Verdade. Que mentira…

Só na esfera das ilusões o mal e o bem, a verdade e a mentira, se desligam. Para cultuar a vida, não existem verdades nas quais confiar como confiaríamos num Deus. É a nossa tragédia. Mesmo assim, não descansamos. A arte o sabe

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Cena de “Jacques e a Revolução”, peça-síntese do pensamento de Ronaldo Lima Lins

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Por Ronaldo Lima Lins

Este ensaio foi publicado no livro O felino predador: ensaio sobre o livro maldito da verdade, (2002), de Ronaldo Lima Lins, publicado em 2002.

Sérgio da Fonseca Amaral, professor de Literatura Brasileira e Teoria da Literatura, escreveu a introdução da obra. Clique aqui para acessá-la.

Leia o perfil de Ronaldo Lima Lins e a resenha de “Jacques e a Revolução”, sua obra em cartaz no Rio

Sim, é a mim tão detestável

quanto as portas do Hades o que esconde

uma coisa em seu coração e manifesta outra.

Homero. Ilíada.

Se nos fosse permitido fotografá-los, os ditames da alma, no papel, se desenhariam estranhos. A relação que desenvolvemos com a verdade se mostra de tal modo complexa que, para dizê-la, muitas vezes recorremos à mentira. É uma história antiga. Jean-Jacques Rousseau, quem mais a procurou, entre os nossos próximos, pagou por ela um preço alto e nem ao menos reconheceu, na conclusão da vida, o sucesso de seus esforços.1 É possível que as duas contrárias (verdade, de um lado; mentira, de outro), como instâncias de legitimação, forneçam tão insondável mistura que a química das intenções e a inteligência dos conceitos fracassem, necessariamente, na hora de separá-las. Nunca se pôde dizer que, nessa viagem, navegávamos num mar, embora de tormentas, impossível. Era preciso continuar e, na eventualidade da derrota, substituir uma por outra, de modo que o discurso, valendo-se de uma aparência, complementava ou dissimulava o conteúdo. A mágica consistia em fazer passar, pela repetição, o “não” que a realidade impunha. Aos poucos, porque sempre acontece, a versão se consagraria. Mas não se imagine que um exercício de manipulação, consciente do processo, determine e deforme o uso das palavras com o objetivo de confundir. O complicador resulta do oposto: a mentira vem natural, desliza sobre o solo áspero das coisas e se instala sorrateira. De repente a percebemos. Uma intuição, uma bolha estoura, às vezes cedo, às vezes tarde. Caímos das nuvens.

Mas entender o processo significa parar e pensar. A revolta, a indignação, obedecem a impulsos. Não esclarecem. É preciso caminhar sem pressa, tatear o chão no corte mais agudo do termo, acima das categorias de erros e acertos, único modo de alcançar a luz, no núcleo da contradição, e observar como ela nos ilumina.

Menos inconfortáveis frente a tais mecanismos, os gregos não parecem encará-los como escândalo. Sócrates,2 num diálogo com Hipias, valoriza a capacidade de dissimular, desde que corresponda a uma criação da inteligência. Na confrontação com Aquiles, exemplo de virtude, destaca as qualidades de Ulisses, o astuto. O melhor homem é o que utiliza as coisas com perícia (qualidades, razões, conhecimentos, técnicas, pessoas), não importa se boas ou más. Mesmo a mentira, surgindo em alguém capaz de mentir muito bem, um sábio, a seu modo, não diminui um homem, posto em paralelo com outro menos dotado, não obstante entregue à verdade e disposto a defendê-la.

Se o argumento resvala num sofisma, prova a dimensão relativa dada neste momento por Platão, o narrador do episódio, aos valores redondos, expostos como absolutos nos padrões de comportamento. A atualidade da posição toca em Hegel (para quem, na História, não há bons ou maus: há necessários) e nos chega com um sabor de confirmação, como se, na maior parte dos esforços, estivéssemos, no plano ético, não com Aquiles, mas com Ulisses. Pressentindo a sutileza, Adorno, por nostalgia do humanismo, na análise da barbárie, localiza em Homero a ideologia do esperto. Quer examinar malefícios. Os problemas de uma civilização que, com todas as conquistas, jamais se efetivam,3 obcecada pela idéia de vencer, não importam as conseqüências, ele as encerra no “positivismo”, um positivismo que se nega pela origem e que só nos empresta a prática da simulação. Horrorizado com Auschwitz, é dos judeus, e não dos gregos, que retira a substância para a crítica. Visa, se fosse possível o objetivo, uma proposta de moral. Mas não vale a pena apressar.

No romance O Primeiro Homem, de Albert Camus,4 o personagem principal (com quarenta anos), órfão desde os oito meses, tem um choque no túmulo do pai. Incomodam-lhe as datas. Descobria-o com 29 anos. Treze anos de maturidade os separavam. A sensação de absurdo, de ilusão, atira-o à procura do passado e da verdade. Alguém, alguma coisa, os ludibriara.

O desajuste, como se desafinasse o sentido do mundo, guarda parentesco com as angústias de Rahel Varnhagen, como as descreve Hannah Arendt. Inscrita numa sociedade (a alemã do século XVIII) avessa ao reconhecimento dos judeus5, ela experimenta a ausência de cidadania como angústia, é uma estrangeira que não pode retornar à casa. Constatar que carregava cinco mil anos de uma história que não escolhera, como uma condenação, empurra-a para o limite do estranhamento. Não importa que o mesmo seja o quinhão que, de certa maneira, atinge mesmo os não-judeus postos de um lado ou de outro da rejeição. Os seres humanos não escolhem quando e onde virem à existência. A diferença está no princípio da fraternidade ferida, por falta de uma comunidade capaz de reconhecer e aliviar o sofrimento. As minorias se organizam para fazer frente à adversidade e à opressão. No século XVIII, tais minorias só contavam com o recurso da introspecção, o isolamento da alma, ainda assim problemático pela carência de instrumental filosófico que respondesse à opressão. Segundo Hannah Arendt, Rahel Varnhagen se debate sem encontrar saídas até que, um dia, descobre as palavras de Lessing: “o pensar por si próprio” – o que este considerava como a capacidade suprema do homem. “Tudo depende do pensar por si próprio”, afirma ela, em dada altura, em conversação. O “pensar por si próprio” libertaria dos objetos e da sua realidade, estabeleceria uma esfera de idéias puras, uma nova região acessível a qualquer ser racional, sem conhecimento ou experiência. Auto-suficiente, o “pensar por si próprio” representa um dispositivo que solta as amarras, é a verdade contra a mentira: a verdade do mundo. Afinando o pensar, num passe de mágica, típico do iluminismo, tudo se esclareceria. A confiança interior, fruto de tal afirmação, elevaria acima dos preconceitos, impediria, como acontecia antes, que a anulação se efetuasse, neutralizaria a humilhação aos olhares, os comentários sussurrados, a barreira social.

O brilho da reflexão fortalece o indivíduo e ilumina a realidade. O equívoco se expõe. O momento apresentava uma qualidade, se comparado aos que o antecederam: inaugurava-se a opressão como categoria política. Criava-se uma circunstância favorável à contestação em tais níveis que reis e príncipes envolveram-se em discussões sobre a injustiça, o que terminaria por sacrificá-los. Logo os desvalidos terão voz.

As idéias, no entanto, caminham para um lado; a ordem para outro. Nem mesmo a imprensa, nota Jules Michelet, acelerou, de imediato, a homenagem à vida contra o espírito da morte, inquisidor, irradiado das fogueiras ibéricas dos séculos XIV e XV. De início, facilitou, pelo contrário, a difusão das concepções dominantes, ainda que cruéis e atrasadas.

O alívio de Rahel Varnhagen graças à observação de Lessing não lhe alterou a condição. O espírito da época continuaria, como de hábito, a realizar a sua influência. Por isso, diz Hannah Arendt, contra os fatos, o pensamento age de modo misterioso, insondável. Para enfrentá-los e encontrar um lugar, no caso da jovem de quem tratamos, só restava a mentira.

Ela cederá. O próprio casamento culminou um processo de sofrimento e de amores contrariados. Terminará aconselhando o marido, igualmente libertário no começo, a usar as artimanhas disponíveis, “enobrecendo-se”, o que se obtinha pela proximidade com indivíduos e posições convenientes.

Verdade e mentira possuem, afinal, simétricas histórias sinuosas.

No ambiente judaico-cristão, não se problematizava a verdade. Proveniente de Deus, a mesma se provava inquestionável. Tinha de se impingir aos homens, com ou sem sacrifícios. A irritação de Moisés diante da resistência dos seus comandados, frágeis para o programa ao qual os obrigava, procede da contradição entre a proposta e a prática do comportamento. O terror e a punição intervirão toda vez que o inconformismo crescer além da conta. A teologia daí desenvolvida concentrou esforços em aprofundar o conhecimento de Deus, e não em comprovar a sua existência, empreendimento moderno, fadado ao fracassado, como sabemos. Mais espertos, neste fim de milênio, suspendemos as discussões sobre o assunto. Elas já não nos interessam. Só nos faltava assumir, alto e bom som, embora desconcertados, a mentira da nossa verdade principal.

Pascal afirma, num pensamento (778): “A história da Igreja deve ser propriamente chamada de a história da verdade”.6 Logo, no entanto, reconhece: “A fé abraça muitas verdades que parecem se contradizer” (788). E: “Há, pois, um grande número de verdades, de fé e de moral, que se afiguram repugnantes, e que subsistem todas numa ordem admirável” (788). Um pouco mais, acrescenta (793): “A verdade se acha tão obscurecida neste tempo, e a mentira tão estabelecida, que, a menos que se ame a verdade, não se pode conhecê-la” (793). Pascal já pertence a uma crise.

Juntas, as questões da verdade, da mentira e da revelação surgem no cristianismo através da idéia do mal. O Deus único e Jesus, seu representante, não se fazem embaraçar pelas contradições da herança grega. Inteira, incontestável, a verdade se impõe. Não ignoramos a dificuldade do mandamento, dada a dispersão natural das impressões típica da existência, voltada para todas as direções, para a vida e para a morte, para a dor e para o prazer, para mim e para o outro, e, dentro de mim (a unidade, lembremos, não existe fora das invenções da matemática), para mim e para mim, na multiplicidade de “eus” em que nos constituímos. Guardamos, porém, o parâmetro de Santo Agostinho e a forma das suas descobertas, quando alcançou o que procurava. Diz ele, relatando a luz que, por fim, lhe penetrou na alma:

Assim falava e chorava, oprimido pela mais amarga dor do coração. Eis que, de súbito, oiço uma voz vinda da casa próxima. Não sei se era de menino, se de menina. Cantava e repetia freqüentes vezes: – “Toma e lê; toma e lê”.7

Recebendo a mensagem como uma iluminação, agarra o livro das Epístolas dos Apóstolos e o lê ao acaso. Ainda no primeiro capítulo bate-lhe a frase: “Não caminheis em glutonarias e embriaguez, nem em desonestidades e dissoluções, nem em contendas e rixas; mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis a satisfação da carne com seus apetites”. Consumara-se a conversão.

Esse modelo de descoberta ressurgirá, pontuando a cultura ocidental ao longo dos tempos, para influir até onde não se esperava, no seio da modernidade laica

São famosas as noites de Descartes, em 1619, entregando-se aos sonhos e visões dos quais extrai, enfim, o cerne de uma posição filosófica.8 Pode-se dizer que Rousseau, também, recebeu num clima semelhante, enquanto descansava, a caminho de uma visita a Diderot, preso em Vincennes, a intuição de seu Discurso sobre as ciências e as artes com que obteria o prêmio da Academia de Dijon, em 1750. Travestiu-se numa forma laica, adaptada aos tempos, e nem por isso de todo original, o desenho do misticismo como o aprendemos em Agostinho.

Neste, a verdade divide-se em três, três em uma, tese que, como um princípio geral, o pensador desenvolve no seu texto Sobre a trindade: Ser, Conhecer, Querer.9 Na lógica ali estabelecida, comenta Hannah Arendt, eu Sou Conhecendo e Querendo; tenho Conhecimento de que Sou e de que Quero; e Quero Ser e Conhecer. A analogia não significa que o ser é análogo ao Pai, o Conhecer ao Filho e o Querer ao Espírito Santo; e sim, o que interessa, continua, é simplesmente que o “Eu” espiritual contém três coisas diferentes, inseparáveis e, a despeito disso, distintas.

A tríade Ser, Conhecer, Querer se faz complementar com uma outra tríade, uma tríade do espírito: Memória, Intelecto e Vontade, três faculdades que não indicam três espíritos, mas um só, referindo-se mutuamente: lembro-me de que tenho memória, intelecto e vontade; entendo que entendo, quero e me lembro; e quero querer, lembrar e entender.

São sinuosos, então, repetimos, os mapas que se nos imprimem na alma. A experiência, como o movimento dos homens, e o pensamento conduzem a uma dispersão cujo balanço, a menos que se tenha muito cuidado, frustra e confunde. Para escapar da selva (perigosa, pelos ruídos, cores e sugestões que nos cercam) marchamos em contracorrente pelo único recurso capaz de nos desembaralhar: o gosto pela ordem, um sentido nosso, tipicamente humano. Pertencemos a uma natureza nem estruturada com rigidez como a de determinados insetos (as abelhas, as formigas) nem perdida em si e em suas necessidades vitais, como a da fauna em geral. Na mesma medida em que somos e desejamos o caos, queremos e buscamos combatê-lo.

O interessante, sob semelhante aspecto, é que, em função de uma tríade – nascimento, vida e morte – na medida em que os conceitos sofrem um desgaste, formulamos idéias com as quais devemos enfrentar o incontornável: a incapacidade de saber. O eterno mistério do mundo (do universo), diz Einstein, mais uma vez lembrado por Hannah Arendt, é sua compreensibilidade.10 Porque possuímos a vocação do saber, e não pelo contrário, intriga-nos o mistério de que nunca, de fato, chegaremos a ele. Assim, sucedem-se as idéias numa profusão de contrários, espécie de guerra com que preenchemos o absurdo e o vazio. Tinha de ser ausente de Deus um mundo que faz do contraditório e da fragmentação, reconhecendo-lhe o valor e a utilidade para o progresso, o seu sujeito. Mais bizarra parece ser a constatação, de tempos em tempos, da repetição com que só damos a impressão de renovar, valendo-nos de hipóteses velhas como a História dentro da novidade. Vestida, compelida pelo pudor, mais do que qualquer outra, a humanidade se esconde, e a seu corpo, da verdade. Tanto a procura que, na ânsia, apenas se revela avessa a encontrá-la.

E, se é assim, o que nos protege? E por que necessitamos de proteção?

Se a verdade repousava em Deus, tínhamos de pesquisá-la em nome da salvação, uma forma de enfrentar e vencer as adversidades. Mas a modernidade matou semelhante idéia. Através do seu espectro, continuamos a nos debater com ela (como na invenção da imprensa11 se passou com o conservadorismo) levados pelo hábito, não pela convicção, mais perdidos, de fato, do que antes.

A mentira nunca é de todo falsa (a psicologia tem consciência disso!)12 porque nela, mesmo que nos escondamos, hipotecamos uma parte do que somos. Por ela, e não só pela verdade, fincamos um pé na esperança, adiamos um encontro definitivo e talvez insuportável, respiramos e armazenamos oxigênio. Diversa do delírio, com o qual regressamos à inocência dos loucos, à fé dos insensatos (e nada esclarecemos quanto à natureza), a grandeza de mentir, se a retiramos da malícia, não derruba a barreira do que nos oprime; abre uma brecha e um tempo para o olhar. Desprovida da malha moral, saberemos o papel que possui.

Voltemos a Hannah Arendt:

A esperança incita a espiar o mundo por uma pequena fresta, minusculamente pequena, que as circunstâncias podem não ter notado, por uma fresta – mesmo tão estreita – que ainda assim ajudaria a organizar, proporcionar um centro para um mundo indefinido – porque o ansiado, o esperado, poderia em última instância emergir através dela como felicidade definida.13

Mentir é também, evidentemente, uma forma de não ver. Na angústia de não se sentir reconhecida, Rahel Varnhagen, porque não aceitava a situação, tinha de fechar os olhos, pelo menos enquanto não localizasse as saídas. “O pensar por si próprio”, de Lessing, instilava superioridade na inferioridade. Para tanto, cumpria isolar-se, emudecer. Uma vez em sociedade, com a profusão do concreto, a ponto de esmagar, o motor falhava. Curioso, ela devia se perguntar, este mecanismo que ora protege, ora não; ora domina a realidade, ora se dobra, derrotado…

O drama daí proveniente, não obstante as mudanças que ocorreram, ultrapassa os limites de seu tempo.

Para além das circunstâncias, o julgamento de Eichmann, em Jerusalém, evoca interrogações. Hannah Arendt se coloca em situação de afinidade com a sua conterrânea, herdeira dos mesmos ancestrais, alvo de suas atenções na juventude.14 O que a perturba não se resume a um problema de comportamento separando o que se pode e não se pode, algo que se dilui entre todos e que ajuda a disfarçar a segregação. O século XVIII, com a crise do absolutismo, decretara o fim do imperialismo dos conceitos políticos, empurrara-os para fora da Europa, com a impressão, por lá, de uma civilização mais justa e pura. A negação do outro concentrara-se nos colonizados, sobretudo nos negros, ou nos orientais, em cujos ombros movia-se a economia e o desempenho das nações. Exportou-se a crueldade por via de uma sutileza que se rompia sobretudo, até a II Guerra, nos atritos de relações internacionais. Mas isso é outra história.

O mal, com seu ar de inocência, sentava-se no banco dos réus. Frente a ele, retorna a questão do pensamento na condição de fórum e origem dos dilemas. Mais do que um espectro, uma vez que nos singulariza, o pensamento acompanha-nos como liberdade, mas, ao mesmo tempo, como responsabilidade. Encará-lo diante de Eichmann significa, na civilização, a barbárie, civilização e barbárie dando-se as mãos, impossíveis de separar-se. Em dado instante, a autora de A condição humana recorre à importância da categoria de espanto e enfatiza esta outra capacidade que se liga ao saber, ao escândalo, à vida, contra a apatia, a brutalidade inconsciente, a morte. É comum, no entanto, que o exercício do espanto, sua manifestação, se efetue seletivamente, num fenômeno de escolha que suprime pontos e reserva outros, entre o que podemos ou não podemos prescindir.

Eichmann representaria uma segurança se confirmasse a carência e não a presença do pensamento. Pressupor que a barbárie provém de um processo de falência contraposto ao brilho da inteligência, no caso da civilização, facilitaria. É certo, porém, que tal não se verifica. O Dr. Fantástico15 pode levar às últimas conseqüências as suas invenções. Ao cabo de tal impulso estaríamos no meio de uma destruição que o arrastaria junto, o que não lhe abala nem diminui o entusiasmo.

O “pensar por si próprio”, o pensamento que se basta, oferece o mapa da mina? Como assegurar que a verdade se situe no pensamento e não nos fatos? A crítica compreende que há verdades certas e verdades erradas. Certas seriam aquelas que obedeceriam à exata correspondência entre o eu e o mundo (o sonho existencialista), entre o que desejo e o que desejam, inclusive de mim. Infelizmente, e o reconhecemos melancolicamente recordando Sartre, a singularidade e a totalidade, a não ser em momentos fugazes, pouco se entendem.

Heidegger que, por conta de sua biografia, muito deve ter refletido sobre o tema,16 indica três teses (de novo a tríade) para caracterizar a concepção tradicional da essência da verdade e o que se imagina ter sido sua primeira definição:

1. O ‘lugar’ da verdade é o enunciado (o julgamento);

2. A essência da verdade se localiza no ‘acordo’ do julgamento com seu objeto;

3. Aristóteles, pai da lógica, ligou a verdade ao julgamento como a seu lugar de origem (De interpretatione) assim como colocou em vigor a definição da verdade como “acordo”.17

Não há uma decisão neste modo de buscar as origens? E o que, em última análise, esta significa?

O julgamento, como instância da verdade, obedece a um longo percurso (que se reafirma a partir do Renascimento) na direção da modernidade do homem laico e dono de si, devendo formular e obedecer às suas próprias leis.

Kant afirmara: Verdade e aparência não estão no objeto, na medida onde ele é intuído, mas, ao contrário, no julgamento levado ao mesmo na medida em que é pensado (Crítica da Razão Pura).

Para Hannah Arendt, Eichmann inspirava a idéia de um círculo, aquelas ilhas para o trânsito da engenharia urbana nas quais os veículos se misturam para dispersar-se, como se, chegando aonde chegaram, pela radicalização das possibilidades (no caso, o mal) fosse possível encontrar as saídas. Ela não agiu, em tal particular, diferente de Adorno, a quem encarava com antipatia pelo que exercia de pressão anti-Heidegger.18 O ponto limite, supôs-se então, armazenava segredos. Cumpria examiná-lo. Achou que pensar, querer e julgar brotavam da mesma árvore. Kant imaginara, antes dela, que o bem dependia de um ato de vontade, interessante por nos poupar, a cada um entre todos, do pior. O acerto resultava de uma decisão tomada na ancestralidade, mantendo-se intocada pela maioria que se organiza e impede o processo de dissolução. Não obstante o inferno com que, em grupo, nos comportamos, a força do conjunto apresenta vantagens sobre o isolamento e a paz do egoísmo. Não se trata de instinto. Não surgiu por acaso a segurança que ajudou a impedir que as ruínas inerentes ao processo ultrapassem o aceitável e nos transformem na cena única dos mortos. Inventaram-na os que, autênticos engenheiros, aprimoraram talentos para reunir materiais, tirar proveito dos erros e, sobretudo, descobrir vocações.

A dimensão atribuída à vontade num aspecto básico como esse alcança outros patamares.

Se entendemos as causas de virtudes e defeitos, graças à psicologia, não chegamos ao ponto de nos acomodar às perversões só porque, por intermédio delas, juntamos laços e pedaços. Em última análise, sem dúvida, não existem culpados: todos se reconhecendo, direta ou indiretamente, responsáveis pelo que ocorre, com ou sem Deus. O princípio da fraternidade sobrepõe-se às cicatrizes que a antecederam. Mesmo assim, há lugar para a vontade (o direito a aceita) no interior das ações. As pessoas de caráter o são pelo rigor com que se determinaram a sê-lo, e não por temperamento ou prefiguração genética.

E como explicar com dois pesos e duas medidas as participações nazistas, por um lado de Eichmann; por outro de Heidegger? A pobreza intelectual de um, confrontada à riqueza do outro, acentua ou diminui a gravidade das atitudes? Sabe-se como a herança valoriza o legado intelectual, espécie de patrimônio do qual não prescindimos.

Na França, na “dépuration”, quando os ocupantes no poder chamaram os colaboracionistas à responsabilidade, em 1945, com a vitória da Resistência, a discussão se complicava ao atingir artistas ou pensadores. Convocado a se posicionar sobre Brasillach, a quem aguardava a morte, Camus, avesso a execuções (embora obcecado com os que tombaram pelas denúncias deste réu), terminou por assinar o pedido de clemência. Decidiu-se com uma advertência a Marcel Aymé, para evitar mal-entendidos, na qual explicita que jamais lhe “apertaria a mão”.19

Optando por uma espécie de meio termo, Camus se escusa de transgredir em relação às convicções sobre o comportamento e, ao mesmo tempo, evita que o associem, incondicionalmente, à absolvição. Põe o sentido de justiça entre parênteses, problemático como sempre o considerou. A verdade, pressupõe-se de suas palavras, e parece citar Pascal, não está nos extremos, mas no meio.20

A natureza humana escuta com dificuldade os ensinamentos de Cristo, daí a crônica de guerras perpetuada pela História. O sentimento do amor, além do objeto amado, não se debruça sobre o próximo. Basta, no entanto, para diminuir o rigor no modo de encarar as omissões e até a participação explícita em circunstâncias perversas. Hannah Arendt, como Rahel Varnhagen, podia tudo, menos hipotecar o coração e reconhecer, no caso de Heidegger, a mentira na verdade e vice-versa. Afinal, tão firme se encontra dentro de nós esta dor, entre ser e não ser, que só um diálogo de surdos pode explicar, como uma febre, a incapacidade de pensar que, diante da evidência, como no Ricardo III, de Shakespeare, aliás citado por ela, nos acomete:

What do I fear? Myself? There’s none else by:

Richard loves Richard: that is, I am I.

Is there a murderer here? No. Yes, I am.

Then fly: what! From myself? Great reason why:

Lest I revenge. What! Myself upon myself?

Alack! I love myself. Wherefore? For any good

That I myself have done unto myself?

Oh! no: alas! I rather hate myself

For hateful deeds comitted by myself.

I am a villain. Yet I lie, I am not

Fool, of thyself speak well: fool, do not flatter.21

A armadilha se arma e se fecha. A pomba que tiramos do bolso agora somos nós e o que nos divide. Em relação a ela, temos de decidir se ficamos no centro ou na periferia, ou se atiramos para o alto a noção de culpa. É uma dúvida que lembra Thomas Hardy e o desfecho de seu belo romance, quando a heroína, na posição de segurança que atingiu, olha para trás consciente da precariedade das conquistas:

And in being forced to class herself among the fortunate she did not cease to wonder at the persistence of the unforeseen, when the one to whom such unbroken tranquillit had been accorded in the adult stage was she whose youth had seemed to teach that happiness was but the occasional episode in a general drama of pain.22

Só na esfera das ilusões o mal e o bem, a verdade e a mentira, se desligam em universos. Para cultuar a vida, em última análise, não existem verdades nas quais confiar como confiaríamos num Deus. É a nossa tragédia. Mesmo assim, não descansamos. A arte o sabe. Tem a convicção do Quixote, para quem “o importante é que, sem vê-la, insistamos em acreditar nela, em confessá-la, em afirmá-la, em jurá-la e em defendê-la”.23

1 A franqueza como compromisso surge como o postulado no qual baseará a narrativa de sua vida. “Eu desvendei o meu interior”, diz ele, dirigindo-se a Deus, “como o vês Tu mesmo” (tradução nossa). Cf. Les confessions, Paris, GF-Flammarion, 1969, pág. 43. Mas ninguém está, realmente, acima dos fatos. Estes, se nos perseguem quando silenciamos, não nos poupam na confissão. Na maturidade, repudiado e apedrejado por onde passava, ele se indagará se não deformara e agravara as próprias faltas na ânsia de revelá-las. Cf. Les rêverie du promeneur solitaire, Paris, GF-Flammarion, 1964.

2 Platão. Hipias menor, o do falso. In: Obras completas, trad. de Francisco de P. Samaranch, Madrid, Aguilar, 1981, pág. 99. Hipias, no diálogo, percebe que se enreda numa trama. Chega a reclamar, irritado. Se concordar a cada instante, terminará na posição oposta àquela com a qual começara. É o que se passará. Como num processo de metalinguagem, pelo recurso da humildade, pois quem fala, quem oferece as razões, é o interlocutor, Sócrates só emprega argumentos que eram do outro. É assim que, onde parecia a verdade, havia mentira, sendo esta, em última análise, a prova irrefutável da primeira.

3 Quando se refere ao problema, Heidegger, ao contrário, trata-o com tranqüilidade. Localiza-o mais tardiamente. Está preocupado com o ponto de maturação do fenômeno. Contraposta ao humanismo, a barbárie, é, a seu ver, um produto do Império Romano, pela incorporação à virtus do helenismo ensinado nas escolas filosóficas. “Somente na época da república romana, humanitas foi, pela primeira vez, expressamente pensada e visada, sob este nome. O homo humanus contrapõe-se ao homo barbarus”. In: Carta sobre o humanismo, trad. de Pinharanda Gomes, Lisboa, Guimarães Editores, 1987, pág. 41.

4 “Sim, era mesmo o seu nome. Ergueu os olhos. No céu mais pálido, pequenas nuvens brancas e cinzentas passavam lentamente, e caía uma luminosidade ora leve ora mais sombria. (…) Foi nesse momento que leu no túmulo a data do nascimento de seu pai, que só então descobriu ignorar. Depois leu as duas datas, 1885-1914, e fez um cálculo maquinal: 29 anos. Súbito, ocorreu-lhe uma idéia que chegou a lhe agitar o corpo. Ele tinha quarenta anos. O homem enterrado sob aquela lápide, e que tinha sido seu pai, era mais moço que ele”. CAMUS, Albert. O primeiro homem, 2a edição, trad. de Tereza Bulhões de Carvalho Fonseca e Maria Luiza Newlands Silveira, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1994, pág. 25.

5 Arendt, Hannah. Rahel Varnhagen, a vida de uma judia alemã na época do romantismo, trad. de Antônio Trânsito e Gernot Kludasch, Rio de Janeiro, Relume/Dumará, 1994. A tolerância que se concedia a esse contingente da população, permitindo que ficasse e restringindo-lhe a presença pela interdição ao direito de cidadania, se estimulava a assimilação (pelo batismo), produzia o duplo efeito da humilhação, por um lado, e da expectativa, um dia, da aceitação. A uma judia alemã no século XVIII, observa Hannah Arendt, não restavam saídas, para a afirmação social, a não ser o dinheiro ou a beleza, que proporcionavam possibilidades de um casamento vantajoso, dois recursos indisponíveis para Rahel, apesar da inteligência e da personalidade, seus patrimônios. As decepções serão inúmeras.

6 Pascal, Blaise. Pénsées. In: Oeuvres complètes, Paris, Gallimard/Pléiade, 1954. As citações a seguir vão da página 1328 a 1331. As traduções são nossas.

7 Agostinho, Santo. Confissões, 12a edição, trad. de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina, Braga, Livraria Apostolado da Imprensa, 1990, pág. 205.

8 O evento vem referido por uma de suas biógrafas: “Aqui tudo é passivamente experimentado, próximo da depressão, ao passo que a frase inicial, fielmente citada, traduz o impulso positivo da inspiração que enche o filósofo de ardor por avançar”. CF. Lewis, Geneviève Rodis-. Descartes, uma biografia, trad. de Joana Angélica D’Avila Melo, Rio de Janeiro, Record, 1995, pág. 54.

9 O registro pertence, de novo, a Hannah Arendt, no seu livro A vida do espírito, volume 2: O querer (a vontade), trad. de Helena Martins, Rio de Janeiro, Relume/Dumará, 1993, pág. 259. Sabe-se o fascínio que o patrono da Igreja Católica exerce sobre ela, influindo com certeza de modo decisivo em suas concepções, na maneira de organizá-las e na busca por uma revelação (a do encontro consigo mesmo) que talvez jamais, pela crueldade implícita e pela dor, qualquer de nós tenha condições de alcançar.

10 Op. cit. pág. 104.

11 Um avanço que de início serviu ao atraso. Permitiu a veiculação de uma ideologia dominante avessa a ceder. Cf. Michelet, Jules. Renaissance et Réforme, Paris, Robert Laffont/Bouquins, 1982.

12 Mas não representará, a psicologia, igualmente uma mentira, algo que inventamos para crer que, um dia – como na matemática, uma ciência conceitual – como um Deus criado por nós, tirará do bolso do colete um pombo voando, a verdade do que constituímos, para logo depositá-lo numa gaiola?

13 Op. cit. pág.24.

14 Os primeiros manuscritos do livro sobre Rahel Varnhagen, informa depois, datam de 33, quando deixou a Alemanha.

15 A referência diz respeito, é claro, ao filme de Stanley Kubrick Doctor Strangelove (or How I learned to stop worrying and love the bomb), realizado em 1963 e intitulado no Brasil de Dr. Fantático ou como aprendi a amar a bomba. O personagem principal era nele interpretado por Peter Sellers. O amor aí em questão é o amor irracional da morte.

16 Interessante que, o que os amigos não-nazistas, como Karl Jaspers ou Karl Löwith, não suportaram, quanto ao seu período hitlerista, mais do que o erro, foi a ausência de auto-crítica. Depois de 1945, Heidegger não só não tocou no assunto como emudeceu textos, limpando-os de suas referências militantes. A confissão se inscreveu no ocidente pelo instituto da absolvição, desde que o pecador reconhecesse a falta, um modo de vincular o ser à idéia. Uma vez assumida, esta, já imaginavam os escolásticos, legando-nos o hábito, apropria-se do indivíduo. Se o recurso não bastava entre os homens, a não ser como atenuante, dependendo da gravidade da ação, Deus lhe dava valor e reconhecimento. Então cabe a indagação: Heidegger usou o silêncio para mentir? E, independentemente dele, em termos absolutos, será o silêncio (o grande silêncio) verdade ou falsificação? Afinal, nem com o discurso inesgotável, infinito – e a literatura enfatiza o tema – conseguiremos exprimir o que realmente somos. Não será possível, com relação à nossa presença no mundo, que tudo não passe de tagarelice, à maneira de Beckett, de uma enorme, incorrigível tagarelice, sem nenhum sentido, o maior segredo (e quem, com segurança, afirmará que não?), fruto da simples incapacidade que possuímos de suportar o silêncio?

17 Cf. Heidegger, Martin. Être et temps, trad. de François Vezin, Paris, Gallimard. 1986, pág. 214.

18 E bastará a generosidade do amor para absolver o crime, como na ótica de Cristo? Por que, então, o julgamento de Nuremberg – e o de Eichmann? Extremamente problemática, mantém-se imprevisível a relação da natureza humana com o perdão.

19 Cf. TODD, Olivier. Albert Camus, une vie, Paris, Gallimard, 1996, pág. 375. A declaração surge em carta de 27 de janeiro. Além da questão moral implícita, o episódio desperta a atenção para o peso conferido, de um lado e de outro, às posições tomadas pelos intelectuais. O país parava para ouvi-los, mais um argumento a favor do peso das ações dependendo de quem as executava.

20 Explica-se que favoreça a revolta contra a revolução e brigue por ela ao ponto do rompimento com os amigos, colhido pela radicalização do mundo separado em dois blocos.

21 De que estou com medo? De mim mesmo? Não há mais ninguém aqui:/ Ricardo ama Ricardo: isto é, eu sou eu./ Há um assassino aqui? Não. Sim, eu:/ Então fujamos! Como? De mim mesmo? Boa razão essa:/ Por medo de que me vingue. Como? Eu de mim mesmo? Ora! Eu me amo. Por quê? Por algum bem/ que possa ter feito a mim mesmo?/ Mas não, ai de mim! Eu deveria me odiar/ Pelos atos execráveis cometidos por mim?/ Sou um canalha. Não, minto; eu não sou./ Idiota, falas bem de ti mesmo: idiota, não te adules. (A vida do espírito, pág. 142)

22 Hardy, Thomas. The mayor of Casterbridge, Londres, Penguin, 1994. Numa tradução livre, o texto diria: E, forçada a classificar-se entre os afortunados, ela não cessou de se perguntar sobre a persistência do imprevisto, quando aquela a quem se concedeu esta tranqüilidade não quebrada na idade adulta fora ela cuja juventude parecera ensinar que a felicidade não passa de um episódio ocasional no drama geral da dor.

23 Jabès, Edmond. Le seuil. Le sable, Paris, Gallimard/Poésie, 1990, pág.15.

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