Os gatos esmagados do Rio de Janeiro

Meu olhar embotou e não guardava piedade, mas ao vê-lo caminhar numa dança de força e raiva, pensava: ele é o gato, aturdido

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Crônica de Síndia Bugiarga

Quando tudo aconteceu, não sabia bem do que se tratava. Mais uma tentativa de assalto, –algo cada vez mais banal no Rio de Janeiro, pensei comigo e segui caminhando pela Rua Santo Amaro, para a segunda aula de yoga que daria naquele dia. Havia despertado às cinco da manha, descido Santa Teresa com cuidado. O bairro tem sido alvo de assaltos com uma frequência assustadora, diz o Belga que me aluga um quarto. Um mês atrás fizeram arrastão no Bar do Gomes, você acredita?, conta ele.

Sento num boteco na Rua do Fialho com a Rua Benjamin Constant, peço um café e um cigarro avulso – tentando parar, digo ao moço no bar. No telejornal, o governo do Rio é denunciado por lançar um edital que prevê gastos de R$ 2,5 milhões com serviços de táxi aéreo. O estado vive uma crise sem precedentes, que deixa servidores públicos sem receber em pelo menos 18 municípios, em alguns não há sequer da prevista para pagamento, e, em outros, os salários estão sendo parcelados. Em pelo menos nove cidades, os servidores ainda não receberam o 13º salário de 2016.

Junto a isso, e talvez como consequência da crise econômica, politica e do desemprego recorde, a taxa de mortes violentas no estado aumentou 15% nos primeiros seis meses do ano em comparação com o mesmo período de 2016. São cerca de 3 500 vítimas, uma média de 19 por dia. E o índice da violência tem vetores certeiros: jovens negros em bairros pobres.

E é diante desse caos que arruína a vida de muita gente, as isola (muitos não têm dinheiro para se deslocar de ônibus) e paralisa a economia, que o governador do estado, Pezão, quer ter a garantia de ir para Brasília em aeronave que possui banheiro privativo, compartimento independente e poltrona giratória para as reuniões.

Os taxistas que também faziam seu desjejum no bar se revoltam, “essas pessoas não têm noção”, diz um deles. Outro responde: “Ladrões! Tínhamos de matar todo mundo. Mas somos um povo pacífico”. A raiva e a impotência diante dos noticiários são afetos tão banais quanto os assaltos na cidade “maravilhosa”.

De volta ao tumulto na rua ao lado.

Não demorei muito para perceber que o que acontecia na Rua Santo Amaro não era uma tentativa de assalto. Um homem segurando numa das mãos um facão enferrujado perseguia outro. Ao lado dele, uma jovem de cabelos tingidos de loiro chorava muito, entre assustada e desorientada. Tremia. A bolsa dependurada no antebraço esquerdo, a mão direita tentava uma ligação. Vou chamar a polícia, não o deixe escapar, pedia ela ao homem que segurava o facão.

Algumas pessoas começaram a se aproximar ao redor dos três, que se deslocavam rua acima. O homem com o facão dizia: “Você não vai escapar, não. Tenta correr e você vai ver o que é um paraibano maluco!”. O homem que sofria as ameaças fechava o punho esquerdo e batia contra a palma da mão direita, um modo de amedrontar o outro, talvez. Alguém finalmente pergunta: o que houve? O que ele fez?

A moça chora mais ainda. O homem perseguido acabara de pisar na cabeça de sua gata e de deslocar o maxilar do animal. Ela não entendia porque ele havia feito isso. Perguntava para ele. Ele estufava o peito de modo a peitar o medo do cerco que se tornava cada vez maior ao seu redor. No muro, uma fila de sacolas com seus pertences, o facão que o outro homem segurava também lhe pertencia. A moça seguia chorando e gritava: cadê a polícia que não vem! Aproximei-me, ela chorava muito, mal conseguia ficar parada, me disse: se você vir o que ele fez com minha gata, ela ia dar cria. Está irreconhecível. Abracei-a, tentando acalmá-la, mas não havia palavras de consolo que a fizessem parar nos meus braços. Ofereci café; doce, quente a ela, que recusou e voltou a caminhar de um lado para o outro. Imaginei que ao se mover ele conseguisse afastar a imagem da gata ferida de sua memória. E que quando parava, a imagem a invadia e por isso ela repetia atônita: ela está irreconhecível. Depois olhava para o homem acuado no muro e dizia, é um monstro.

O homem com o facão na mão era seu pai. Semanas antes, havia acolhido o migrante, quando este chegou à rua sem ter onde ficar. Todos os seus pertences que agora jaziam no muro do que fora o Hospital da Beneficência Portuguesa, estavam em sua serralheria, que ficava a alguns metros de distância dali.

O cerco aumentava e se fechava mais ainda. O homem acuado imprima em suas feições traços ainda mais duros e assustados, seus pertences a seus pés davam à imagem uma dimensão de magnificência às avessas. Era como estar diante das ruínas dos jardins suspensos da Babilônia. Um rapaz, com sotaque espanhol, pega um pedaço de pau e lhe atinge braços e cabeça. O pai da moça intervém, impedindo-o de desferir mais golpes. A moça chora com mais desespero. Sua mãe aparece vestindo ainda roupas de dormir. Incrédula, olha para o homem que atacou a gata da filha e diz: como alguém pode fazer isso com um bicho indefeso.

As pessoas fechavam mais o cerco e tornavam o homem alvo da pergunta: por quê? Por quê? A questão parecia atravessar cada uma das pessoas que, ao passar na rua, paravam para ver o tumulto. A sensação de impotência tinha como consolo a sentença: ele era um monstro, era um louco, só podia ser.

Quando o rapaz com sotaque espanhol lhe acertou a cabeça mais uma vez, gritei advertindo-o: tu vai produzir uma cena pior do que a que a do gato. Ele estava tão tomado pela raiva que sequer me ouvia. O pai da moça passou a impedir que outras pessoas se aproximassem. A lucidez o obrigava a isso, embora ela embotasse algumas vezes, foi quando o rapaz conseguiu a brecha para acertar mais uma vez o homem acuado, agora a boca. Ele sangrava. Não, ninguém iria bater nele, gritou o pai da moça, todos iriam esperar a polícia chegar.

Confesso que não conseguia ter pena daquele homem que pisava firme no chão, olhava baixo, tinhas pernas e braços fortes e barriga saliente. Sua figura me perturbava, era como ver um animal enjaulado e ao olhar para ele, inesperadamente, dei de cara com o meu animal enjaulado. Meu estômago se contraiu e tive de perguntar a pergunta que todos faziam, por quê? Estúpida; era óbvio. Ele tinha se tornado o gato ferido, sua boca sangrava, ele tentava se defender de mais um golpe, braços para cima, recuava mais um passo.

Meu olhar embotou e não guardava piedade, mas ao vê-lo caminhar numa dança de força e raiva, olhar enviesado para as pessoas aglomeradas ao seu redor, pensava: ele é o gato, aturdido; todos nós ali éramos um amálgama entre o gato ferido e o homem aturdido. O que víamos só valia e só tinha sentido na medida em que nos olhava. E o olhar dele revelava a nós mesmos a violência do nosso grande querer. A figura dele passou a ser assombrosa, enfantasmada pela imagem da gata esmagada. Era fatal, o condenaríamos à morte. Ele trazia algo que não queríamos acolher: nosso assombroso querer. Lembrei-me das remoções na ladeira dos Tabajaras. Da líder comunitária Irmã Fátima, ao mostrar os animais em cima dos escombros das casas, à espera dos donos que foram removidos. Animais tristes, leais, cumprindo com seu destino, à espera do que nunca viria. A imagem dava a dimensão da violência que a prefeitura – com o apoio do governo federal sob a gestão Lula – impunha à vida das pessoas no Rio de Janeiro.

Não era diferente agora. Aquele homem pobre, sem ter onde morar, prestes a ser linchado por pessoas igualmente pobres, por ter esmagado a cabeça de uma gata. Para lá das barras não havia mundo, diz Rilke no poema sobre a pantera enjaulada. Seu olhar cansou-se tanto, diz o poeta, que já nada retém. Abre mais a pupila das cortinas silenciosas, – então entra uma imagem, passa pela calma tensa dos membros, – e cessa de existir no coração.

Sigo minha rotina, aula de yoga, essa prática milenar que permite mover-se no mais estreito círculo, aturdida por um grande querer, feito homem que esmaga a cabeça da gata. Sustentar o movimento, não deixá-lo cessar, abrir espaço no corpo na inspiração e expiração. Uma das alunas conta que na última quarta viu um homem se jogar em frente ao vagão na Estação de metrô Botafogo. “Diante da violência do acontecido, houve uma indignação geral, alguns passageiros pediam seu dinheiro de volta, já que o metrô não ia mais prestar serviço”. A aluna se dizia atônita, diante da tentativa de suicídio as pessoas pedem seu dinheiro de volta, reclamam um direito. Atônita. Também me sentia assim ao perceber que o destino do homem que esmagou a cabeça da gata, o suicidário e o meu se cruzavam. Se não escapamos desse presente dado, o que nos reserva o futuro?

Terminada a aula, desço a rua. Já não havia mais aglomeração. A polícia levou o homem. Agora o migrante estava nas mãos dos policiais que mais matam no mundo, segundo relatório da Anistia Internacional, divulgado em 2015. Sentei na padaria na esquina da rua, mais um café. No telejornal, um repórter narra o êxodo dos venezuelanos em Boa vista. Uma legião de famintos e desesperados, dizia o repórter, diante de um ginásio desativado para acolher especialmente os descendentes indígenas. Sujeira em toda parte, chuveiros sem água, os banheiros têm de ser limpos pelo menos cinco vezes no dia, contava um dos venezuelanos entrevistados. Que realidade poderia ser pior do que aquela vivida nos campos improvisados? Enquanto o repórter se pergunta, denunciando o distanciamento que sua vida tem da realidade de qualquer imigrante que faz o que precisa ser feito para viver, os venezuelanos continuavam a chegar, homens, mulheres crianças, em busca de trabalho. Garotas cruzando a fronteira aceitando se prostituir, evidenciando que o trabalho precário em nada deve à mais antiga profissão do mundo.

Alguns aceitam executar trabalhos muito aquém de suas capacidades, o que os aproxima muito de cada um de nós, brasileiros. Uma engenheira industrial limpa o banheiro do supermercado do qual o marido, engenheiro civil, conseguiu o cargo de gerente geral depois de quase dois anos de trabalho. Ao menos aqui comemos e temos médicos uma vez por semana, explica um dos moradores do campo.

Lembrei-me do filme Fuga de Alcatraz, de quando Clint Eastwood afirma que tudo que ser quer muito vale o risco, e passa sete meses a cavar a parede de sua cela com uma colher. O filme é baseado em fatos reais e conta da fuga realizada em 1962 de três detentos, que se lançaram na nas águas gélidas e sujeitas a fortes correntezas da Baía de São Francisco rumo à liberdade: os irmãos John e Clarence Anglin e Frank Morris. Seus corpos nunca foram encontrados no mar. Aliás, a família Anglin acredita que os irmãos fugiram para o Brasil. Um dos fatos examinados pelo FBI como sinal de que eles sobreviveram à travessia é a mãe dos irmãos ter recebido um buquê de flores sem cartão, todos os anos no dia de seu aniversário, até sua morte, em 1973.

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