O impacto de Poesia Pau-Brasil

Em 1924, meses após publicação do manifesto de Oswald, Paulo Prado antevê: acabou tempo da “eloquência balofa”, de imitar Europa decadente. Exigimos “outros poetas, outros versos”

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Por Paulo Prado | Imagem Tarsila do Amaral, Morro da Favela (1925)

levante

Contam que houve uma porção de enforcados

E as caveiras espetadas nos postes

Da fazenda desabitada

Miavam de noite

No vento do mato

Oswald de Andrade, Poemas da Colonização

 

Com esse artigo do Paulo Prado, “Poesia Pau-Brasil”, escrito em 1924, procuramos avançar no percurso modernista e no entendimento da obra de Oswald de Andrade.

Evidentemente que não estamos desenvolvendo um traçado em linha reta, mecanicamente cronológico. Não teríamos meios, nem essa é nossa intenção. No entanto, procuramos organizar, de algum modo, esse universo modernista no que ele possui de requintado e multifário.

Apenas dois exemplos. O texto do Oswald, “Informe sobre o Modernismo”, escrito em 1945, foi uma maneira de pensarmos a semana de 22 e o modernismo, assim como já havíamos feito com a publicação de um longo ensaio de Mário de Andrade [aqui] e [aqui].

E tem mais. Precisaremos abordar ainda o polêmico tema da antropofagia, assim como os demais trabalhos do escritor, os trabalhos e obras de outros modernistas, como o próprio Paulo Prado, Villa-Lobos, Flávio de Carvalho e Raul Bopp. Mas não é só isso: existem as vanguardas, a relação do modernismo com as diversas práticas culturais e o modernismo hoje. Vamos aos poucos.

No presente artigo, destaca-se claramente a sua função de um documento histórico da experiência modernista. Além disso, nele antevemos algumas preocupações que o seu autor desenvolveria, mais tarde, em “Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira”.

Escrito quando da publicação do “Manifesto da Poesia Pau-Brasil“, de Oswald de Andrade, o texto de Paulo Prado traz como um dos grandes eixos de discussão, o “problema do nacionalismo”, naquilo que diz respeito à construção de um pensamento modernista.

Mas existe a outra volta do parafuso. Nesse sentido, em que pese o problema da mentalidade colonial, que atravessa, segundo Paulo Prado, a evolução da “vida intelectual do Brasil”, a perspectiva histórica, que ora vivenciamos, nos coloca diante de uma outra questão igualmente sensível.

Conforme observa Pascoal Farinaccio, em seu estudo sobre a crítica literária na obra oswaldiana, há um “núcleo basilar de nosso Modernismo”1 que assimilou a cobrança nacionalista como “critério de aferição do valor artístico das obras”2. E isso em alguma medida está presente no texto do Paulo Prado.

Há ainda o tema da ausência de uma produção de crítica modernista em discrepância com a sua produção artística. Evidentemente que esse é outro motivo para tornar esse texto ainda mais significativo.

Por último, vale prestar atenção na preocupação do seu autor quanto à renovação dos modos de expressão, aliado à permanência do “mal da eloquência balofa” em nossa literatura. Esses dois aspectos podem ser compreendidos no célebre aforismo de que os tempos modernos não cabiam mais na tessitura dos sonetos. Assim, no início do século XX, estamos diante do canto novo nietzschiano. (Theotonio de Paiva, editor de “Oswald 60″)

1 Farinaccio, Pascoal. Serafim Ponte Grande e as Dificuldades da Crítica Literária. São Paulo: Ateliê Editorial: FAPESP, 2001, p. 29.

2 Idem, p.29

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Poesia Pau-Brasil

A poesia “pau-brasil” é o ovo de Colombo – esse ovo, como dizia um inventor meu amigo, em que ninguém acreditava e acabou enriquecendo o genovês. Oswald de Andrade, numa viagem a Paris, do alto de um atelier da Place Clichy – umbigo do mundo — descobriu, deslumbrado, a sua própria terra. A volta à pátria confirmou, no encantamento das descobertas manuelinas, a revelação surpreendente de que o Brasil existia. Esse fato, de que alguns já desconfiavam, abriu seus olhos à visão radiosa de um mundo novo, inexplorado e misterioso. Estava criada a poesia “pau-brasil”.

Já tardava essa tentativa de renovar os modos de expressão e fontes inspiradoras do sentimento poético brasileiro, há mais de um século soterrado sob o peso livresco das ideias de importação. Um dos aspectos curiosos da vida intelectual do Brasil é esse da literatura propriamente dita ter evoluído acompanhando de longe os grandes movimentos da arte e do pensamento europeus, enquanto a poesia se imobilizou no tomismo dos modelos clássicos e românticos, repetindo com enfadonha monotonia as mesmas rimas, metáforas, ritmos e alegorias. Veio-lhe sobretudo o retardo no crescimento do mal romântico que, ao nascer da nossa nacionalidade, infeccionou tão profundamente a tudo e a todos. Com a partida para fora da colônia do lenço de alcobaça e da caixa de rapé de D. João VI, emigraram por largo tempo deste país o bom senso terra-a-terra e a visão clara e burguesa das coisas e dos homens.

Em política o chamado “grito do Ipiranga” inaugurou a deformação da realidade de que ainda não nos libertamos e nos faz viver num como sonho de que só nos acordará alguma catástrofe benfeitora. Em literatura, nenhuma outra influência poderia ser mais deletéria para o espírito nacional. Desde o aparecimento dos Suspiros poéticos e Saudades, de Gonçalves de Magalhães, que os nossos poetas e escritores, até os claros dias de hoje, têm bebido inspirações no crânio humano cheio de bourgogne com que se embebedava Childe Harold nas orgias de Newstead. O lirismo puro, simples e ingênuo, como um canto de pássaro, só o exprimiram talvez dois poetas quase desprezados – um, Casimiro de Abreu, relegado à admiração das melindrosas provincianas e caixeiros apaixonados; outro, Catulo Cearense, trovador sertanejo, que a mania literária já envenenou. Foram esses, melancólicos, desalinhados e sinceros, os dois únicos intérpretes do ritmo profundo e íntimo da Raça, como Ronsard e Musset na França, Moeriken e Uhland na Alemanha, Chaucer e Burns na Inglaterra, e Whitman nos Estados Unidos. Os outros são lusitanos, franceses, espanhóis, ingleses e alemães, versificando numa língua estranha que é o português de Portugal, esbanjando talento e mesmo gênio num desperdício lamentável e nacional.

O verso clássico:

“Sur des pensers nouveaux, faisons des vers antiques” está também errado. Não só mudaram as ideias inspiradoras da poesia, como também os moldes em que ela se encerra. Encaixar na rigidez de um soneto todo o baralhamento da vida moderna é absurdo e ridículo. Descrever com palavras laboriosamente extraídas dos clássicos portugueses e desentranhadas dos velhos dicionários, o pluralismo cinemático de nossa época, é um anacronismo chocante, como se encontrássemos num Ford um tricórnio sobre uma cabeça empoada, ou num torpedo a alta gravata de um dândi do tempo de Brummel. Outros tempos, outros poetas, outros versos. Como Nietzsche, todos exigimos que nos cantem um canto novo.

A poesia “pau-brasil” é, entre nós, o primeiro esforço organizado para a libertação do verso brasileiro. Na mocidade culta e ardente de nossos dias, já outros iniciaram, com escândalo e sucesso, a campanha de liberdade e de arte pura e viva, que é a condição indispensável para a existência de uma literatura nacional. Um período de construção criadora sucede agora às lutas da época de destruição revolucionária, das “palavras em liberdade”. Nessa evolução e com os característicos de suas individualidades, destacam-se os nomes já consagrados de Ronald de Carvalho, Mário de Andrade e Guilherme de Almeida, não falando nos rapazes do grupo paulista, modesto e heroico.

O manifesto de Oswald, porém, dizendo ao público o que muitos aqui sabem e praticam, tem o mérito de dar uma disciplina às tentativas esparsas e hesitantes. Poesia “pau-brasil”. Designação pitoresca, incisiva e caricatural, como foi a do confetismo e fauvismo para os neo-impressionistas da pintura, ou a do cubismo nestes últimos quinze anos. É um epíteto que nasce com todas as promessas de viabilidade.

A mais bela inspiração e a mais fecunda encontra a poesia “pau-brasil” na afirmação desse nacionalismo que deve romper os laços que nos amarram desde o nascimento à velha Europa, decadente e esgotada. Em nossa história já uma vez surgiu esse sentimento agressivo, nos tempos turbados da revolução de 93, quando “pau-brasil” era o jacobinismo dos Tiradentes de Floriano. Sejamos agora de novo, no cumprimento de uma missão étnica e protetora, jacobinamente brasileiros. Libertemo-nos das influências nefastas das velhas civilizações em decadência. Do novo movimento deve surgir, fixada, a nova língua brasileira, que será como esse “Amerenglish” que citava o Times referindo-se aos Estados Unidos. Será a reabilitação do nosso falar quotidiano, sermo plebeius que o pedantismo dos gramáticos tem querido eliminar da língua escrita.

Esperemos também que a poesia “pau-brasil” extermine de vez um dos grandes males da raça – o mal da eloquência balofa e roçagante. Nesta época apressada de rápidas realizações a tendência é toda para a expressão rude e nua da sensação e do sentimento, numa sinceridade total e sintética.

“Le poète japonais

Essuie son couteau:

Cette fois l’éloquence est morte.”

diz o haicai japonês, na sua concisão lapidar. Grande dia esse para as letras brasileiras. Obter, em comprimidos, minutos de poesia. Interromper o balanço das belas frases sonoras e ocas, melopeia que nos aproxima, na sua primitividade, do canto erótico dos pássaros e dos insetos. Fugir também do dinamismo retumbante das modas em atraso que aqui aportam, como o futurismo italiano, doze anos depois do seu aparecimento, decrépitas e tresandando a naftalina. Nada mais nocivo para a livre expansão do pensamento meramente nacional do que a importação, como novidade, dessas fórmulas exóticas, que envelhecem e murcham num abrir e fechar de olhos, nos cafés literários e nos cabarés de Paris, Roma ou Berlim. Deus nos livre desse esnobismo rastacuérico, de todos os “ismos” parasitas das ideias novas, e sobretudo das duas inimigas do verdadeiro sentimento poético – a Literatura e a Filosofia. A nova poesia não será nem pintura, nem escultura, nem romance. Simplesmente poesia com P grande, brotando do solo natal, inconsciente. Como uma planta.

O manifesto que Oswald de Andrade publica encontrará nos que leem (essa ínfima minoria) escárnio, indignação e mais que tudo – incompreensão. Nada mais natural e mais razoável: está certo. O grupo que se opõe a qualquer ideia nova, a qualquer mudança no ramerrão das opiniões correntes é sempre o mesmo: é o que vaiou o Hernani de Victor Hugo, o que condenou nos tribunais Flaubert e Baudelaire, é o que pateou Wagner, escarneceu de Mallarmé e injuriou Rimbaud. Foi esse espírito retrógrado que fechou o Salon oficial aos quadros de Cézanne, para o qual Millerand pede hoje as honras do Panthéon; foi inspirado por ele que se recusou uma praça de Paris para o Balzac de Rodin. É o grupo dos novos-ricos da Arte, dos empregados públicos da literatura, Acadêmicos de fardão, Gênios das províncias, Poetas do “Diário Oficial”. Esses defendem as suas posições, pertencem à maçonaria da Camaradagem, mais fechada que a da política; agarram-se às tábuas desconjuntadas das suas reputações: são os bonzos dos templos consagrados, os santos das capelinhas literárias. Outros, são a massa gregária dos que não compreendem, na inocência da sua curteza, ou no afastamento forçado das coisas do espírito. Destes falava Rémy de Gourmont quando se referia a “ceux qui ne comprennent pas”. Deixemo-los em paz, no seu contentamento obtuso de pedra bruta, ou de muro de taipa, inabalável e empoeirado.

Para o glu-glu desses perus de roda, só há duas respostas: ou a alegre combatividade dos moços, a verve dos entusiasmos triunfantes, ou para o ceticismo e o aquoibonismo dos já descrentes e cansados, o refúgio de que falava o mesmo Gourmont, no Silêncio das Torres (das Torres de marfim, como se dizia).

Maio, 1924.

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