Por que a Marcha da Família está de volta

Entre silêncios e conchavos, governos do PT abandonaram o combate no campo cultural. Bancadas reacionárias o encamparam, em sentido inverso. Resultado foi o Domingo Nefasto

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Por Berenice Bento

Aconteceu outra vez. A Marcha da Família com Deus pela Liberdade aconteceu outra vez. Não nas ruas, como na sua primeira edição em 1964. Não foi farsa. Não foi tragédia. Assistimos, em grande estilo, a consolidação de uma agenda política da elite moral deste país. Grande estilo porque tudo se deu nos marcos do Estado de Direito, na Casa do povo, ungidos pelo voto popular. Em 1964 se pedia o Golpe para livrar as famílias da ameaça comunista. Em 2016, o golpe foi dado sem o disparo de um tiro.

Agora, não eram milhares nas ruas. Foram 367 parlamentar@s que, quase em coro, declararam seu voto a favor da família. Quem escutar estas declarações daqui a alguns anos, certamente se perguntará: o Projeto que estava sendo votado era para salvar a família? Não era. E era. Não era porque a discussão deveria ser em torno do impedimento ou não da presidenta da República. E era porque o debate sobre moralidades foi uma pauta política com grande poder na produção de unidade e dissenso nos últimos anos.

E se é verdade que ali estavam sendo apreciados (ilegitimamente) os governos do PT, deve-se perguntar qual foi o ponto de unidade entre aqueles que disseram não a este projeto político-partidário. O dia 17 de abril foi o acerto de contas conosco: ativistas dos direitos humanos, feministas, transfeministas e LGBTs. Foi um grande momento na luta por um país/reino de Deus sem “lixo humano”.

Meu lado vidente prevê: Eduardo Cunha será cassado. Mas qual o problema? Outros 366 continuarão o trabalho dele.

Os momentos altos do debate de uma agenda político-moral têm acontecido, principalmente, em períodos eleitorais. Vimos, sem dó nem piedade, nossos úteros transformarem-se em moeda de barganhas. No mercado eleitoral as carnes mais baratas são as das mulheres, das pessoas trans, gays e lésbicas. Nossos corpos transformavam-se em territórios de disputas e conquistas. Mas o mercado não parou depois das eleições. Para garantir governabilidade, o leilão continuou. Estarrecid@s, assistimos à censura da Presidenta Dilma ao material pedagógico que seria distribuído nas escolas e que discutiria homofobia e transfobia.

Entre silêncios e conchavos para manter a governabilidade, os governos do PT foram cedendo e cedendo à pauta da elite moral. Das “miudezas” da vida política nacional aos “grandes” temas (como a regulamentação da mídia e o direito à informação como Direito Humano) o combate no campo cultural, nos termos do Gramsci, foi secundarizado pelos governos petistas e, no sentido inverso, priorizado pela elite político-moral que se expressa politicamente via as bancadas BBB (Bíblia, boi, bala).

Alguns dizem que são os interesses econômicos não-ditos que estavam por trás daquelas declarações de fé d@s parlamentar@s. Pode ser. Mas estou convencida de que a esfera da cultura é o espaço mais duro para fazermos a luta. Ali, “família” tornou-se o tropo síntese de uma visão de mundo marcada pelo heteroterrorismo. E como isso funciona? Se você não segue os caminhos da família heterossexual estará fora da Nação. Foi isso que aquel@s deputad@s nos avisaram. Na Nação onde Deus é o senhor, não tem aborto, direitos sexuais e reprodutivos, homossexualidades, mudança de gênero. Converta-se e salve-se.

É a heterossexualidade obrigatória em pleno funcionamento.

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4 comentários para "Por que a Marcha da Família está de volta"

  1. Genovan de Morais disse:

    Ótimo texto, Berenice. Ele obviamente não pretende esgotar a discussão. Pelo contrário, ilumina porque traz para o palco uma dimensão da crise pouco ou insuficientemente explorada no debate dominado, sobretudo pelo econômico e pelo político stricto sensu. A dimensão da cultura, menos visível, mas nem por isso menos produtora de consequências, talvez até mais dramáticas no longo prazo, precisa ser melhor discutida. Me pergunto, desde os princípios, quais as repercussões da queda da Dilma (sem deixar de lado o reconhecimento de seu governo ruim e inábil), por exemplo, na luta da mulher dentro da política institucional e mesmo em outras lutas de gênero. Penso que serão dramáticas. São questões, penso, para as quais o seu texto contribui.

  2. Acho que seu artigo superestima a capacidade de um partido influenciar um movimento cultural que se encontra espalhado por várias partes do mundo.
    Poderíamos definir este discurso retrógrada mais como uma reação de uma sociedade culturalmente atrasada há algo mais internacionalizado.
    O feminismo mais panfletário está deixando lugar a ocupação real da sociedade pela mulher, não gosto da palavra, porém há um verdadeiro empoderamento dos movimentos LGBT como outras minorias (negros e índios) que no momento estão se dando conta de sua cidadania abrindo espaços na sociedade outrora masculina.
    Eu vejo simplesmente o ascenso de bancadas evangélicas simplesmente como uma ruptura e uma forma de protagonismo que foi dada no início deste movimento a pessoas que na sociedade tradicional e católica só dava espaço para as classes dominantes.
    Os movimentos conservadores evangélicos é simplesmente uma manipulação do desejo de protagonismo. Entretanto a medida que estes vão se institucionalizando e criando barreiras a tendência de ampliação do leque de opções e não a sua restrição, estes movimentos cairão por si mesmo.
    Não vejo sustentabilidade a longo prazo destes movimentos conservadores, e acho que as contradições dos mesmos levará esta onda de atraso a retroceder.

  3. Fran Silva disse:

    Em sucinto texto imensa lucidez.

  4. chama-se patriarcado, do qual a heteronormatividade é um dos pilares..

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