Os impasses da Internet vistos do lado de dentro

Ao visitar Vale do Silício, Alistair Duff vê antigo espírito hippie reduzido a individualimo, desigualdade, crença no mercado e exploração do trabalho

Vista panorâmica do Vale do Silício, Califórnia. Aqui surgiram tecnologias que mudaram o mundo. Aqui cresce o espírito ultra-capitalista que pode por tudo a perder

Vista panorâmica do Vale do Silício, Califórnia. Aqui surgiram tecnologias que prometeram mudar o mundo. Aqui expressa-se o espírito ultra-capitalista que pode por tudo a perder

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Ao visitar Vale do Silício, principal polo de tecnologia da informação do mundo, Alistair Duff vê antigo espírito hippie reduzido a individualimo, desigualdade crença no mercado e exploração do trabalho

Entrevista a Kaveh Waddell, em The Atlantic | Tradução Eduardo Sukys

O epicentro da revolução da informação é, e sempre foi, o Vale do Silício. Há outros postos avançados de tecnologia, como Seattle, Austin e até mesmo Nova York, mas nenhum deles definiu a sociedade moderna da informação — e foi definido por ela — tão integralmente quando o Vale do Silício.

Idealismo e progresso caracterizavam a revolução em seu berço, logo após a Segunda Guerra Mundial. Os produtos e ideias que surgiram dela — por exemplo email, comércio online, biotecnologia — melhoraram vidas e mudaram a natureza do governo e da economia. Mas em algum momento nas últimas décadas, os valores originais da revolução deram espaço para algo bem diferente. O novo Vale do Silício é grande, é corporativo e deseja devorar seus dados.

Alistair Duff, um professor de sociedade da informação e política na Edinburgh Napier University, na Escócia, afirma que chegamos a uma crise. Duff diz que a liberdade que caracterizou os primeiros dias da revolução da informação começou a ser suplantada pela “dominação da tecnologia da informação sobre os humanos, e a subordinação das pessoas a um imperativo tecnológico”.

Conversei com Duff sobre a mudança nos ideais da sociedade da informação, o papel do governo em regulá-la e sobre sua visita recente ao Vale do Silício. Veja a seguir uma transcrição pouco editada de nossa conversa.

Kaveh Waddell: Em sua pesquisa, você afirma que passamos por uma “revolução da informação”, e ainda desenvolveu uma teoria normativa para entendermos nossa nova sociedade da informação. Por que precisamos desse roteiro?

Alistair Duff: Falta para nós um roteiro para atacar os problemas do século 21. A Revolução Industrial criou bastante pensamento criativo e sistemático sobre como a sociedade deveria funcionar. Acredito que após a revolução da informação, precisamos fazer exatamente o mesmo.

Precisamos olhar para o todo, não apenas para indivíduos trabalhando em sua privacidade, ou para a propriedade intelectual ou a distribuição de informações científicas, ou isso e aquilo; é preciso abordar essa questão de uma forma holística e integrada. Não há muitas pessoas fazendo isso, e eu tentei começar algo assim com a minha Teoria Normativa da Sociedade da Informação (Normative Theory of the Information Society).

Quanto tempo após a Revolução Industrial os filósofos começaram a pensar em uma teoria normativa sobre essas mudanças na sociedade?

O termo “revolução industrial” não existia até [Arnold] Toynbee, o historiador, criá-lo em 1886. Isso foi após o auge do processo. Mas antes dessa era ser batizada dessa forma, houve uma quantidade incrível de respostas criativas ao que eu chamaria de crise normativa da Revolução Industrial.

O movimento socialista pode ser visto como uma forma de humanizar o sistema de fabricação, domar a industrialização e ter certeza de que seria orientada para o bem-estar das pessoas.

Porém, tivemos algo parecido com isso em nossa própria era? Não tivemos. Então, há esse campo aberto.

Durante a exploração de sua teoria, você foi até o Vale do Silício para ver qual era a cara da revolução da informação. Você viu algo durante sua visita que ajudou a entender a sociedade da informação ou de onde ela veio?

Vi muita coisa boa. Eu não condenaria o Vale do Silício: Há bastante inovação acontecendo lá; muitos trabalhos novos sendo criados. O lado positivo do capitalismo está presente em muitos aspectos. É um ambiente bastante agradável.

Mas acho que há um lado obscuro nisso, o que confirmou algumas de minhas teorias sobre a era da informação. Há uma tremenda desigualdade, o que é inaceitável. A desigualdade não pode ser tão grande que se cristalize em distinções de classe, relações de mestre e servo, e acredito que isso já exista no Vale do Silício, até certo ponto.

E acredito que há questões com relação ao abuso de dados. Na verdade, algumas das corporações de informação que eu entrevistei admitiram isso. Há problemas relacionados à propriedade intelectual, preocupações profundas sobre algumas das inovações do Google. Acredito que eles estão tratando os direitos autorais com pouco cuidado, tudo em nome do progresso.

Precisamos de implicantes que façam perguntas diretas e não apenas aceitem a narrativa de progresso do Google, e de outras empresas do vale.

Você entrevistou pessoas importantes que fizeram parte da revolução da informação quando ela estava começando. Elas sempre trazem à tona a importância do idealismo em seus trabalhos. Esse é um valor fundamental da sociedade da informação?

Sim, pois a tecnologia da informação tem uma capacidade inata de trazer o progresso, de emancipar, de melhorar a vida, aumentar o tempo de lazer, melhorar a comunicação e reintegrar uma humanidade despedaçada.

Esse é o grande potencial da tecnologia da informação. Ela é uma tecnologia capacitadora que pode, deve e frequentemente é usada para avançar em ideais importantes, como a comunicação humana, irmandade e liberdade (algo em que vocês, norte-americanos, são muito bons).

Mas também pode ser abusada, e vemos cada vez mais isso acontecer. Até certo ponto, os velhos ideais ainda vivem no Vale do Silício, mas também há um abuso da tecnologia da informação, e a ameaça que eu chamo de “tecnocracia”. É um termo que não usamos mais frequentemente, e com tecnocracia não estou falando do domínio de especialistas, mas do domínio da tecnologia da informação sobre os seres humanos, e a subordinação das pessoas a um imperativo tecnológico. Isso é uma ameaça real, e acho que está quase fora de controle.

Muitas empresas estão trabalhando visando o bem-estar social, mas o bem-estar social que estão fornecendo é, às vezes, contrabalanceado por violações de privacidade ou pelo desequilíbrio profundo entre a vida pessoal e profissional sobre a qual você escreveu. Como essas doenças sociais se encaixam nessa utopia que o Vale do Silício está tentando criar?

Bom, elas não se encaixam. Elas militam contra essa utopia. A privacidade está sob ameaça.

Preciso discordar de [CEO da Apple] Tim Cook. Estou com o Estado nessa questão, absolutamente. Acho que Tim Cook está fora de si. É um caso claro no qual os direitos do Estado prevalecem sobre o direito da privacidade individual, e digo isso como defensor da privacidade. Temos que usar o bom sendo com relação à privacidade, não fanatismo.

Mas, no geral, a privacidade está sob forte ameaça. Ela está recuando de pequenas maneiras e de outras grandes. Por exemplo, pesquisas recentes mostraram que caminhoneiros estavam deixando de trabalhar com tecnologias da informação por estarem sendo monitorados com muita rigidez pelos controladores. E, tradicionalmente, faz parte do sonho dos caminhoneiros de todos os lugares ter um pouco mais liberdade e autonomia. Por isso, em muitos casos, a privacidade está em se afastar. Isso é ruim, e é um pnto no qual os ideais foram comprometidos.

Quero voltar para a história de Tim Cook um momento. Tenho que dizer que estou um pouco surpreso com a sua reação. Mas o Vale do Silício, como você deve ter percebido, tem um temperamento um pouco libertário. Você acha que sua reação demonstra uma divisão cultural? Na Europa, as pessoas entendem o valor do governo de uma maneira diferente.

No Vale, eu encontrei o antiestatismo. Encontrei isso em executivos de corporações, na comunidade de ex-hippies, nos quarteirões boêmios. Em geral, há um antiestatismo muito forte nos Estados Unidos, especialmente na Califórnia e mais ainda no Vale do Silício. E eu acho que é uma filosofia errônea.

Li Anarquia, Estado e Utopia, de [Robert] Nozick,  A Ética da Liberdade, de Murray Rothbard, Capitalismo e Liberdade, de Milton Friedman. É uma filosofia falha. O valor essencial não é a liberdade: é justiça. A liberdade precisa ajustar-se ao contexto de justiça social. E quando ela viola a justiça, sinto dizer que a justiça abafa a liberdade.

O libertarianismo diz que a liberdade é o valor mais importante. Mas não acho que esse seja o caso. Sou um seguidor de John Rawls, o grande filósofo político de Harvard, e em sua Teoria da Justiça, ele deixa claro que a justiça é a virtude mais importante na vida política.

Deve-se incorporar uma grande soma de liberdade, incluindo algumas liberdades inalienáveis, mas não é possível abafar a justiça com liberdade.

Você acha que deve haver uma norma ou teoria global de como organizamos esses valores, ou há alguma flexibilidade para norte-americanos e europeus abordarem as coisas de forma diferente, ou para as pessoas no Oriente Médio ou na China abordarem seus valores na sociedade da informação de forma diferente?

Acho que a Declaração Universal de Direitos Humanos foi uma tentativa de uma norma universal, e ela inclui a privacidade. Acredito que há certas coisas que devem transcender as nações. Se a privacidade é um direito humano, ela deve transcender os limites nacionais. Mas não convém impor um sistema político em todo o  mundo.

Então, certamente, sendo um europeu, eu não iria querer transformar os Estados Unidos em uma Finlândia. Acredito em democracia social, mas os EUA não vai se transformar tão cedo.

A menos que elejamos Bernie Sanders…

Bem esses terremotos podem acontecer.

Houve uma declaração de privacidade feita pelo ombudsman europeu de privacidade chamada Declaração de Privacidade de Madrid. Esse tipo de coisa é útil. Acredito que a Europa foi o modelo de excelência em proteção de dados, por isso temos algo a ensinar para o mundo.

Mas é difícil. Em meu último texto, que ainda está sendo revisado, eu defendo um conceito que chamo de companheirismo da rede (fellowship of the net). Acredito que isso seja algo que precisamos desenvolver, pois acho que esses grandes sites de rede social não vão nos levar muito mais longe. Também precisamos apostar em alguns ideais antigos da comunidade humana, e no que costumava ser chamado de irmandade, mas que agora você pode chamar de companheirismo ou conectividade. Esses devem ser ideais universais que podem ajudar a reintegrar um mundo assustadoramente dividido.

Então, sim, precisamos trabalhar em plano global. Mas se você pretende impor um sistema político em todo o mundo, não terá meu apoio.

Acho que muitas redes sociais modernas exigem que as pessoas abram mão de um pouco de sua privacidade para entrar e participar da conversa. É uma compensação válida?

Até certo ponto, sim. Começou com Well, depois vieram o Friendster, o MySpace, o Twitter, o Facebook. São organizações comerciais; precisam levantar dinheiro para fornecer esses serviços, e para isso precisam usar seus dados.

Mas acho que isso foi longe demais. Na verdade, gostaria de ver uma comuna da informação, algum desenvolvimento de site de rede social do setor público ou de domínio público. Pensei em começar uma por conta própria, e até registrei um domínio chamado Sisi International, que significa “simply siblings” (simplesmente irmãos), a ideia de que somos realmente parte de uma família humana. Porém, obviamente, desenvolver o site seria uma ocupação em tempo integral.

Não acredito que redes comerciais particulares possam reintegrar a humanidade.

As pessoas com as quais você conversou no Vale do Silício eram, usando suas palavras, os “pioneiros da revolução”. Como você acha que seria a conversa se você tivesse falado com a geração atual de trabalhadores de tecnologia?

Acho que os ideais não são tão sólidos quanto costumavam ser. Se você ler a história do Vale do Silício, havia um idealismo incrível nos anos 1960, valorização dos ideais hippies de paz e comunidade etc. Não tenho certeza de que isso é tão forte atualmente.

Como um de meus informantes afirma, uma espécie de “mentalidade de Harvard” começou a dominar. Prevalece a psicologia do parquinho, em vez da comuna. Acredito que há um elemento mercenário mais forte do que antes.

Até certo ponto, a revolução está sendo traída pela nova geração de empreendedores. E você pode ver isso na forma como eles exploram suas equipes até a morte. Acho que isso, por si só, é uma traição dos ideais humanos. Eles não devem esperar que as pessoas trabalhem 24/7/365. Essa frase foi inventada originalmente para servidores de computadores. Não é certo aplicá-la aos humanos.

Você atenta em seu último texto contra a imitação do Vale do Silício na criação de novos centros de tecnologia em outros locais. Se você estivesse criando um novo Vale do Silício, qual seria a diferença do atual?

Pareceria mais com a Escandinávia do que com o Vale do Silício. Não estou dizendo que não devemos desenvolver o setor de tecnologia, e é certo que podemos aprender muito com o Vale do Silício.

Na Escócia, temos o que é chamado de Silicon Glen. Em meu ponto de vista, é algo que precisa ser muito mais explorado pelo governo escocês. O corredor central entre Glasgow e Edimburgo precisa ser revigorado. Tivemos o SkyScanner, e alguns outros nomes importantes, saindo do Silicon Glen, mas poderíamos estar fazendo muito mais. Temos as melhores universidades, nossa própria Stanford: realmente acho que precisamos de um vale tecnológico na Escócia.

Mas o que não devemos fazer é incorporar o abuso dos limites entre trabalho e vida pessoal, devemos tratar as pessoas com respeito, devemos ter mãos-de-obra integradas. Um estudo mostrou que apenas 2% da mão-de-obra do Google, do Yahoo e de algumas outras empresas importantes é negra — contra 12%, no conjunto da população norte-americana é negra. Isso não é bom. Não estou dizendo que eles descriminam abertamente os negros, duvido muito disso, mas não estãofazendo muita coisa para mudar.

Precisamos do melhor do Vale do Silício e do melhor da democracia social europeia, combinados em um novo tipo de centro tecnológico.

Há um livro de Manuel Castells e Pekka Himanen chamado The Information Society and the Welfare State: The Finnish Model (“A Sociedade da Informação e o Estado do Bem-Estar Social — O Modelo Finlandês”), que argumenta que é possível ter um tipo de sociedade da informação diferente do modelo ultra-libertário, tipo “o vencedor leva tudo”, criado no Vale do Silício. Você pode ter uma sociedade da informação mais humana, mais proporcional e mansa, como a que vemos na Finlândia.

Isso exigiria mais influência governamental?

Sim, vamos ser honestos. O Vale do Silício tem base em subsídios do governo, em contratos do Departamento de Defesa. Ele foi o principal personagem na origem do Vale do Silício nos anos 1940 e 50, e ainda é uma presença forte, visível e invisível, secreta e aberta.

Portanto, é um mito, um mito ultra-liberal, a ideia segundo a qual o Estado não estar envolvido nas empresas de alta tecnologia norte-americanas. Vamos falar abertamente sobre isso: diríamos que o Estado tem um papel na proteção de trabalhadores, na saúde e segurança, em políticas de integridade, no subsídio a startups. O Estado deve implicar-se em ajudar as pessoas a começar empresas e em formar os cidadãos.

O Estado não é o vilão: é formado por pessoas que trabalham juntas por meio de uma agência para coordenar as coisas, portanto devemos usá-lo.

O Japão fez isso. O Japão é líder em tecnologia da informação, e sem dúvida foi a primeira sociedade da informação. Cunhou o próprio termo “sociedade da informação” (“joho shakai”). E o estado teve um papel fundamental para isso. Foi uma política dos anos 1960 que determinou o desenvolvimento de uma sociedade da informação japonesa: há uma história de sucesso para citar.

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