O paradoxo e a insensatez

Propostas dos economistas liberais, que querem “menos Estado” no Brasil, só podem ser realizadas por tirano capaz de suprimir política. Foi assim no Chile de Pinochet

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O economista norte-americano Milton Friedman e seu pupilo, o ditador chileno Augusto Pinochet, primeiro governante a aplicar ultra-liberalismo no pós-II Guerra

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Propostas dos economistas liberais, que pedem “menos Estado” no Brasil, só poderiam ser realizadas por governante tirânico, capaz de suprimir política. Foi exatamente assim no Chile de Pinochet

Por José Luis Fiori | Imagem: Francisco “Papas Fritas”

Uma vez me perguntaram se o Estado brasileiro é muito grande.

Respondi assim: “Eu vou lhe dar o telefone da minha empregada,

porque você está perguntando isto para mim,

um cara que fez pós-doutorado, trabalha num lugar com ar-condicionado,

com vista para o Cristo Redentor.

Eu não dependo em nada do Estado, com exceção de segurança.

Nesse condomínio social, eu moro na cobertura.

Você tem que perguntar a quem precisa do Estado.”

Luiz G. Schymura, Valor Economico, 07/08/2015

 

Duas coisas ficaram mais claras nas últimas semanas, com relação à tal da “crise brasileira”. De um lado, o despudor golpista, e de outro, a natureza ultraliberal do seu projeto para o Brasil. Do ponto de vista político, ficou claro que dá absolutamente no mesmo o motivo dos que propõem um impeachment, o fundamental é sua decisão prévia de derrubar uma presidente da República eleita por 54,5 milhões de brasileiros há menos de um ano, o que caracteriza um projeto claramente golpista e antidemocrático e, o que pior, conduzido por lideranças medíocres e de discutível estatura moral.

Talvez, por isto mesmo, nas últimas semanas, a imprensa escalou um grupo expressivo de economistas liberais, para formular as ideias e projetos do que seria o governo nascido do golpe. Sem nenhuma surpresa: quase todos repetem as mesmas fórmulas, com distintas linguagens. Todos consideram que é preciso primeiro resolver a “crise política”, para depois poder resolver a “crise econômica”; e uma vez “resolvida” a crise política, todos propõem a mesma coisa, em síntese: “menos estado e menos política”.

Não interessa muito o detalhamento aqui das suas sugestões técnicas. O que importa é que suas premissas e conclusões são as mesmas que a utopia liberal repete desde o século XVIII, sem jamais alcançá-las ou comprová-las, como é o caso de sua crença na racionalidade utilitária do homo economicus, na superioridade dos “mercados desregulados”, na existência de mercados “competitivos globais”, e na sua fé cega na necessidade e possibilidade de despolitizar e reduzir ao mínimo a intervenção do Estado na vida econômica. É muito difícil para estes ideólogos que sonham com o “limbo”, entender que não existe vida econômica sem política e sem estado. É muito difícil para eles compreender ou aceitar que as duas “crises brasileiras” são duas faces de um conjunto de conflitos e disputas econômicas cruzadas, cuja solução tem que passar inevitavelmente pela política e pelo estado. Não se trata de uma disputa que possa ser resolvida através de uma fórmula técnica de validez universal. Por isto, é uma falácia dizer que existe uma luta e uma incompatibilidade entre a “aritmética econômica” e o “voluntarismo político”. Existem várias “aritméticas econômicas” para explicar um mesmo déficit fiscal, por exemplo, todas só parcialmente verdadeiras. Parece muito difícil para os economistas em geral, e em particular para os economistas liberais, aceitarem que a economia envolve relações sociais de poder, que a economia é também uma estratégia de luta pelo poder do estado, que pode estar mais voltado para o “pessoal da cobertura”, mas também pode ser inclinado na direção dos menos favorecidos pelas alturas.

Agora bem, na conjuntura atual, como entender o encontro e a colaboração destes economistas liberais com os políticos golpistas?

O francês, Pierre Rosanvallon, dá uma pista (1), ao fazer uma anátomo-patologia lógica do liberalismo da “escola fisiocrática” francesa, liderada por François Quesnay. Ela parte da proposta fisiocrático/liberal de redução radical da política à economia, e da transformação de todos os governos em máquinas puramente administrativas e despolitizadas, fiéis à ordem natural dos mercados. E mostra como e por que este projeto de despolitização radical da economia e do estado leva à necessidade implacável de um “tirano” ou “déspota esclarecido” que entenda a natureza nefasta da política e do estado, mantenha-se “neutro”, e promova a supressão despótica da política, criando as condições indispensáveis para a realização da “grande utopia liberal”, dos mercados livres e desregulados. Foi o que Rosanvallon chamou de “paradoxo fisiocrata”, ou seja: a defesa da necessidade de um “tirano liberal” que “adormecesse” as paixões e os interesses políticos e, se possível, os eliminasse.

No século XX, a experiência mais conhecida deste projeto ultraliberal, foi a da ditadura de Augusto Pinochet, no Chile, que foi chamada pelo economista americano, Paul Samuelson, de “fascismo de mercado”. Pinochet foi — por excelência — a figura do “tirano” sonhado pelos fisiocratas: primitivo, quase troglodita, dedicou-se quase inteiramente à eliminação dos seus adversários e de toda a atividade política dissidente, e entregou o governo de fato a um grupo de economistas ultraliberais que puderam fazer o que quiseram durante quase duas décadas. No Brasil não faltam — neste momento — os candidatos com as mesmas características e os economistas sempre rápidos em propor, e dispostos a levar até as últimas consequências, o seu projeto de “redução radical do Estado” e, se for possível, de toda atividade política capaz de perturbar a tranquilidade dos seus modelos matemáticos e dos seus cálculos contábeis. Neste sentido, não está errado dizer que os dois lados deste mesmo projeto são cúmplices e compartem a mesma e gigantesca insensatez, ao supor que seu projeto golpista e ultraliberal não encontrará resistência e, no limite, não provocará uma rebelião ou enfrentamento civil, de grandes proporções, como nunca houve antes no Brasil. Porque não é necessário dizer que tanto os lideres golpistas quanto seus economistas de plantão olham para o mundo como se ele fosse uma “enorme cobertura”, segundo a tipologia sugerida pelo Sr. Luiz Schymura, um raro economista liberal que entende e aceita a natureza contraditória dos mercados e do capitalismo, e a origem democrática do atual déficit publico brasileiro.

[1] P. Rosanvallon, Le liberalisme économique. Histoire de l´idée de marché, Editions Seuil, Paris, 1988

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