Ramonet: por que o Oriente Médio está em chamas

Três guerras, um quebra-cabeças. Em declínio, EUA recuam, mas agem por meio de satélites. Irã busca mais espaço. Sauditas apelam para ultra-fundamentalismo.

IRAQ-UNREST-DISPLACED

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Por Ignacio Ramonet | Tradução Cauê Seignemartin Ameni

Com Síria, Iraque e os confrontos entre Israel e os palestinos na Faixa de Gaza, há agora três guerras abertas ocorrendo simultaneamente no Oriente Médio. A estas hostilidades militares, é preciso acrescentar as tensões com o Irã, envolvendo seu programa de energia nuclear, e as rivalidades diplomáticas entre diversas potências  regionais, como Arábia Saudita e Egito. Tudo confirma: a região é o “barril de pólvora” do planeta e a “ante-sala da confusão” no mundo.

Uma primeira pergunta vem à mente: porque essa acirramento repentino? As causas locais são múltiplas, devido à própriaa diversidade dos atores envolvidos e de seus motivos (religiosos, étnicos, territoriais, políticos, petrolíferos etc). Mas um fato geopolítico parece determinante: a decisão dos Estados Unidos de reduzir seu envolvimento militar no teatro do Oriente Médio e se focar no leste da Ásia. Após os belicosos anos Bush, o governo Obama parece ter chegado a duas conclusões estratégicas: primeiro, um poderoso aparato militar não pode fazer tudo; e o país, atingido pela crise, já não tem os meios para exercer uma hegemonia absoluta.

Resultado: os Estados Unidos estão se retirando do Oriente Médio. Sobretudo, desde que o argumento principal para sua presença na região, o petróleo, vem perdendo a cada dia um pouco mais de importância, na medida em que o gás ou petróleo de xisto, no subsolo americano, substituem gradualmente as importações de hidrocarbonetos do Oriente Médio.

É este o momento geopolítico preciso que a região atravessa: uma potência hegemônica, os EUA retiram-se progressivamente; e outras potências e forças locais confrontam-se para ocupar o espaço político abandonado. Os acontecimentos parecem se acelerar de repente, como se todas as partes envolvidas começassem a pressentir a aproximação de um acontecimento decisivo, quando novas cartas serão colocadas na mesa. Isto dá espaço para os conflitos atuais, num contexto regional sacudido pelo crescimento do conflito entre sunitas e xiitas que incendeia toda a região do Crescente Fértil, de Gaza ao Golfo Pérsico.

Uma leitura fragmentada – a que os jornais diários oferecem  – não captura o movimento geral, no cenário de operações. Temos a impressão de que aquilo que está acontecendo em Gaza não tem nada a ver com os acontecimentos na Síria, e que eles são independentes das hostilidades no Iraque ou as negociações com o Irã. Na realidade, é uma falsa impressão, uma vez que todos os acontecimento são articulados entre si.

Começamos por Gaza. Por que a ofensiva atual de Telaviv? Aparentemente as coisas são simples: tudo começou em 12 de junho, quando três jovens israelenses foram sequestrados na Cisjordânia. O governo de Israel acusou imediatamente o Hamas (que governa Gaza) de estar por trás do sequestro e, em seus esforços para tentar deter os sequestradores dos jovens, multiplicou as detenções arbitrárias. O Hamas nega qualquer responsabilidade no sequestro de três jovens. Mas isso não impede que as autoridades israelenses prendam quatrocentos palestinos supostamente próximos do Hamas. Outros são mortos. Casas e apartamentos pertencentes a suspeitos são destruídos. Em retaliação, foguetes são disparados de Gaza contra Israel. Em 30 de junho os corpos dos três jovens desaparecidos são encontrados: foram assassinados perto de Halhoul, na Cisjordânia. O primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu disse: “O Hamas é responsável; o Hamas pagará”. Nada, nenhuma prova ou evidência do envolvimento do Hamas no sequestro e assassinato hediondo dos três jovens israelenses. No entanto, nada impediu, alguns dias depois, a “punição” militar lançada contra Gaza.

Qual é a verdadeira razão? É preciso voltar a 29 de março. Naquele dia, Israel recusou-se a libertar, conforme acordado, um último grupo de prisioneiros palestinos, exigindo uma extensão das negociações de paz para além do prazo previsto de 29 de abril. É preciso dizer que o governo de Netanyahu – o mais à direita na história de Israel – não demonstrou vontade real em negociar com a Autoridade Palestina e abandonar sua política de colonização, conforme demonstrou a iniciativa natimorta do secretário de Estado norte-americano John Kerry, lançada ano passado.

O presidente palestino, Mahmoud Abbas, declarou-se disposto a prolongar as discussões, com a condição de que Israel libertasse os prisioneiros, congelasse os assentamentos e aceitasse discutir a demarcação das fronteiras do futuro Estado palestino. O governo de Telaviv rejeitou as demandas. E a partir desse momento, as hostilidades entre israelenses e palestinos aumentaram.

Neste contexto, no momento em que o processo de paz encontra-se totalmente atolado, uma sucessão de eventos ocorre: os palestinos assinam, em 23 de abril, um acordo de reconciliação entre o Fatah — que governa a Cisjordânia — e o movimento islâmico Hamas, no poder em Gaza. Juntos, decidem formar um governo de “consenso nacional”. Liderado pelo premiê Rami Hamdallah, e composto por tecnocratas, ele não conta com nenhum membro filiado ao Hamas. Os líderes israelenses ficam furiosos, e acusam o presidente palestino Abbas de ter escolhido “o Hamas, e não a paz”.

Afim de tranquilizar os israelenses e a comunidade internacional, o presidente Abbas prometeu que o novo governo da unidade nacional, rejeitará a violência, reconhecerá Israel e respeitará os compromissos internacionais. Por sua vez, Washington anunciou sua intenção de colaborar com o novo governo palestino e acrescentou que manterá sua ajuda financeira à Autoridade Palestina. A União Europeia também declarou apoio ao novo gabinete palestino.

Mas o primeiro-ministro israelense, Bejamin Netanyahu, afirma: “O Hamas é uma organização terrorista que visa a liquidação de Israel; esta aliança é inaceitável”. Logo após, ocorre o sequestro dos três jovens israelenses. E como os acontecimentos estão ligados, fornecem o pretexto para o governo israelense “destruir o Hamas”.

Na verdade, as coisas são ainda mais complexas. Pois, de fato, o Hamas vem sofrendo as consequências de uma reversão de alianças feitas recentemente. Lembremos de que, sob a influência de dois Estados próximos da Irmandade Muçulmana, Turquia e Qatar, o Hamas – ele mesmo, uma ramificação da Irmandade – mudou sua diplomacia regional no ano passado e fez escolhas geopolíticas que se mostraram desastrosas: afastou-se do presidente sírio, Bashar Al-Assad (e, portanto, do Irã) em plena guerra civil na Síria, pensando em forjar uma nova aliança com a Irmandade Muçulmana no Egito, que poderia ajudar o Hamas em Gaza.

Foi um grande erro: todas as previsões fracassaram. A Irmandade Muçulmana, que a Arábia Saudita também combate, foi derrubada no Egito — onde o general Al-Sissi assumiu o poder e não está, obviamente, ansioso por ajudar o Hamas — ligado à mesma Irmandade Muçulmana que ele persegue sem tréguas em seu solo. Em troca, Cairo tem restaurado a cooperação de segurança com Israel, em prejuízo de Gaza, onde condições de vida estão degradadas e os cidadãos estão culpabilizando os dirigentes islâmicos.

Sem o poder necessário, o Hamas não conseguiu melhorar a vida dos dois milhões de habitantes de Gaza. O movimento islâmico permanece sujeito à escalada local de grupos radicais, como a Jihad Islâmica, responsável pelo disparo contínuo de foguetes contra o território israelense. Assim, em um ano, o Hamas perdeu seus principais aliados — a Síria, o Irã e o Egito. Constrangido, aproximou-se do Fatah e da Autoridade Palestina. Atraindo ainda mais a ira do governo de Israel…

Além disso, Bashar el-Assad continua no poder na Síria, apoiado pela Rússia, Irã e o Hezbollah libanês. Embora a guerra em seu país esteja longe de acabar, está claro que as autoridades em Damasco marcaram pontos e, agora, retomaram a iniciativa na guerra.

É neste contexto regional que se desenvolvem os recentes acontecimentos no Iraque. Em especial a tomada, por um grupo de jihadistas sunitas, da importante região de Mosul — não só rica em petróleo, mas também território que concentra os Curdos. Este acontecimento inesperado ocorre no momento preciso em que as negociações entre o Irã e as potências ocidentais, sobre o programa nuclear, estão mais próximas que nunca de levar a um acordo, em que a Arábia Saudita perde sua aposta na Síria.

O reino saudita, ligado a uma vertente radical do islamismo — o wahhabismo — investiu pesadamente na luta para derrubar o presidente Assad. Durante três anos, cerca de 45 mil combatentes estrangeiros, financiados pela Arábia Saudita, foram enviados ao território sírio para lutar contra as autoridades de Damasco. Eles chegaram a oferecer, para engrossar o efetivo dos grupos islâmicos, prisioneiros já condenados à morte, acenando com a possibilidade de se redimir, caso fizessem a guerra santa (jihad) na Síria. O reino não só abriu seus depósitos de armas para a oposição, como teria comprado fábricas de armas na Ucrânia, cuja produção era enviada diretamente para os combatentes na Síria, através da Jordânia. Apesar desta impressionante manobra, as autoridades de Damasco conseguiram manter o equilíbrio de forças no terreno.

É por isso que a resposta chegou no Iraque. Rejeitados na Síria, os jihadistas sunitas juntaram-se ao grupo islâmico ISIS (Estado Islâmico do Iraque e do Levante, em inglês) para lançar uma ofensiva-relâmpago em junho, ameaçando Bagdá. Grupos sunitas armados, menos radicais, aderiram ao movimento com o propósito de criar um califado através das fronteiras entre Síria e Iraque.

Os curdos aproveitaram a chance para apoderar-se de outra cidade, Kirkuk, rica em petróleo, cujo controle disputaram, durante vários anos, com o governo de Bagdá. A incompetência do governo central e sua política favorável aos xiitas criaram as condições perfeitas para a insurgência sunita. Em todo caso, o golpe de força dos jihadistas do ISIS coloca em dificuldades o primeiro ministro iraquiano (xiita) Nouri al-Maliki, aliado de Teerã.

Este embaralhamento de cartas deve resultar no retorno da Arábia Saudita às negociações no Iraque. E ao mesmo tempo esse novo contexto permite, sobretudo, que o Irã volte a ser uma potência regional decisiva. Porque compartilha alguns interesses-chave com os ocidentais, especialmente os Estados Unidos. Os americanos têm em comum com o Irã xiita o mesmo inimigo: o jihadismo sunita, e particularmente seu grupo atual mais ativo, o ISIS, financiado pela Arábia Saudita, oficialmente um aliado de Washington…

Como podemos ver, num Oriente Médio em chamas em plena recomposição, a grande questão estratégica atual é o confronto entre Arábia Saudita e Irã — travado, “por procuração”, por meio de aliados locais destes dois países. O Estado-tampão que constituía o Iraque é agora disputado abertamente por ambos os lados. Com o pano de fundo do conflito na Síria e no Iraque, e a continuação do confronto do exército israelense contra o Hamas na Faixa de Gaza, a região vive uma virada geopolitica. A diplomacia parece paralisada, interrompida, o governo norte-americano e os europeus estão cada vez mais convencidos de que a estabilidade no Oriente Médio não pode ser alcançada sem a contribuição do Irã. Este quer ser reconhecido como potência (inclusive, no desenvolvimento de um programa nuclear civil). Não será algo que a Arábia Saudita engolirá com facilidade. E ela ainda não pronunciou sua última palavra.

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