país. 

Esse contraste fica ainda mais evidente se tivermos em conta o achado dos professores Raj Chetty, David Deming e John Friedman de que a classe média é também prejudicada no acesso às universidades do topo de rankings como o Times Higher Education

Além disso, como apontei num texto sobre os riscos crescentes de “desumanização” das ciências humanas, temos uma tradição de cultivo da filosofia, das letras e das artes que, por mais que tenha sido herdada dos colonizadores, se matizou e refinou sob a influência da crítica marxista, popularizada entre nós a partir dos movimentos de modernização do século XX.

O exposto deve ter bastado para sugerir que temáticas tais como as acima delineadas tendem a atrair parceiros do Sul global e prometem até mudar a nossa relação com os tradicionais parceiros do Norte – que tendem a nos ver como consumidores da sua ciência e tecnologia. 

Que a colaboração de todos seja bem-vinda, desde que contribua, efetivamente, para materializar um projeto de mundo mais pacífico, igualitário e respeitoso da natureza, onde a ciência, livre do jugo do lucro, trabalhe a favor do interesse coletivo. 

Entretanto, a responsabilidade de perseguir essas metas não pode recair apenas sobre a comunidade científica. O novo Brasil reivindicado pela SBPC e afiliadas precisa de apoio explícito do governo, sob forma de políticas de indução de linhas de pesquisa para fins de colaboração internacional. E, para que isso resulte em programas de cooperação eficazes, faz-se necessário um vigoroso esforço de diplomacia científica. 

Assim, é indispensável que o MCTI estreite cada vez mais a sua relação com as universidades e institutos de pesquisa – e considere as suas sugestões e reivindicações tão ou mais importantes que as do empresariado. Sob essa ótica, a transferência de tecnologia deve ser uma via de mão dupla, apoiada no conhecimento das semelhanças e diferenças entre os recursos dos países envolvidos. 

Para “vender o seu peixe”, a representação brasileira deve conhecer bem as inovações recém-saídas ou em gestação nos laboratórios das suas principais instituições científicas. Por exemplo, em troca da facilitação da nossa transição para a tecnologia de internet 5G pela China, podemos lhe oferecer uma ampla gama de biofertilizantes de última geração, como, p. ex., os produzidos pela Embrapa.

Além disso, os dirigentes do CNPq, da Capes, da Finep e das agências estaduais de fomento devem conhecer profundamente o estado da arte em áreas estratégicas e o nosso potencial de contribuir para o seu avanço, a fim de priorizar acordos de cooperação com instituições política e cientificamente afins do Norte e do Sul globais. 

Enfim, devemos, definitivamente, recusar a posição de colonizados e escolher os nossos parceiros com base numa epistemologia comum que transcenda o modelo cartesiano da ciência como dominação e exploração do meio ambiente. Cabe, pois, aproveitar o ensejo da reconstrução do país para colaborar com os colegas indígenas e afrodescendentes na construção de um quadro de referência teórico inovador no qual novos conhecimentos possam desenhar uma ciência mais democrática.

Isso não quer dizer que devamos rejeitar in toto os paradigmas recebidos. Eles incluem métodos suficientemente neutros para poder continuar respaldando o raciocínio científico – p.ex., a lógica, a matemática, o cálculo formal básico –, mesmo na presença de outras ontologias. 

Pendências do primeiro semestre de governo

Esta série de ensaios surgiu da esperança despertada na comunidade científica, bem como na população em geral, pela candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva à eleição presidencial de 2022. Termina, agora, com uma avaliação positiva dos seus seis primeiros meses de governo, ainda que seja preciso sublinhar a extrema gravidade de certas questões pendentes. Examinemos brevemente as principais.

A primeira já foi suficientemente discutida: a proposta do novo ensino médio não é reformável. Trata-se de um projeto que rouba os sonhos da juventude da periferia precarizando-a e avassalando-a. 

A consequência, enxergada por poucos, é que não haverá renovação de ideias na academia brasileira se as suas portas se fecharem aos menos favorecidos. Os jovens de elite já foram inseridos na engrenagem capitalista pelas suas escolas e pouco esperam do futuro além de uma condição financeira equiparável às das suas famílias.

A segunda também foi aqui tratada, sob forma de uma análise do 8 de Janeiro. Recapitulando a terminologia introduzida por Jurandir Freire Costa, não resta dúvida de que a extrema-direita continua cooptando ressentidos e desvalidos por meio de um pacto corrupto com a elite desenraizada. A sociologia e a psicologia social precisam conhecer profundamente esses fenômenos a fim de respaldar possíveis medidas para contê-los.

A terceira foi brevemente mencionada acima, mas exposta com mais vagar no ensaio anterior. Trata-se da impunidade dos militares. Tivemos mais de 700 mil óbitos por covid-19 devido ao negacionismo do governo, em especial o atraso na aquisição de vacinas por um general negacionista, ministro da Saúde de um capitão genocida. A punição exemplar dos responsáveis por esse descaso, assim como dos militares envolvidos na tentativa de golpe do 8 de Janeiro, é um passo necessário para extirpar definitivamente a pretensão da caserna à tutela do país.

Finalmente, uma pendência crucial para nos habilitar a liderar o movimento de democratização da ciência é nos libertarmos do arsenal digital do Norte global. A presente situação das universidades públicas, alugando recursos de busca e armazenamento do Google e da Microsoft, não é suficientemente segura e pode, no limite, constituir uma ameaça à nossa soberania. Que garantia temos da privacidade desses espaços virtuais? É cabível confiar nos prolixos contratos de empresas que nos vigiam?

À primeira vista, parece tratar-se de um beco sem saída, já que as universidades e institutos de pesquisa europeus e estadunidenses estão no mesmo caso. Ademais, a maior parte da sua produção científica depende de investimentos dessas empresas. 

Lembremos, porém, que os russos e os chineses fazem boa ciência prescindindo totalmente desse mecenato. Portanto, a cooperação multilateral é a melhor via de acesso do Brasil à sua independência no mundo digital. Competência não nos falta; faltam-nos apenas recursos para projetos de grande envergadura. Ainda que tenhamos de obter alguns pela cooperação com os nossos parceiros, é possível angariar – ou, melhor dizendo, resgatar – outros aqui mesmo. Basta conter minimamente o poder leonino do mercado financeiro.

Todos sabemos que a nossa falta de recursos, seja para projetos sociais, seja para a educação, a ciência, a tecnologia e a inovação, é inteiramente artificial. Essa suposta penúria nos foi infligida pelo governo fascista, por exemplo, ao decretar a independência do Banco Central. São os juros exorbitantes que engessam o investimento governamental. 

A propósito, o deputado federal Lindbergh Farias, do PT-RJ, acaba de protocolar uma denúncia contra o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, no Conselho Monetário Nacional (CMN), por descumprir os objetivos da instituição, que são o desenvolvimento econômico e o fomento do emprego.

Mais uma boa razão – e, talvez, a maior – para irmos às ruas. É um direito do povo brasileiro pressionar as autoridades financeiras contra a estratosférica taxa de juros que faz de todas/os nós reféns de um regime espoliativo originado na conivência das nossas elites com o imperialismo.

Leia Também:

Um comentario para "Ciência: a reconstrução abre novos horizontes"

  1. Posso contribuir com minha teoria que integra boa parte dos saberes sociais exposta no livro CIÊNCIA SOCIAL GERAL, já em funcionamento em diversas instituições nacionais e internacionais. Já que “novas epistemologias serão necessárias”…
    Saudações com votos de êxito.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *