Em busca de um novo horizonte utópico

"É preciso criar formas de expressar, articular e mobilizar a vasta galáxia de movimentos e sensibilidades que buscam mudanças mais profundas"

“É preciso criar formas de expressar, articular e mobilizar a vasta galáxia de movimentos e sensibilidades que buscam mudanças mais profundas”

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Para deter a onda conservadora, é preciso derrotar Aécio. Mas limites da esquerda clássica ficaram claros nessa eleição. Saberemos ir além?

Por Antonio Martins | Colaborou Graziela Marcheti 

Houve quem estranhasse quando Outras Palavras estampou em manchete, no domingo do primeiro turno, um texto sobre um partido-movimento espanhol – o Podemos. Não foi premonitório, mas refletiu um desconforto. No momento em que o país vive um impasse; em que o projeto de mudanças suaves realizado com êxito dos últimos doze anos parece esgotado; em que perduram, latentes, o “espírito de junho” e a consciência de que é necessária uma rodada de transformações mais profundas – foi nesse exato instante que o sistema político produziu uma eleição inteiramente vazia de propostas e dirigida pelo marketing.

Os resultados apareceram horas mais tarde, logo após a apuração. Tornou-se evidente o risco de um retrocesso em múltiplos terrenos – político, social, cultural. Inimaginável há algumas semanas, a hipótese de uma vitória de Aécio Neves, com restauração do governo das velhas elites, é agora uma ameaça real. Na Câmara dos Deputados, PT e PCdoB, os principais partidos da esquerda histórica, perderam, respectivamente, 20% e 40% de suas antigas bancadas – ao todo, 24 parlamentares (enquanto o PSDB ganhou 11). Personagens claramente identificados com o conservadorismo moral, a ditadura militar e a repressão aos movimentos sociais – como Celso Russomano (SP), Jair Bolsonaro (RJ) ou Luiz Carlos Heinze (RS) – receberam enxurradas de votos. Quase metade dos deputados eleitos agora (248, entre 513) declara ter patrimônio milionário – eram 116, em 2002. Cresceram as bancadas do fundamentalismo religioso, dos ruralistas e “da bala” – a ponto de um estudo do Diap considerar que este é “o Congresso mais conservador do pós-1964”. No Senado, o passo atrás foi simbolizado pelas vitórias de José Serra sobre Eduardo Suplicy (SP) e de Lasier Martins sobre Olívio Dutra (RS). Na disputa presidencial, a maré pró-Aécio engolfou, como destaca Guilherme Boulos, redutos populares que tradicionalmente votam à esquerda: em São Paulo, por exemplo, estendeu-se a Campo Limpo, Itaquera, Ermelino Matarazzo e Sapopemba…

Até agora, a maior parte das avaliações procura apontar, como causa principal do fenômeno, um recuo do próprio eleitorado, uma “onda conservadora”. Em São Paulo, epicentro da ressaca, abundam os lamentos e as intenções declaradas de mudar-se de estado ou de país… Às vezes, o argumento ganha ares de sofisticação sociológica. Ao engordar a “nova classe média”, argumenta-se, os governos petistas teriam engrossado as fileiras do setor social que, ao fim das contas, desejará liquidá-los.

Mas falta a estas análises algo essencial. Inúmeros exemplos históricos desmentem a hipótese segundo a qual eleitores recém-emersos da pobreza tendem a votar à direita. A “onda conservadora” não era inevitável. Ela formou-se nas três semanas anteriores às urnas, como resultado de um erro tático grosseiro – porém revelador. Ao estabelecer como seu objetivo central a desconstrução de Marina Silva e de seus acenos a uma “nova política”, a campanha de Dilma Rousseff primeiro resgatou Aécio Neves; depois, presenteou-o com o enorme volume de votos antigovernistas gerado pela fadiga e impasse do projeto lulista. Deu asas à cobra. Escolheu como adversário de segundo turno o candidato que unifica e consolida o arco conservador. Imaginou que, ao fazê-lo, pudesse repetir o cenário dos três pleitos presidenciais anteriores – desconsiderando o desgaste do lulismo e o surgimento de uma nova geração de esquerda, com cujo imaginário não quis dialogar.

Erros tão primários nunca são fortuitos. O que levou a campanha de Dilma a demonizar Marina não foram as diversas contradições da candidata do PSB, mas o que ela trazia – ao menos em discurso – de transformador. O atual sistema político aprisiona e paralisa o lulismo, mas também o alimenta e conforta. Diante da possibilidade de ruptura, enunciada em junho de 2013 e relembrada por Marina, ainda que como eco longínquo, a reação foi de assombro e recuo.

Por isso, não bastará derrotar Aécio, em 26 de outubro – por importante que isso seja. A maré conservadora só será enfrentada quando surgirem formas de expressar, articular e mobilizar a vasta galáxia de movimentos e sensibilidades que buscam uma nova onda de mudanças mais profundas. É provável que estas formas não caibam no quadro partidário atual e é instigante examinar alternativas que têm surgido, diante de impasses semelhantes, em outras partes do mundo. Talvez o cenário brasileiro esteja maduro para partidos-movimento como o Podemos, na Espanha, ou o Syriza, na Grécia. É o que veremos, nas quatro matérias que dão sequência a este texto.

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II.

Anatomia de um erro grosseiro

A campanha Dilma queixa-se com razão das ações golpistas

de Aécio. Mas quem colocou no segundo turno o candidato das elites?

Alguns militantes do PT reagem com indignação ao argumento de que a campanha de Dilma foi despolitizada. Em 9/10, Breno Altman escreveu, na Folha de S.Paulo, que a candidata promoveu “discussão programática implacável, densa e minuciosa”. Teria feito isso ao “apresentar, ponto a ponto, os interesses representados no programa de Marina”, “expor a verdadeira natureza de seus projetos” e “colocar sob o sol (…) ideias e providências que ela desejava manter à sombra”.

Breno confunde politização com estridência, e choque de projetos com agressividade. O ato político essencial da campanha Dilma não foi o tom – de fato, extremamente belicoso – que adotou, mas o objetivo, adversário e estratégia que elegeu. O sentido destas escolhas ficou claro. A presidente quis evitar, a todo custo, um segundo turno em que estivessem presentes ela própria e Marina. Empenhou-se em desconstruir, a todo custo, a candidata adversária e em poupar Aécio Neves. Justificou tal atitude com um argumento que, apesar de precário, foi repetido ad nauseam nas redes sociais. Marina seria a “nova face da direita”. Aécio seria, segundo este raciocínio, o passado e, nas palavras do presidente do PT, Rui Falcão, caminhava para a irrelevância.

Não foi difícil desgastar Marina até o ponto de excluí-la do segundo turno. Dilma contou, para isso, com tempo na TV quase seis vezes superior ao da adversária1. Os ataques não se limitaram a questionar o programa da candidata do PSB (sobre estes, se falará em seguida). Apresentaram-na ou como pessoa volúvel, ou como subordinada secretamente ao grande poder econômico. Exploraram vulnerabilidades reais. Convertida em candidata a apenas quarenta dias das eleições, vendo-se subitamente com chances concretas de tornar-se presidente, Marina compôs um arco de alianças vasto e heterogêneo, que descaracterizou seu programa e desgastou o perfil que procurava construir para si mesma.

Mas o resultado final da estratégia dilmista foi o tiro pela culatra que tornou o segundo turno totalmente indefinido. Poupado de ataques, Aécio manteve-se à tona. Buscou amparo e forças no que a política brasileira tem de mais tradicional. Beneficiou-se do financiamento das grandes empresas (sempre generoso e desproporcional a suas intenções de voto), das alianças regionais do PSDB com as velhas oligarquias (nunca submetidas a constrangimento nos noticiários), da eterna proteção da velha mídia. Chegou à disputa final sem alarde ou desgaste, contando essencialmente com o empenho anti-Marina da campanha Dilma.

Mas em torno dele se refez, no instante seguinte e de modo quase automático, a grande coalizão conservadora e seus métodos golpistas. Assim que foi aberto o segundo turno, toda a mídia passou a alardear, como se fosse verdade comprovada, o suposto caso de corrupção na Petrobras. É denúncia feita por um criminoso confesso. Refere-se a práticas que, segundo afirma o próprio denunciante, remontam ao período Sarney e atravessaram os governos de todos os seus sucessores – Collor, FHC, Lula, Dilma. Alguém se surpreende de que sejam despejadas, pela mídia, nas costas do PT, e de ocuparem, a cada dia, um latifúndio de tempo no Jornal Nacional? Em que mundo estavam Dilma e seus estrategistas da campanha, quando tomaram a decisão de desconstruir Marina e ter Aécio como adversário? Em que pensava Lula, quando festejou, logo depois de votar no primeiro turno, a ultrapassagem do tucano sobre a candidata da Rede?

Os limites da política institucional

Se a lógica destes estrategistas fosse presidida por política – e não pelo mero cálculo de marketing eleitoral –, haveria alternativas. Um segundo turno entre Dilma e Marina, livre da sombra da restauração conservadora, produziria um cenário muito distinto do atual – marcado pela troca de acusações pessoais entre os candidatos, por choques ásperos em torno de temas secundários (como a inflação) ou irrelevantes (como os parentes empregados por cada presidenciável…), pela ausência completa de reflexão sobre os avanços do país, seus impasses e os projetos de longo prazo para superá-los.

Ambas as candidaturas expressavam, de alguma maneira, as lutas sociais que marcaram a sociedade brasileira nas últimas quatro décadas. Dilma e o PT encarnam os movimentos sociais nascidos a partir dos anos 1980; a emergência das periferias, no início deste século; as conquistas alcançadas nos governos pós-2002 – redistribuição de renda tímida, porém efetiva e inédita; questionamento, ao menos parcial, dos dogmas impostos pelo Consenso de Washington; papel autônomo do Brasil no cenário internacional. Marina dialoga com a emergência do ambientalismo; a crítica aos velhos padrões de “desenvolvimento” e à noção protocapitalista segundo a qual a natureza deve ser “dominada” pelo ser humano e reduzida a “recurso”. Além disso, recupera ecos dos Fóruns Sociais, das manifestações de junho de 2013, da busca de uma nova democracia.

Estas relações permitiriam aos movimentos cobrar compromissos. Entrariam na berlinda, é claro, o estranho posicionamento de Marina a respeito do “independência” do Banco Central, ou sua atitude hesitante em relação ao Pré-Sal. Dilma, em contrapartida, seria pressionada a responder sobre os empréstimos favorecidos do BNDES aos maiores grupos econômicos (enquanto faltam recursos para financiar a pequena empresa), ou a opção preferencial pelo agronegócio (em prejuízo da reforma agrária). Neste ambiente, não seria estranho se entrassem em debate temas hoje considerados tabu. Que impediria Dilma e Marina de abordarem medidas contra o oligopólio da mídia? Ou a mudança da matriz energética, para favorecer as fontes renováveis? Ou a tributação da riqueza financeira?

Este tipo de debate, contudo, exporia as contradições das duas candidaturas. Por estarem vivas, e imersas numa sociedade em que as velhas estruturas de dominação não foram abaladas, ambas são “impuras”. Marina, é certo, precisou fazer concessões, para manter sua impressionante trajetória política. Ao terminar as eleições de 2010 com vinte milhões de votos, ela percebeu – mais ou menos como Lula, em 1989 – que, nas condições atuais de correlação de forças da sociedade brasileira, não avançaria para outro patamar apoiando-se apenas em seu eleitorado mais politicamente comprometido. No campo programático, procurou respaldo de economistas neoliberais (em especial, Eduardo Gianetti e André Lara Rezende), que lhe conferiram passaporte para o diálogo com o grande capital, especialmente o financeiro. Para continuar a crescer eleitoralmente, procurou consolidar sua ascendência junto ao imenso público evangélico – chegando, para tanto, a agir para suavizar as críticas ao bispo Feliciano. Em busca de diálogo com o mundo institucional, trocou a construção imediata de sua Rede por um compromisso de médio prazo com Eduardo Campos e o PSB, só alterado quando sobreveio uma tragédia imprevisível.

Mas o campo de Dilma não é igualmente contraditório? Tanto na campanha da presidente, quanto na da grande maioria dos parlamentares do PT e seus aliados, estão presentes o dinheiro e a influência dos grandes grupos econômicos. O leque inclui o grande capital industrial – nacional e transnacional – que se beneficia do aumento do consumo interno; os produtores de commodities exportáveis (agronegócio e mineração, especialmente), que surfaram na onda da valorização internacional de bens primários e foram poupados de oferecer à sociedade contrapartidas sociais e ambientais; e as empreiteiras de obras públicas, que voltaram a crescer, quando os dois últimos governos retomaram os investimentos em infraestrutura, depois de décadas de sucateamento, e em habitação. No terreno institucional, o PT optou por construir “governabilidade” sem tensionar o atual sistema político. Tal escolha exigiu alianças com um partido nitidamente fisiológico, o PMDB, e com os velhos caciques do Parlamento, cujas práticas são fartamente conhecidas.

Dilma rejeitou uma estratégia eleitoral que pudesse expor estas contradições. A campanha e o PT poderiam ter dialogado com a ideia de “nova política” enunciada por Marina. Tinham espaço, inclusive, para reivindicar este papel, disputando a bandeira com a adversária e recorrendo à tradição rebelde e mobilizadora que marcou a origem do partido. Nada disso implicava desconstrução. Os confrontos com a adversária, por esta defender a autonomia do Banco Central (BC) e ser evasiva a respeito da exploração do petróleo, eram justos e importantes. Mas não a tentativa de sugerir que a oponente fosse marionete de banqueiros nem, em especial, a caricaturização do debate. A subordinação atual das decisões do BC à presidência da República tem, acaso, colocado o Estado brasileiro a salvo da rapinagem da oligarquia financeira? Não pagamos as taxas de juros mais altas do mundo? Elas serão reduzidas, num eventual segundo mandato? Há intenção de interromper os leilões do Pré-Sal e oferecê-los à Petrobras, como a lei já permite e o governo não tem feito? A empresa continuará obrigada a fortes perdas e descapitalização, para subsidiar o combustível consumido pela classe média? Se a intenção for realmente debater o futuro do país – e não apenas vencer em outubro – estas questões bastante simples deveriam ter sido colocadas na mesa.

Se Dilma e seus estrategistas furtaram-se ao debate político e optaram por desconstruir a adversária é porque, num certo sentido, chegaram a seu limite. Estão muito colonizados pela política tradicional para questioná-la – e questionar, portanto, a si mesmos. Perderam a capacidade de dialogar com fenômenos como Junho, de aceitar a emergência de novas gerações de ativistas, de aceitar que sua visão de esquerda não é a única possível, de dialogar com uma nova cultura política. Seu limite ficou claro na peça emblemática de propaganda eleitoral em que disseram, no início de setembro: “sonhar, a gente sonha sempre; votar é com o pé no chão” ou nos ataques que lançaram a Marina pela “irresponsabilidade” de questionar “os partidos e o Congresso”. Num certo sentido, ao desconstruírem a oponente, desconstruíram também a si mesmos…

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III.

Terá chegado a hora de um Podemos?

Por que podem ser úteis, ao Brasil, as experiências de partidos-movimento –

que querem mudar o sistema político e têm apoio popular crescente

Entre as causas centrais para o surgimento de uma onda conservadora no Brasil está, certamente, a ausência de uma alternativa que aponte e reaja à crise do sistema político a partir da oposição ao capitalismo. O leque de opções que expressa a rejeição reacionária ao declínio da velha democracia é vasto. Vai da prepotência de um Jair Bolsonaro ou um Lasier Martins à postura insossa (“picolé de chuchu”) de Geraldo Alckmin, que pratica em São Paulo uma espécie de “governo invisível”, cujas decisões são sempre apresentadas pela mídia como “técnicas” ou “naturais”. Mas não há expressão orgânica ou simbólica do pensamento pós-capitalista. A esquerda clássica (PT e PCdoB, especialmente) é vista como integrada ao sistema. A ultraesquerda mantém-se apegada ao doutrinarismo e por isso é incapaz de comunicar-se além de pequenos círculos e crescer. Quem se opõe ao sistema a partir de valores como o compartilhamento, a distribuição das riquezas, uma nova relação entre ser humano e natureza; ou quem deseja construir formas de democracia que superem a ideia de representação encontra, no cenário das propostas visíveis… um vazio.

Esta ausência tende a se aprofundar – não por perversidade dos políticos, mas pelas condições concretas que limitam sua ação. Até que se construa uma grande Reforma Política, a esquerda institucional estará obrigada a seguir e reproduzir, cada vez mais intensamente, as regras atuais do jogo. Disputar eleições requer muito dinheiro (só a campanha Dilma à Presidência em 2014 previu arrecadar, oficialmente, R$ 300 milhões). Recursos fáceis vêm de grandes empresas – que exigem, dos políticos, fidelidade a seus interesses.

Milhares de brasileiros continuarão, enquanto isso, a enxergar a política como algo diferente. Eles a praticarão numa infinidade de atitudes, quase todas descoladas da vida institucional. Algumas poderão ser chamadas de ingênuas – cultivar uma horta comunitária numa praça que o poder público abandonou, contar histórias para crianças internadas, suavizando a desumanidade do sistema hospitalar. Outras terão repercussão muito maior. O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, secretário-geral do Itamaraty no governo Lula, gostava de reconhecer que a campanha dos movimentos sociais contra a ALCA, articulada no Fórum Social Mundial de 2012, foi decisiva para que o Ministério das Relações Exteriores e a Presidência ajudassem a desmontar o projeto de “integração” subordinada da América Latina tramado por Washington. O Marco Civil da Internet só surgiu depois que ativistas digitais, mobilizados por iniciativa do professor Sérgio Amadeu, decidiram combater um projeto de lei de controle e vigilância da rede – que era endossado pelos senadores Eduardo Azeredo (PSDB-MG) e Aloísio Mercadante (PT-SP).

Como criar condições que permitam, àqueles que se reconhecem numa nova cultura política, projetar-se além dos grupos de afinidade aos quais já estão ligados – articulando-se, trocando experiências, planejando ações conjuntas? Como tornar visível esta alternativa, mostrar que ela não é apenas um estado efêmero de crítica, mas uma opção real diante da crise da velha política e da necessidade de reinventar a democracia?

Durante algum tempo, esta questão pareceu insolúvel. Para alguns – os que se reconhecem no anarquismo do século XIX, por exemplo – qualquer participação em estruturas de poder do Estado deformava os movimentos sociais e devia ser rejeitada. Para outros – ligados à tradição marxista – os partidos tradicionais de esquerda continuavam a ser a referência, na política institucional. A ação essencial dos movimentos sociais deveria ser a de mobilizar suas bases cada vez mais intensamente, a ponto de pressionar estes partidos a assumir posições pós-capitalistas – ou, ao menos, posturas claras a favor das lutas por direitos sociais e políticas avançadas.

O atolamento da democracia e a emergência de novas dinâmicas

É provável que o tema seja recolocado em pauta, após as eleições deste ano, por pelo menos dois fatores. Primeiro, a onda de lutas iniciada em Junho de 2013 sacudiu o panorama da mobilização social e da própria esquerda no Brasil. Há uma nova geração de ativistas que se sente muito menos ligada às lutas que marcaram as décadas anteriores: vitória sobre a ditadura, enfrentamento das políticas neoliberais e, mais tarde, luta para eleger e manter os governos de esquerda moderada. Há uma necessidade evidente de diálogo entre esta nova geração e a anterior – mas ele não poderá ser feito no interior das velhas estruturas.

Os esforços de Marina Silva para organizar seu partido revelam que ela sentiu este movimento. Mas talvez tenha sido vítima de sua própria força e ambição. Ao colocar como objetivo central a disputa da Presidência, embalada pelos 20 milhões de votos da candidata em 2010, a Rede foi obrigada a mergulhar, prematura e muito profundamente, na lógica das instituições; a aceitar adesões e estabelecer alianças que a impediram de definir um programa coerente; a ceder ao cupulismo que criticou. A adesão a Aécio Neves, no segundo turno, afasta ainda mais a candidata do que pregava e pode desqualificá-la como defensora da “nova política” – mas não eliminará da sociedade este desejo, compartilhado por milhares de ativistas.

Um segundo fator são experiências internacionais. O esvaziamento da democracia é um fenômeno mundial. Iniciativas para enfrentá-lo têm surgido em diversos países – em especial na Europa, onde a crise da representação é mais antiga e mais profunda. Algumas esgotam-se rapidamente, por uma combinação de vazio programático e dependência de um personagem carismático. É o caso do Movimento Cinco Estrelas (MVS), articulado na Itália pelo comediante Beppe Grillo. Nas eleições parlamentares de 2013, o partido converteu-se na segunda maior força institucional, ao eleger 104 deputados e 58 senadores – quase todos cidadãos sem nenhuma experiência política anterior. Mas este imenso acúmulo tem sido desperdiçado pela recusa do MVS a se posicionar sobre qualquer assunto nacional importante e por sua tendência a fazer da crise da política um tema único.

Na Grécia e na Espanha, parecem estar despontando alternativas mais maduras, que provavelmente dialogam melhor com as lacunas brasileiras. O Syriza, na Grécia, e o Podemos, na Espanha, são algo novo: uma espécie de partidos-movimento. Reivindicam as lutas pela igualdade e justiça social que marcaram a esquerda nos séculos XIX e XX. Porém, rejeitam o verticalismo e realçam a potência das redes – inclusive como possível caminho para formas de articulação social que superem a ação centralizadora hoje exercida pelo Estado.

Ambos muito recentes, Syriza (2004) e Podemos (janeiro de 2014) têm origens distintas. O Syriza formou-se a partir de uma frente de pequenas organizações políticas (seu nome é a sigla, em grego, de Coalizão da Esquerda Radical), que se formou após a cisão do Partido Comunista, na virada do século. Soube abrir-se a movimentos que se reconheciam na nova cultura política dos Fórum Sociais Mundiais e que enfrentaram, nas ruas, as políticas de eliminação de direitos sociais (“austeridade”…) impostas à Grécia a partir de 2008. O Podemos nasceu a partir da experiência dos Indignados espanhóis e teve ascensão ainda mais rápida. Apareceu quando um grupo de ativistas, intelectuais, artistas, jornalistas e sindicalistas heterodoxos lançou, farto da surdez do sistema institucional aos protestos de rua, um documento intitulado Converter a Indignação em Mudança Política. Houve sabedoria para promover o ato. Evitou-se envolver apenas ativistas de base. A reunião de personalidades conhecidas em torno do manifesto deu-lhe a projeção inicial de que precisava. Embora ambos tenham perfil intelectual distinto, Pablo Iglesias, a principal referência do Podemos, era já uma figura emergente no jornalismo e na TV, alguém com inserção midiática semelhante a um Gregório Duvivier, no Brasil…

Além de enorme popularidade, os dois partidos-movimento compartilham ao menos três características comuns, que podem interessar aos que querem abrir um novo horizonte utópico no Brasil.

Primeira, eles rejeitam a forma de organização tradicional que partidos políticos e Estado compartilham: especialmente, estrutura vertical, hierarquia rígida, promiscuidade entre poder econômico e política.

O Podemos, por exemplo, emprega intensamente a internet para debate e tomada de decisões. Quatro meses após constituído, o partido-movimento escolheu, via web, seus candidatos para as eleições ao Parlamento Europeu. Agora, vive um processo ainda mais crucial. Iniciada em 15 de setembro, uma Assembleia Cidadã definirá coletivamente, até 15 de novembro, três documentos essenciais do grupo: um político (definição de estratégia pra o próximo período); um organizativo (construção de uma estrutura baseada em Círculos de cidadãos e formas de articulá-los); e um ético (expressando os compromissos que devem ser assumidos por seus membros, responsáveis internos e representantes eleitos). Há amplo espaço de participação em todas as etapas do processo.

O Podemos também rechaça doações de empresas – embora a legislação espanhola (assim como a brasileira) as veja como legítimas. A reduzidíssima estrutura e as despesas do partido-movimento são custeadas, item por item, por um sistema de doações autônomas em rede (crowdfunding). No momento, buscam-se 80.514 euros para custear a Assembleia Cidadã. Cada tópico de gasto está descrito em detalhes.

A segunda característica comum ao Podemos e Syriza é que, embora disputem eleições, fazem-no a partir da denúncia do sistema político e da exigência de sua reforma radical. Ambos falam “sequestro da democracia” pela oligarquia financeira e pelos partidos tradicionais. O Podemos propõe, na Espanha, uma Assembleia Constituinte. Esta opção por não se ausentar da vida institucional, mas ao mesmo tempo apontar sua miséria e buscar sua transformação, permite que os dois grupos atraiam o voto de protesto contra o sistema político. É algo essencial na Europa, onde também a direita antidemocrática e neofascista tenta apresentar-se como “alternativa” autoritária à crise da política. Ao mesmo tempo, a atitude converte cada eleição num plebiscito: uma vitória do Podemos ou do Syriza expressaria, quase de modo automático, a descrença da maioria nas atuais instituições.

E a esta atitude de permanente tensão contra a decadência do sistema político, Podemos e Syriza acrescentam – terceira característica comum – um tipo peculiar de programa. Não fazem a pregação ideológica dos partidos de extrema esquerda. Porém, sua postura de superação do capitalismo é nítida (outra diferença essencial com a Rede de Marina Silva) e está expressa em pontos programáticos extremamente simples, mas de enorme apelo popular. A bandeira central do Syriza é a reversão das políticas de “austeridade” que eliminaram direitos sociais e sucatearam serviços públicos, para permitir que o país continuasse engordando, por meio de pagamento de juros, a oligarquia financeira. O Podemos defende o mesmo e quer, ainda mais especificamente, proteger do despejo dezenas de milhares de pessoas que, desempregadas ou subempregadas, tornaram-se inadimplentes com o crédito imobiliário.

Em outros tempos, esta combinação de democracia interna ampla, denúncia do sistema político e programa pós-capitalista ficaria restrita a pequenos círculos. No novo cenário, Syriza e Podemos são fenômenos de popularidade. Até a revista The Economist, que se opõe frontalmente ao programa do Syriza, reconhece que Alexis Tsipras é o candidato favorito a tornar-se o próximo primeiro-ministro da Grécia, em eleições que ocorrerão até junho de 2016. Tsipras, de apenas 39 anos, parece possuir uma qualidade às vezes rara entre expoentes da esquerda: a determinação e coragem de tornar seu projeto real, de submetê-lo ao teste da realidade, de não deixar que se esvaia em utopia apenas onírica. Cria fatos novos em sequência, na Grécia e no exterior. No início de outubro, veio à América do Sul, onde se encontrou com os presidentes José Mujica (Uruguai), Evo Morales (Bolívia) e Rafael Correa (Equador). Afirmou que as experiências destes países, e de outros na região, confirmam: “pode-se governar com os povos, enfrentando os privilegiados”. Em meados de setembro, ele, que assume o ateísmo, encontrara-se com o Papa Francisco, no Vaticano. Não fez, ao final da visita, as declarações insossas de praxe. “Partimos de pontos de vista diferentes”, disse, “mas nos reunimos para tratar de valores humanos comuns”. E, depois de tratar Francisco como o “Papa dos Pobres”, acrescentou: “É preciso criar uma aliança ecumênica contra a pobreza, as desigualdades e a lógica de que os mercados e o lucro estão acima das sociedades.”

Nas primeiras eleições que disputou (ao Parlamento Europeu), o Podemos obteve 7,98% dos votos. Já então, assumiu a condição de principal referência de esquerda, superando a tradicional Izquierda Unida (IU), uma coalizão tradicional de organizações marxistas. Continuou crescendo. Agora, apenas dez meses depois de formado, as últimas pesquisas de opinião dão-lhe 21% das preferências dos eleitores nas eleições para o Parlamento. É o mesmo patamar do PSOE (ex-social-democrata, existente há 135 anos) e apenas um pouco abaixo do PP (de direita, no poder). As mesmas sondagens sugerem que o Podemos está em condições muito favoráveis para disputar as prefeituras de algumas das principais cidades espanholas, em maio próximo. Sua eventual vitória em Madri ou Barcelona (onde o Podemos articula-se com um grupo muito semelhante – o Guanyen (“Ganhemos”) – produziria um primeiro abalo na velha política espanhola.

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IV.

Por um programa de mudanças profundas

Nas importantes mobilizações dos últimos anos,

há esboço de novo projeto para o país. Não será hora de desenvolvê-lo?

O discurso em favor de uma nova cultura política esvazia-se quando não está acompanhando de um novo projeto de país e de mundo. Se dizemos que as instituições atuais “não nos representam”, não é apenas porque muitos de seus personagens centrais nos desagradam – mas, fundamentalmente, por sentirmos que o sistema político bloqueia transformações para as quais a sociedade já está madura. Porém, quais são mesmo estas transformações?

Desde que se tornaram claros os impasses do lulismo, há um vazio de horizontes programáticos no cenário da esquerda brasileira. É, provavelmente, a primeira vez que isso ocorre, nos últimos trinta anos. Entre o período final da ditadura e a primeira eleição disputada por Lula, em 1989, o país foi marcado pela retomada das lutas operárias e por um intenso movimento de reivindicações e de crítica ao projeto de desenvolvimento com ampliação das desigualdades, implantado sob liderança dos militares. O processo desembocou em intensas pressões sociais sobre a Assembleia Nacional Constituinte (1986-88). Foi expresso, um ano mais tarde, nos “13 pontos” da campanha à Presidência da Frente Brasil Popular. Muito à esquerda do que seriam, mais tarde, os governos do PT, o documento era uma síntese do desejo de mudança expresso no período anterior e serviu de referência e inspiração não apenas eleitoral.

À derrota de Lula seguiram-se os governos neoliberais de Collor de Mello, Itamar Franco e FHC, a inserção submissa do Brasil no processo de globalização e a neutralização das lutas trabalhistas, num ambiente de desemprego em massa. Os excluídos (em especial, o MST) tornaram-se centrais, na resistência ao novo modelo. Ao final da década de 1990, uma obra coletiva (A Opção Brasileira), coordenada por César Benjamin e corredigida por um grupo de intelectuais e ativistas, recolheu, sistematizou e projetou o caminho aberto pelas novas lutas. O projeto da esquerda no governo, a partir de 2002, seria outro – muito mais moderado e disposto a elevar as condições de vida das maiorias evitando ao máximo conflitos com os poderosos. Ainda assim, ele alimentou, por uma década, o imaginário das mudanças – expresso no combate real à miséria, na criação de brechas para mobilidade social como as quotas raciais e a expansão do ensino superior e técnico, numa postura “altiva e ativa” do Brasil no mundo.

Porém, que visões de futuro o lulismo pode oferecer ao país, em 2014? A campanha de Dilma fala em “choque de dois projetos”, mas tudo o que consegue enunciar, quanto tenta concretizar esta ideia, são ecos da última década. Não aponta passo adiante a realizar nem é capaz, portanto, de mobilizar energia política. Tornou-se prisioneira da suas contradições. O “coração valente” do país, que a candidata diz expressar, esboçou, nos últimos anos, novas lutas e desejos políticos. Os laços de Dilma com o velho sistema a impedem de agir neste sentido. Sobra o marketing. Os comícios deste ano não são sombra das imensas festas políticas populares que se disseminavam por todo o país e marcavam as campanha anteriores do PT. No entanto, uma das linhas do material de campanha da candidata estampa, em leiaute pós-moderno, peças com Dilma guerrilheira, com um índio munido de arco e flecha e até mesmo com um “Podemos Mais”…

Será possível começar a esboçar este programa, do qual a esquerda histórica está, ao menos no momento, afastada? Não é possível fazê-lo sem partir das mobilizações existentes. Dos movimentos dos últimos anos, emergiu um conjunto de propostas que despertam entusiasmo crescente de amplos setores sociais – mas são bloqueadas pelo sistema político. Enunciá-las articuladamente teria enorme importância simbólica, tanto para expor esta contradição quanto para reconstituir um horizonte de mudanças sociais profundas, capaz de mobilizar esperanças coletivas. Eis, apenas para provocar o debate, alguns pontos que esta construção programática coletiva poderia abordar:

> Pouco debatida até Junho de 2013, a Reforma Política está cada vez mais presente no imaginário dos movimentos sociais, coletivos e pessoas que enxergam o sequestro da democracia pelo grande poder econômico e buscam abrir caminho para formas diretas e autônomas de participação dos cidadãos. Dois desdobramentos mais compreensíveis são o veto ao financiamento dos partidos e candidatos por empresas e a facilitação de plebiscitos, referendos e projetos de lei de iniciativa popular – inclusive com uso da internet.

> A luta por por Serviços Públicos universais e de qualidade foi central nos protestos do ano passado e tende a retornar. Tem enorme importância pedagógica, porque remete a um projeto claramente pós-capitalista: usar parte da riqueza social para construir uma esfera dos Comuns – bens e serviços que, por indispensáveis à garantia de uma vida contemporânea digna, precisam ser oferecidos a todos, gratuitamente. Aqui, porém, há dois esforços de politização a fazer. Primeiro, dar caráter radical à proposta, afastando simplificações grosseiras presentes em Junho de 2013 (“Educação e Saúde padrão FIFA”…).

Sentidos centrais alternativos são igualdade e desmercantilização. Por exemplo, é preciso projetar que, num horizonte de dez anos, a rede pública de ensino básico e médio será tão boa e muito mais inovadora que as melhores escolas privadas – e será gratuita. Ou que, neste mesmo prazo, os planos médicos privados irão tornar-se obsoletos, porque o SUS terá condições para oferecer, a cada brasileiro, os melhores recursos de tratamento e prevenção que a ciência desenvolveu. Esta perspectiva é um contraponto compreensível tanto à ideia de “choque de gestão”, sustentada por Aécio, quanto aos programas compartimentados e assistêmicos de Dilma (o “Mais Especialidades”, por exemplo).

> A ideia de uma vasta rede de serviços públicos inovadores e desmercantilizados só se torna concreta se associada a uma profunda Reforma Tributária. Os gastos do Estado brasileiro com Saúde e Educação cresceram substancialmente nos últimos doze anos (o que permitiu, por exemplo, um importante crescimento da rede de universidades públicas e escolas técnicas), mas são insuficientes para assegurar redução ampla das desigualdades. Para isso, será necessário estabelecer mecanismos de justiça fiscal conhecidos (mas sempre evitados pelas elites brasileiras) – como a tributação das grandes fortunas, o imposto sobre transações financeiras, as alíquotas elevadas de imposto de renda sobre pessoas físicas e jurídicas que recebem salários ou auferem lucros muito acima da média. Uma falsa ideia alimentada incessantemente pela mídia – a de que o Brasil é um dos países com carga tributária mais alta do mundo – tem de ser substituída por uma verdade. Somos o país dos impostos injustos. Precisamos enfrentar este problema eliminando os privilégios fiscais de quem pode contribuir para a manutenção dos serviços públicos mas não o faz.

> Multiplicaram-se nos últimos anos as mobilizações que defendem uma nova relação entre ser humano e natureza. Já não é apenas uma agenda “verde” cosmética. Compreende-se a finitude do planeta, que a lógica alienada do capitalismo procura (mas já não consegue) negar. Defende-se um estilo de vida mais frugal, oposto à dinâmica do consumismo. Questiona-se um dos pilares do “desenvolvimentismo”: a ideia de que ampliar a produção de riquezas é um valor positivo em si mesmo.

Esta nova consciência desencadeou ações de grande repercussão – por exemplo, contra a Usina de Belo Monte ou em defesa do Código Florestal, aviltado pelo Legislativo. Ironizada por alguns, como se fosse romântica, ela pode, ao contrário, abrir caminho para um feixe de alternativas ligadas ao pós-industrialismo e ao pós-capitalismo. Significa, por exemplo, retomar a demarcação das terras indígenas, hoje praticamente paralisada, e afastando o risco de transferir o poder demarcatório ao Congresso Nacional, onde as bancadas ruralistas congelariam o processo.

Implica construir um novo modelo agrícola, que retome a Reforma Agrária nos novos moldes propostos pelo MST, restrinja o poder do grande agronegócio e apoie decisivamente a pequena propriedade, o respeito às culturas alimentares, o orgânico, o livre de agrotóxicos.

Requer rever a matriz energética – abandonando as usinas termelétricas, que queimam petróleo ou carvão e substituindo-as por centrais eólicas ou solares; repensar a construção de hidrelétricas, vetando, entre outros danos, a inundação de terras e desrespeito aos direitos indígenas; assegurar o acesso de todos à eletricidade, mas penalizar o consumo predatório – tanto industrial quanto residencial; utilizar o Pré-Sal como ponte para uma economia pós-carbono, financiando, com recursos do petróleo, tanto a pesquisa tecnológica em energias alternativas quando os custos adicionais que sua geração ainda implicará por algum tempo.

Esta agenda ambiental pós-capitalista tem uma dimensão urbana poucas vezes explorada. Ela pode se expressar, por exemplo, em propostas de enorme humanização das cidades, a geração de postos de trabalho e a limitação do poder devastador do capital. É o caso da despoluição dos rios que cruzam as metrópoles – uma tarefa já realizada com sucesso em muitas partes do mundo, porém sempre adiada no Brasil. Ou da universalização da coleta de esgotos (disponível, até 2012, para apenas 46% dos brasileiros) e seu tratamento (do total volume coletado, apenas 38% era tratado, no mesmo ano).

Um segundo aspecto relacionado ao mesmo tema é a redução, reciclagem e descarte do lixo. Embora tenha havido avanços, com a Política Nacional de Resíduos Sólidos, esta muito pouco fez até o momento, em relação às embalagens. As metrópoles brasileiras continuam extremamente atrasadas na implantação de sistemas de coleta seletiva (estendida, em São Paulo, a apenas 10% dos domicílios). Além de corrigir rapidamente este problema (para o qual as soluções tecnológicas e logísticas estão disponíveis há muito tempo), é preciso reduzir a geração maciça, crescente e desnecessária de materiais como garrafas pet e a obsolescência programada de uma imensa variedade de bens que entulham as cidades.

> O Direito à Cidade é, aliás, um tema emergente, em torno do qual despontou, nos últimos anos, uma constelação de lutas densa, rica e plural. Começa pelo reivindicação à moradia. Cada vez mais intensa, ela vai muito além da oferta de casas e do (importante) subsídio às famílias mais pobres oferecidos pelo Minha Casa, Minha Vida. Pleiteia o direito de morar em bairros centrais, ou dotados de infraestrutura digna – além da construção por meio dos próprios movimentos, e não de grandes empreiteiras.

Mas o MTST – o mais potente e criativo destes movimentos – é incisivo ao frisar que a luta por moradia é apenas um dos aspectos de um projeto muito mais profundo. Implica resgatar as periferias, livrando-as da condição de senzalas contemporâneas, a que o capital quer relegá-las. Significa uma revolução urbana: inverter completamente as prioridades políticas e orçamentárias das metrópoles; mobilizar recursos para assegurar, a dezenas de milhões de brasileiros, as conquistas básicas de urbanização já existentes nas “áreas nobres”: saneamento, água limpa, internet rápida, ruas calçadas e arborizadas, segurança pública, equipamentos de Educação, Saúde, Cultura.

Exige, ainda, mudar por completo o padrão atual de mobilidade urbana. O modelo baseado no automóvel esclerosou as metrópoles – mas é muito mais cruel para os moradores dos subúrbios, obrigados a perder três ou mais horas diárias para se deslocar entre casa e local de trabalho. Assegurar o Direito à Cidade requer deslocar parte da riqueza coletiva para sistemas modernos de transporte coletivo. São decisões que não amadurecem imediatamente – mas são plenamente possíveis. Em Xangai, o metrô, iniciado há apenas vinte anos, já oferece 500 quilômetros de rede (sete vezes mais que o de São Paulo, que tem o dobro da idade) e 289 estações. No Brasil, seria preciso estabelecer metas realistas, porém capazes de mobilizar. Propor, por exemplo, que o transporte público será aprimorado consistentemente até que, num prazo de duas décadas, ninguém precise perder mais de uma hora para se deslocar da periferia mais distante de uma grande cidade até o centro.

A luta pela mobilidade urbana não se restringe aos subúrbios. É em torno dela que grupos de jovens articulam, há anos, em todo o país, o importante movimento pelo Passe Livre nos transportes públicos – estopim dos protestos de junho de 2013. Defesa e desmercantilização dos serviços públicos parecem ser ideias capazes de se difundir e oferecer contraponto à ideia elitista de “desmonte do Estado”. O Direito à Cidade, aliás, contagia vastos setores das classes médias. Significa, para estes, livrar as metrópoles da especulação imobiliária e da ditadura do automóvel. Enfrentar o aumento extorsivo dos preços do aluguel, impedir que novos empreendimentos comerciais invadam os espaços públicos que restam (vide a Ocupação Estelita, no Recife, e a luta pelo Parque Augusta, em São Paulo), restringir a circulação de carros privados, ampliar a rede de ciclovias, bloquear o aburguesamento (“gentrificação”) de zonas populares. Construir Cidades sem Cercas, Metrópoles para Todos.

Os pontos acima não visam compor uma programa. São apontamentos rápidos sobre temas que mobilizaram importantes setores da sociedade, nos últimos anos – e que podem gerar propostas políticas transformadoras. Desmentem a ideia, muitas vezes difundida entre a própria esquerda, de que as lutas sociais estão em refluxo, de que “Junho acabou”. Seria muito fácil ampliar o elenco mencionando movimentos ligados à Comunicação, à Cultura, à livre circulação do Conhecimento ou à vasta pauta que procura combater, no terreno dos Costumes, as visões conservadoras ou fundamentalistas.

À primeira vista, é espantoso que pontos como estes não tenham composto uma atualização do programa do lulismo. Se foi assim, é porque chegou-se a um beco político. Hoje, os vínculos da esquerda histórica com setores do poder econômico e político impedem-na de abraçar bandeiras como estas. Como defender um novo modelo agrícola e ser maciçamente financiado pela Friboi? De que modo repensar as grandes obras rodoviárias ou energéticas, mantendo relações íntimas com as empreiteiras de obras públicas. Como lutar pela legalização das drogas, sem enfrentar as bancadas evangélicas no Congresso? Para construir, debater e mobilizar múltiplos públicos, em favor de um programa de reformas efetivas, talvez seja necessário uma organização tão autônoma e inovadora como um Podemos ou um Syriza. Mas… que fazer em 26 de outubro?

* * *

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V.

Contra o retrocesso, o “voto Duvivier”

Dilma será incapaz de realizar transformações de que país necessita.

Mas elegê-la, evitando grande passo atrás, interessa especialmente a quem percebe este limite

A polarização estridente e de baixa densidade, que marcou as eleições de 2014, atordoou a esquerda não ligada à candidatura de Dilma. A tensão foi menor no PSOL – onde Marcelo Freixo, Jean Willys, Gilberto Maringoni o outros posicionaram-se, desde o início do segundo turno, anunciando voto crítico em favor de Dilma. Mas agudizou-se entre os que, identificando-se com ideias pós-capitalistas, apoiaram Marina ou simpatizaram com ela. Até a véspera da eleição, continuavam indefinidos intelectuais como Luiz Eduardo Soares e Ricardo Abramavay, artistas como Gilberto Gil e jornalistas como Eliane Brum.

Enquanto isso, jovens pensadores como Bruno Cava e Moysés Pinto Neto, que têm se destacado nas redes sociais por suas análises instigantes sobre o cenário brasileiro, sugerem que votarão nulo em 23 de outubro. Ecoam as inquietações de milhares de ativistas que se identificaram com Junho de 2013. Moysés revela ter votado no PT em diversas ocasiões anteriores, e apoiará Tarso Genro, para o governado gaúcho. Mas pergunta: como votar em Dilma, se ela recusa-se a assumir compromissos com o que as manifestações exigiam – e até mesmo a rever o apoio do governo federal à brutalidade das PMs contra os manifestantes? Bruno, no Rio, assombra-se com entre aliança a presidente e personagens emblemáticos na repressão a Junho: o ex-governador Sérgio Cabral, seu vice e atual candidato Pezão, o prefeito Eduardo Paes. Diante destas atitudes, pensam eles, optar por qualquer dos postulantes que chegaram ao segundo turno seria assumir compromissos inaceitáveis.

Com enorme respeito aos que foram citados, este texto sustenta opinião distinta. O Brasil viverá, a partir de 2015, um período decisivo e possivelmente turbulento. As tensões políticas – que, como apontou Guilherme Boulos, intensificaram-se desde que a economia estancou e tornou-se impossível contentar ricos e pobres – tendem a se acirrar. As possibilidades de reviravoltas bruscas, também. Um governo Dilma será incapaz de articular as grandes transformações de que o Brasil precisará, ainda mais urgentemente, diante dessa conjuntura. Mas será também, por sua própria natureza, contraditório. A eventual vitória de Aécio engendraria uma grande coalizão das forças mais retrógradas. Alinharia o Executivo, a maioria do Congresso, a cúpula do Judiciário e a Velha Mídia, produzindo um ambiente político tão mortiço como o que se vive hoje em São Paulo.

Não se trata, como se viu até aqui, de um “choque de projetos”: assim como Aécio, Dilma também não questiona as estruturas políticas, econômicas e sociais que fazem a sociedade brasileira desigual, injusta e predatória. Mas três aspectos fundamentais, em que as eleições farão enorme diferença, merecem ser observados.

O primeiro diz respeito ao papel do Brasil no mundo. Aqui, parte-se de um retrocesso. O governo Dilma abandonou grande parte da ousadia rebelde que caracterizou seu antecessor. Dirigido por dois chanceleres sombrios, o Itamaray jamais repetiu iniciativas que desconcertaram a geopolítica eurocêntrica – como organizar em Brasília uma Cúpula Sulamericano-Árabe, ou articular uma saída para a disputa entre Estados Unidos e Irã, em torno da energia nuclear. Além disso, flerta recorrentemente com perspectivas regressivas, como um eventual acordo de “livre” comércio entre União Europeia e Mercosul.

Mas são deslizes incomparáveis com a perspectiva de Aécio – submissa aos EUA e à ordem eurocêntrica, avessa a qualquer arranjo geopolítico alternativo, hostil às tentativas de afirmar a independência da América do Sul. O ex-governandaor mineiro sabe: aqui, não encontrará a resistência que barraria medidas como um ataque ao Bolsa-Família, ou ao Mais Médicos. A política externa é assunto acompanhado por muitos poutos poucos, hoje incapaz de mobilizar a sociedade. O presidente tem o privilégio da decisão unipessoal – e ela muda muito…

Pode ter consequências dramáticas e duradouras, não irreversíveis por muito tempo. O esforço pela chamada “Segunda Independência” da América do Sul é um movimento vibrante, porém frágil. Governantes de países como Venezuela, Equador e – principalmente – Argentina, Uruguai e Bolívia não escondem: a ascensão de um governo alinhado aos Estados Unidos, em Brasília, reverteria acordos fundamentais. Além disso, atiçaria as elites locais. O papel estabilizardor que os três últimos governo brasileiros desempenharam em favor de Evo Morales ou Hugo Chávez seria revertido.

No plano dos BRICS, o papel do Brasil é muito menos relevante. China e Índia, ao menos, têm papel geopolítico maior que o nosso – e parecem mais empenhados em questionar a ordem mundial favorável a Washington. Mesmo nesse bloco, porém, um eventual realinhamento pró-EUA de Brasília teria consequências desastrosas, dada a parcialidade orwelliana da mídia internacional. E viria no preciso momento em que a Casa Branca, diminuída política e economicamente, tenta compensar estes declínio nos terrenos militar e de vigilância, abrindo novas frentes de guerra, recusando-se a rever a espionagem sobre a internet, mantendo o terror de Estado por meio do assassinato de oponentes.

O segundo ponto de desalinhamento claro entre as candidaturas é a política econômica – em especial, o vasto guarda-chuvas de assuntos relacionados à riqueza do Pré-Sal. Também aqui, estamos diante de algo decisivo e desconhecido.

O novo governo precisará lidar com a deterioração das contas externas, a desindustrialização da economia, a possível desaceleração da China – grande importadora de nossas matérias-primas. A posição de Dilma é incerta. A presidente anunciou que troará o ministro da Fazenda. Algumas especulações falam na volta de Antonio Palocci, o que seria trágico.

Mas e Aécio? Sua ligação – sempre reafirmada – com Fernando Henrique Cardoso e sua decisão precoce de indicar Armínio Fraga (um mega-especulador) para o ministério da Fazenda não sugerem, não sugerem que retomará o impulso de proteger a oligarquia financeira – e deixar todos os demais ao desabrigo – sempre que surgirem dificuldades no horizonte? A existência de imensas reservas de petróleo não convidará a usá-las em proveito desse setor, desperdiçando-as, sem que resultem em benefício algum para as maiorias?

A terceira grande diferença é a que se refere ao título deste texto, quando alude ao “voto Duvivier” Não tem relação colm as posturas dos candidatos, mas diz respeito a algo de enorme importância: sua base social. Dois comícios – um de Dilma, no Rio (Cinelândia), outro de Aécio em São Paulo (Pinheiros) evidenciaram algo ontem (22/10).

Com Dilma , esteve uma multidão heterogênea e colorida, parte da qual opõe-se, na prática, aos compromissos políticos da candidata. Havia, por exemplo, defensores da democrataização das comunidações, da garantia de direitos civis aos casais LGTB, da redução da jornada constitucional de trabalho a 40 horas por semana. Já em São Paulo, havia uma pequena multidão cinzenta, que gritava insistentemente: “Viva a PM”.

* * *

Oito dias antes, o ator e escritor Gregório Duvivier havia manifestado sua singular declaração de voto. Ao fazê-lo, não escondeu certa desesperança. “Não voto feliz em nenhum dos dois candidatos”, disse. Explicou o motivo, em clara referência às misérias do sistema político: “não importa quem ganhe, já começa endividado – e vai quitar a dívida com dinheiro público. Ambos contraíram empréstimos milionários com empreiteiras, bancos, com a Friboi (sim, a Friboi doou a mesma quantia para os dois candidatos -não quis correr riscos) e fizeram acordo com os setores mais reacionários da sociedade. Ambos os governos – não se enganem – vão ser ruralistas, fundamentalistas e corruptos”.

“Por essas e outras”, frisou Duvivier, “poderia votar nulo”. Se preferiu não fazê-lo, foi devido ao que vai além do que cada candidatura diz pretender – os grupos sociais que a apoiam e o ambiente que se arma em torno dela. Ao descrever a “onda Aécio” que parecia contagiar o Rio há dez dias, o ator destacou: “Estou voltando para casa a pé, tarde da noite, quando percebo que uma enorme SUV me acompanha – lustrosa, reluzente, cheirando a blindada. (…) Um sujeito põe a cabeça para fora da janela e berra: ” Vaza, PT! Volta pra Cuba!” Foi este clima que fez Duvivier decidir seu voto: “A militância de jipe e os comentaristas de portal não me dão essa opção [de anular o voto]. Se quem defende causas humanitárias e direitos civis é tachado de petista, não me resta outra opção senão aceitar essa pecha”…

A epidemia das SUVs aecistas, no Rio, ou a multidão bradando pela PM, em São Paulo, não são detalhes desimportantes. No cenário de dificuldades econômicas e turbulências internacionais que se conformará logo após as eleições, a eventual vitória do PSDB desencadearia, tudo indica, uma onda regressiva, uma caça às bruxas cujos alvos seriam as principais conquistas políticas e culturais dos últimos anos.

Já a eleição de Dilma – ou seja, o que resultará de um “voto Duvivier”, tão crítico quando seu criador – abrirá, quase imediatamente, pelas próprias contradições que cercam a candidata, uma espécie de “terceiro turno”, uma disputa pelo futuro do país. Nela, terão o espaço o governo, a oposição de direita e também os que, não querendo abrir mão das conquistas dos últimos doze anos, consideram-nas limitadas e insuficientes.

Qual dos dois cenários interessa a quem busca transformar a sociedade brasileira, enfrentar a camisa de força do atual sistema político e a avançar muito além do que o governo Dilma pode oferecer? Qual deles torna mais próxima uma experiência semelhante à do Podemos e mais visível o novo horizonte utópico de que precisamos?

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