Como pulsa hoje nosso desejo de rua?

Há dois anos, texto a seguir celebrava a ocupação do Parque Augusta, em SP; e o impulso de “tornar respirável o dia a dia na cidade e no planeta”. Até que ponto este movimento continua ativo? Que novas formas poderá assumir?

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Por Peter Pal Pelbart

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Publicado em 3/3/2015, este artigo traz boa parte da história da luta pela criação do Parque Augusta. (A frase inicial, por datada, foi excluída.) O movimento pela defesa do Parque convoca manifestação nesta terça, 18 de abril, quando acontece novo momento decisivo em defesa da última área verde do centro metropolitano de São Paulo.

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No ano passado [2014] o movimento pela defesa do Parque Augusta conseguiu que o prefeito Haddad sancionasse o projeto de lei que previa a criação do parque, mas dias depois se deparou com o fechamento ilegal do terreno por iniciativa das incorporadoras Setin e Cyrela, que ali planejam a construção de três torres imensas. Diante do impasse, o movimento decidiu “abrir uma trilha” no interior da área cercada, como uns bandeirantes às avessas: em vez de matarem índios e se apossarem da terra, liberaram um pedaço de Mata Atlântica autêntica no coração da capital paulista. E instauraram uma “zona de autonomia ambiental temporária”, com ações de sensibilização empreendidas por vários coletivos e moradores, sem coloração partidária nem fins políticos. A intenção não é apropriar-se do terreno, mas abri-lo a um “uso comum”, como diria Agamben.

Uma breve passagem pelo local permite a qualquer um cruzar as 700 árvores centenárias, vislumbrando, como numa alucinação transhistórica, um dos poucos resquícios de “passado” pré-colombiano fincado na metrópole e soterrado por ela. Ao perambular pela área onde antes erguia-se o Colégio des Oiseaux, hoje se veem mais de 200 árvores de várias espécies plantadas, uma cisterna para coleta de chuva, uma rádio local na base da tecnologia móvel, a mais simples e ágil, um seminário de micropolítica acontecendo debaixo de um sol inclemente, uma aula de ioga a céu aberto, jovens com seus laptops ligados cuidando em manter viva a rede de contatos, informações, articulações, um filme sendo projetado, assembleias e aulas abertas – em suma, uma “vigília criativa”. Eis uma terra em que ninguém se pensa como dono de nada, ninguém vende nem compra nada, ninguém manda em nada, onde pessoas de diferentes idades, origens, formações, sensibilidades, coabitam por um tempo em contiguidade pluralista, num jogo aberto entre iniciativas autônomas, afetividades e sexualidades singulares, e assim deixam entrever o que poderia uma vida coletiva hoje, polifônica, regida por uma lógica outra que não a da voracidade autocentrada, da normopatia blindada ou da monocultura entrópica. Um “kibutz do desejo”, diria Cortázar. Mas na sua versão ecológica, biopolítica. Pois é isso também que ali se ensaia – não se trata de “apropriar-se”, “tomar o poder”, ou apenas gritar palavras de ordem uníssonas contra o capital ou a gentrificação, mas também zelar pelas árvores, pela circulação livre, pela sustentação coletiva, e experimentar formas-de-vida inabituais, múltiplas, que não têm nome, ainda que os ativistas usem noções aproximativas como horizontalidade, autogestão, organização em rede.

Não é uma utopia ingênua de idílico retorno à Natureza, nem uma comuna hippie deslocada no tempo e no espaço, mas uma aposta biopolítica que, embora enunciada numa escala diminuta, pode destampar a imaginação política em escalas outras. Afinal, a questão central, mesmo e sobretudo em tempos de crise, continua sendo: que formas de vida nós desejamos hoje? Como o escreveu um tal de “comitê invisível” longínquo, a força dos islamistas radicais está no sistema de prescrições éticas que eles oferecem, como se eles tivessem compreendido que é no terreno da ética, e não da política, que o combate se trava. Nas antípodas do Estado Islâmico, o que se esboçou no Parque Augusta está mais próximo do bien vivir, como dizem alguns povos indígenas vizinhos nossos. Inspirado nessa tradição dos povos autóctones, Eduardo Viveiros de Castro lançou há pouco uma bela ideia, no livro terrivelmente perturbador que escreveu com Déborah Danowski em torno da destruição não só do mundo mas também dos múltiplos mundos, a saber: a “suficiência intensiva”.[1] Como descolar-se da lógica do acúmulo, aceleração, progresso, destruição, para reorientar-se em direção a uma vida “intensivamente” suficiente, e não quantitativamente ideal? Pois esta, sabemos, tende ao infinito, embora esbarre nos recursos finitos do planeta que ela se encarrega de exaurir. É preciso passar por um “ralentamento cosmopolítico” para que tal recondução seja pensável. Claro que não temos para isso ainda um povo, como dizia um pensador, longe disso. Mas algo nos diz – porém também isso colhemos de reflexões alheias – que não existe primeiro um “sujeito revolucionário” e depois uma “insurreição”, mas são as sublevações várias que vão constituindo um “povo”, por assim dizer. Ou então é nesse meio que se inventam “modos de povoamento”. Usamos palavras um pouco velhas e em desuso, ou estranhas e grandiosas demais, para dizer coisas muito simples e atuais.

Desde as revoltas de junho de 2013, a pergunta que continua no ar é a seguinte: será que aquilo que foi empreendido e experimentado no corpo a corpo por multidões pelo país afora, que pôs os políticos de joelhos e por um átimo fez tremer as instituições, tem chance de prolongar-se no presente sem ser cooptado por golpismos vários, sobretudo num momento em que em vários planos, econômico, parlamentar, moral, para ficar em itens midiáticos recentes, assiste-se a uma reação conservadora brutal, que literalmente joga no lixo a voz das ruas, em nome da qual, aliás, alguns dos mesmos políticos conservadores conseguiram eleger-se? Não pretendemos oferecer qualquer resposta a tal pergunta – ela só pode vir das ruas. Mas não deveríamos esquivar-nos de uma constatação a cada dia mais tocante, sobretudo em nossa cidade, e isso vai do Parque Augusta aos 300 blocos de carnaval de rua em São Paulo, das dezenas de manifestações do MPL [Movimento Passe Livre] por todos os cantos da cidade, centro e periferia, até a miríade de iniciativas individuais e coletivas que não atingem o limiar de visibilidade midiática, pois são como vaga-lumes frente aos holofotes espetaculosos. A constatação simples é apenas esta: há um desejo de rua crescente e incontido em nossa cidade, e para além dela! Sim, as “pessoas” – e sei o quanto essa palavra pode irritar nossos cientistas sociais – querem ocupar espaços, ruas, praças, ciclovias, minhocões, sair de seus buracos privados ou telinhas virtuais e ensejar situações de encontro ou fricção dos mais diversos tipos, seja na cólera ou na alegria, em todo caso em situações menos codificadas, mais indeterminadas, abertas àquilo que hoje pede para ser inventado a fim de tornar respirável o dia a dia na cidade e no planeta, numa nova ecologia ambiental mas também subjetiva, como dizia Guattari.

Sabemos que a força dessas experimentações minúsculas diante do poder das construtoras, governantes e juízes parece sempre irrisória, para não dizer risível. E no entanto, é também nesses bolsões efêmeros que se experimentam gestos mínimos, lógicas incertas, estratégias e afetos capazes às vezes de transbordar ou disparar uma mobilização multitudinária e infletir o destino de um bosque ou de um mundo – lembremos que as revoltas em Istambul começaram pela defesa do parque Gezi. Tampouco aqui o critério quantitativo deveria nos intimidar. Quantas vezes não é pequeno o locus do desvio e da bifurcação decisiva? Como diz um personagem de Dostoiévski – e aqui o aplicamos à nossa imaginação política – até o incêndio de Moscou começou por uma vela de um kopek.

[1] Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, Há mundo por vir?, Desterro, Florianópolis, 2014.

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Um comentario para "Como pulsa hoje nosso desejo de rua?"

  1. Isabela Flores disse:

    A Lei nº 15.941/2013, de autoria do vereador Aurélio Nomura, que cria o Parque Augusta, está próxima de ser implementada pelo prefeito João Doria que manterá a área verde em 100% do espaço!

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