Caatinga brasileira, notável e desconhecida

País abriga o bioma semiárido mais biodiverso do planeta – mas ainda não o preserva. Com mais de uma centena de espécies ameaçadas, apenas 2% dele são protegidos. Entraves vão da ignorância à falta de vontade política

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Por Michael Esquer, em O Eco

Crateús é um município cearense limítrofe com o estado do Piauí. Da área urbana da cidade até a sede da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Serra das Almas – a maior do Ceará – é pouco mais de uma hora. Na chegada, o deslumbre. São mais de 6 mil hectares que há mais de duas décadas resguardam uma Caatinga ainda preservada – parte dela restaurada –, e que mostram as múltiplas nuances dessa que é considerada a floresta semiárida mais biodiversa do mundo, a despeito do estereótipo que vincula o bioma a imagem de um ambiente seco, inóspito e sem vida. 

Nessa época do ano, a Caatinga atravessa o final da temporada chuvosa. A cor predominante na mata caatingueira ainda é o verde. Mas em breve essa paisagem irá se transformar na “mata branca” que dá nome ao bioma – do Tupi, “Caa” significa mata e “tinga” branca. Com a queda das folhas de grande parte da formação florestal do bioma, é o branco que tinge a Caatinga durante a seca. Isso porque os troncos esbranquiçados, então, ficam à mostra. Como se entrassem em um modo “econômico”, essas árvores despem-se de folhas para reduzir a perda de água pela transpiração em períodos prolongados seca. 

Caatinga arbórea na Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Serra das Almas, em Crateús, no Ceará. Foto: Michael Esquer / ((o))eco

“Faz parte da dinâmica do bioma ter um período onde ocorre o desfolhamento. Mas não quer dizer que seja uma natureza morta. Quer dizer que está em um período de hibernação. Logo que há uma chuva tudo isso se recupera e, rapidamente, as folhas crescem e retomam seu vigor, mantendo a biodiversidade não só das plantas, mas também dos animais que compartilham desse ambiente”, explica o geólogo Washington Franca Rocha, professor do Programa de Pós-Graduação em Modelagem em Ciências da Terra e do Ambiente na Universidade Estadual de Feira de Santana (PPGM-Uefs), na Bahia. 

Prova do funcionamento desse ecossistema é a rica fauna e flora abrigadas por este semiárido biodiverso onde se insere a Caatinga. De fauna, segundo o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), são mais de mil espécies sobre as quais se conhece o estado de conservação, sendo que destas mais de uma centena estão ameaçadas de extinção. Já de flora, são quase cinco mil – entre as que se conhece o estado de conservação, 30% também estão ameaçadas de extinção em algum nível. 

Arte: Gabriela Güllich/Fonte: Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA).

Entretanto, o que se encontra nesse refúgio de fauna e flora, na qual também se transformou a RPPN Serra das Almas – a reserva abriga 323 espécies de plantas e 353 de fauna –, é, ao mesmo tempo, um microcosmo à parte, que contrasta com a realidade que tem transformado – e ameaçado – a paisagem da Caatinga nos últimos anos. 

Entre todos os biomas do país, por exemplo, foi a Caatinga quem teve o segundo maior aumento percentual da taxa de desmatamento de 2020 para 2021 – um aumento de quase 90%. Crateús (CE) mesmo, onde fica a maior parte da RPPN Serra das Almas – uma pequena porção está inserida em Buriti dos Montes (PI) –, está entre os cinco municípios que tiveram a maior área desmatada no Ceará em 2021, segundo levantamento apresentado pelo MapBiomas no Dia Nacional da Caatinga (28 de abril).  

De um lado, a falta de reconhecimento

Mas um outro fator também contribui para a invisibilização e, consequentemente, desvalorização que esse ecossistema único sofre no País. Este é o fato de que, pela Constituição Federal, a Caatinga não é considerada um patrimônio nacional – logo não recebe tratamento especial de proteção –, mesmo sendo este o único bioma exclusivamente brasileiro. 

“Estar entre os biomas que são patrimônio nacional dá mais visibilidade ao bioma, você começa a considerá-lo como nacional. Quando as pessoas estudam a Constituição, elas veem só aqueles biomas que estão ali como patrimônio nacional”, explica a ((o))eco Roberta del Giudice, secretária-executiva do Observatório do Código Florestal (OCF), durante intercâmbio realizado na RPPN Serra das Almas pelo “No Clima da Caatinga”, um projeto da Associação Caatinga patrocinado pelo Programa Petrobras Socioambiental (PPSA). 

A falta de conhecimento, diz ela, é um dos principais motivos para o desfecho que se tem hoje. “A Constituição foi escrita em 1988. A visão que se tinha de conservação estava relacionada a combater o desmatamento da Amazônia, Mata Atlântica, o Pantanal também tinha muita visibilidade. Mas não tem nenhuma razão para a Caatinga não ter entrado nessa lista, a não ser um lapso, uma visão equivocada do bioma”, comenta. 

Para o coordenador geral da Associação Caatinga, uma organização da sociedade civil de interesse público (Oscip) que administra a RPPN Serra das Almas – e que igualmente promove a conservação de terras, florestas e águas na Caatinga –, a não inclusão do bioma na lista de biomas “patrimônios do Brasil”, da mesma forma como aconteceu com o Cerrado, pode ter se dado por um equívoco ou, ainda, de forma deliberada. “É como se esses dois biomas não tivessem uma certidão de nascimento”, conta a ((o))eco Daniel Fernandes.

Estar entre aqueles que são reconhecidos como patrimônio nacional implica em maior visibilidade e, consequentemente, maior importância ao bioma Caatinga, aponta o Observatório do Código Florestal. Foto: Michael Esquer / ((o))eco

De outro, a falta de proteção

E o impacto disso, aponta a secretária-executiva do OCF, está refletido até mesmo na proteção conferida ao bioma. Atualmente, menos de 9% da Caatinga está legalmente protegida em algum nível, segundo o MMA. Mas o percentual de proteção integral é ainda menor: apenas cerca de 2% – estas são mais restritivas à ação humana. 

“Ou seja, você tem uma parte muito exposta do bioma sem qualquer tipo de proteção e que, claro, é uma ameaça de fato à preservação da biodiversidade”, complementa o pesquisador do PPGM-Uefs.

Historicamente, a região semiárida onde está inserida a Caatinga, explica Rocha, foi por muitas décadas considerada uma área já degradada, muito por conta da falta de conhecimento. “A Caatinga em momentos de seca, ou de períodos não chuvosos, é uma paisagem sem expressão verde, que é o que caracteriza uma área florestada dentro da percepção de todo mundo”, detalha o geólogo.

Mas nesse bioma não é assim. “Então quando você vê uma região desfolhada, você não entende e parte para a percepção de que aquilo é uma área já arrasada, o que não é verdade”, enfatiza Washington. 

Esse desconhecimento, diz o pesquisador, assola até mesmo aqueles que vivem no bioma. “Todos os estados do Nordeste mais Minas Gerais tem Caatinga no seu domínio, mas mesmo assim a Caatinga não tem o seu devido reconhecimento nacional enquanto bioma”, acrescenta.  

Para o coordenador geral da Associação Caatinga, o não reconhecimento enquanto patrimônio nacional impacta diretamente na ausência de políticas públicas de proteção ao bioma e contribui para o seu processo histórico de desvalorização. “O que consequentemente estimula o uso irracional dos recursos naturais, desmatamento, queimadas e uma série de outros prejuízos”, alerta Fernandes. 

O desmatamento na Caatinga

Em 2021, a Caatinga foi o terceiro bioma mais desmatado do País. Com 116,2 mil hectares desmatados, ele ficou atrás apenas do Cerrado, que teve uma área de desmate de 500,5 mil hectares. Em primeiro lugar, figurou a Amazônia, com 977 mil hectares desmatados, ou 59% do total da área desmatada no Brasil. Os dados são do relatório anual do desmatamento (Rad) no Brasil, elaborado pelo MapBiomas.

Entretanto, foi a Caatinga quem teve o segundo maior aumento percentual  da taxa de desmatamento de 2020 para 2021. Saltando de 61,5 mil hectares para 116,2 mil hectares, o aumento foi de 88,9%, também segundo o Rad – o Pampa figura em primeiro lugar com um aumento de 92,1%. 

“O desmatamento é um vetor que afeta também os recursos hídricos”, explica o pesquisador do PPGM-Uefs, que é também quem coordena a equipe Caatinga no MapBiomas. Sem o que ele chama de “capa de vegetação” é mais difícil para que, durante períodos chuvosos, a Caatinga consiga reter água. “A característica da Caatinga, do semiárido, não é que ele não tenha chuva nenhuma, mas sim que a média de chuva é baixa”, esclarece Rocha. 

Ou seja, depois de um período de sete a oito meses sem chuva, quando chove é torrencialmente, mas em um curto período de tempo, que dura cerca de dois a três meses. “E se a superfície não está retendo essa chuva, ela escorre e vai para o oceano, e se for colocar isso na escala de médio prazo, você tem uma tendência de redução da disponibilidade de recursos hídricos”, explica Washington. 

O fogo também dá seus sinais no bioma. Entre 1985 e 2021, a Caatinga teve 13,7 milhões de hectares queimados, o que representa cerca de 16% da área total do bioma. “Quando a gente pega o mapa de cicatriz de incêndios no Monitor do Fogo, a gente percebe, claramente, na borda oeste da Caatinga uma frequência maior de, pelo menos uma vez, da ocorrência de incêndio”, expõe o geólogo. 

Mas qual a relação do fogo com a expansão de áreas agrícolas? “Muito do manejo para essa abertura de áreas é feito com queimadas, atingindo essas áreas naturais”, esclarece Rocha, ao enfatizar que os sistemas têm demonstrado que o principal vetor de transformação na Caatinga, hoje, é a supressão de áreas naturais para a implantação de projetos agropecuários. 

“Se a Caatinga não for incluída como um patrimônio nacional, você diminui a possibilidade de que haja mais investimentos, mais consideração ao bioma. Isso aumenta a pressão para o desmatamento”, argumenta a secretária executiva do OCF.

Vegetação nativa em área de afloramento rochoso típico do semiárido, na RPPN Serra das Almas. Foto: Michael Esquer / ((o))eco

Uma proposta no meio do caminho

Há mais de uma década tramitam no Congresso Nacional propostas que tentam reconhecer a Caatinga, assim como o Cerrado, como patrimônio nacional. Uma delas é a Proposta de Emenda Constitucional (PEC)  504/2010, de autoria do senador Demóstenes Torres (DEM-GO). A PEC foi aprovada no Senado em 2010, mas ainda aguarda análise na Câmara dos Deputados. 

“Sempre quando entra para a pauta de votação, surge outro tema mais prioritário na visão deles e a PEC é retirada da pauta”, conta Fernandes. Para ele, o componente político influencia o andamento da matéria, sobretudo por conta do lobby do agronegócio dentro do Congresso. 

“Não é interesse da bancada do agronegócio proteger a Caatinga, principalmente o Cerrado. Talvez até se fossem PECs diferentes, uma para o Cerrado e uma para a Caatinga, a Caatinga talvez pudesse até já ter sido reconhecida”, hipotetiza o coordenador geral da Associação Caatinga. “Mas a gente sabe que o interesse do agronegócio na região do Cerrado é muito forte. Então, há toda uma manobra da bancada ruralista para tirar de pauta”, comenta. 

O Cerrado, por exemplo, chegou a 2021 com apenas metade de sua área coberta por vegetação nativa – desde 1985 o bioma perdeu 27,9 milhões de hectares de vegetação nativa. Os dados também são de levantamento do MapBiomas. Até aquele ano, pastagens e soja já ocupavam, respectivamente, 24% (um aumento de 24% em relação a 1985) e 10% (um aumento de mais de mil %) da área total do Cerrado. 

Para Roberta del Giudice, nesse cenário, se torna imperativa a mobilização de políticos locais para que a Caatinga seja incluída entre os biomas patrimônios do Brasil. “É importante que a população local se mobilize, mas o resto do Brasil também. É um bioma que tem importância para todos os outros. Sem mobilização social, a gente não consegue seguir adiante com essa PEC”, defende. 

Por este motivo, esta é uma das pautas a ser trabalhada pelo OCF. “A gente quer incluir isso entre as nossas ações no Congresso Nacional nesse ano ainda”, revela Roberta.

Chuva sobre Caatinga arbórea no mirante do Centro Ecológico Samuel Johnson, na RPPN Serra das Almas. Foto: Michael Esquer / ((o))eco

Uma parte da solução

O coordenador geral da Associação Caatinga, ao mesmo tempo, esclarece que o simples fato de tornar a Caatinga um patrimônio nacional não vai resolver todos os problemas do bioma. “Mas é uma forma de um resgate histórico, de reconhecer a importância desse bioma, de reconhecer as pessoas que vivem aqui no semiárido nordestino”, defende. 

Sendo este o único bioma que ocorre exclusivamente no Brasil, “não há motivo para ele não ser considerado um patrimônio nacional se ele é o mais nacional dos biomas, digamos assim”, completa Daniel. 

Mas se de um lado não resolve todos os problemas, de outro é fato que o reconhecimento da Caatinga como um patrimônio nacional obriga  — ao menos em teoria — a garantia de que a sua utilização se dê “dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais”, conforme já dispõe a Constituição Federal sobre a Amazônia, Mata Atlântica, Serra do Mar, Pantanal e Zona Costeira, atualmente ecossistemas considerados patrimônios nacionais do Brasil. 

“Eu acredito que, a partir disso, haverá um estímulo para a criação de um arcabouço jurídico, um conjunto de leis, que venham de alguma forma a proteger mais o bioma”, defende o coordenador geral da Associação Caatinga ao mencionar que este status, se conferido, dará ao bioma a prioridade necessária para a elaboração de políticas públicas. 

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