Como Foucault e Agamben explicam Bolsonaro

Sem projeto, sociedade pode escorregar para espiral de medo e ódio. Certos grupos são vistos como “inimigos”. Neste ambiente morboso, rasteja o deputado

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Michel Foucault em conferência no College de France

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Sem projeto, sociedade pode escorregar para espiral de medo, ódio e exceção permanente. Certos grupos são vistos como “inimigos” — portanto, privados de qualquer direito. É neste ambiente morboso que rasteja o deputado

Por Eduardo Migowski

Jair Bolsonaro tem sido acusado de fascismo. Não faz muito tempo, o músico Júnior comparou-o a Hitler. “Hoje em dia a gente vê discursos que não são muito diferentes da época no nazismo. Com Hitler. Todo mundo fala, ah meus deus! Mas ninguém percebe que isso acontece, de uma forma diluída, mas acontece. Com a intolerância (…). Dá medo de ver Bolsonaro querendo ser presidente”. (Júnior Lima)

As acusações fazem sentido. Apesar de não ser correto conceitualmente chamá-lo de nazista ou fascista, o ídolo da extrema direita reproduz uma racionalidade política semelhante àquela que levou Hitler e Mussolini ao poder. Mas é preciso ter cuidado. Fascismo é um conceito das ciências políticas, não um xingamento. Chamar uma pessoa de fascista ou nazista não quer dizer muita coisa. A não ser que possamos explicar a que estamos realmente nos referindo.

A teoria política, de modo geral, justifica o nascimento do Estado moderno como forma de proteção da vida. Os indivíduos abriram mão de parte da sua liberdade em troca de segurança. O que sustentaria, portanto, o poder estatal seria o “contrato social” entre sujeitos. Se o Estado nasce para proteger os homens, o direito à vida seria o mais elementar, não podendo ser suprimido.

Na prática não foi bem assim. Outras teorias legitimavam o que alguns filósofos conceituam como poder soberano, ou seja, o poder sobre a vida e sobre a morte. Argumentava-se que o poder régio tinha origem divina e não contratual. Assim sendo, a função do monarca seria a justiça. Ora, se o rei é escolhido por Deus, ele é sábio. Se ele é sábio, é justo. Se ele é justo, natural que exerça a justiça. Podendo decidir pela vida ou pela morte dos súditos. Nessa lógica política, a vida é uma concessão do poder soberano. Ou, nas palavras do filósofo Michel Foucault, o poder de soberania seria caracterizado pelo imperativo “deixar viver ou fazer morrer”.

Grosso modo, no século XIX tal racionalidade muda. As revoluções liberais resgataram a ideia de direitos naturais, dentre eles à vida. Nessa época, segundo o mesmo Foucault, emerge uma técnica de controle conceituada como “biopolítica”. A biopolítica seria caracterizada pelo imperativo de “fazer viver”. Ou seja, seriam técnicas de controle da população que teriam por objetivo maximizar a existência. “A soberania fazia morrer e deixava viver. E eis que agora aparece um poder que eu chamaria de regulamentação e que consiste, ao contrário, em fazer viver e em deixar morrer”. Enfim, a soberania inverte a lógica anterior.

Aqueles que ainda não abandonaram esse texto chato devem estar se perguntando o que toda essa digressão louca tem a ver com fascismo. Explico: há um interessante paradoxo nas sociedades contemporâneas que precisa ser entendido para que possamos unir esses pontos. A ambiguidade está justamente no fato de que as sociedades regidas pelo imperativo de “fazer viver” foram as que mais mataram.

Para Foucault a explicação dessa aparente contradição está no aparecimento do racismo de Estado. O racismo, nessa lógica, seria um corte social. De um lado, estariam indivíduos “normais”, superiores; de outro, aqueles que mantidos à margem, segmentados por alguma diferença: raciais, biológicas, étnicas etc. O racismo estatal, portanto, amparado pelo aparato científico, colocou a biologia no primeiro plano das discussões. O que estava em questão não era o ódio entre pessoas diferentes, mas algo muito mais perverso. A lógica segundo a qual indivíduos inferiores poderiam “infectar”, “contaminar” o tecido social e, assim, provocar a decadência de toda a espécie humana. A conclusão é simples: para a proteção de todos, de toda a sociedade, grupos inteiros deveriam morrer e desaparecer. O nazismo foi o paroxismo desse processo.

Já sei, vc está pensando: e o Bolsonaro com isso? Vou explicar agora. Mas antes é preciso esclarecer mais um ponto. Se o poder soberano é aquele que decide quem deve morrer e quem deve viver, quem exerce tal poder nas sociedades atuais? Foucault esclarece que no racismo de Estado o poder soberano é difuso. Ora, não é mais o monarca que protege a si mesmo, mas indivíduos que defendem a coletividade. Um judeu na Alemanha nazista poderia ser morto por qualquer militar. Como estudos recentes têm demonstrado, as maiores atrocidades do Holocausto foram cometidas em locais em que não havia mais instituições, no Leste Europeu. Quem decidia se um judeu seria morto ou não eram os militares das SS e, naquele momento, estes homens exerciam o poder soberano.

Partindo dessa reflexão, outro importante pensador, Giorgio Agamben, propôs o conceito de Estado de exceção permanente. O Estado de exceção é um mecanismo jurídico de defesa da democracia. Caso haja uma ameaça externa, os direitos e garantias individuais seriam suspensas para que esse mal fosse combatido. Uma vez o perigo neutralizado, a democracia seria reestabelecida. Ou seja, como o próprio nome sugere, seria uma anomalia, uma exceção à regra democrática.

Agamben percebeu que, caso esse perigo seja difuso, difícil de identificar, o expediente jurídico da exceção pode se tornar permanente. O exemplo principal é o próprio nazismo. A Constituição de Weimar não foi revogada pelo Terceiro Reich; porém, com a justificativa de proteção do povo alemão, instalou-se um Estado de exceção. Proteção contra quem? O risco eram os comunistas. Mas quem eram os comunistas? Impossível responder de forma cabal. Poderia ser qualquer um. Desse modo, o inimigo nunca seria neutralizado e a exceção transformou-se em regra.

Outro caso, estudado por Agamben, foi a Era Bush. Para combater o terrorismo, diversas garantias individuais foram sendo relativizadas. Mas, assim como o comunismo, o terrorismo é um perigo oculto, difuso. Assim, as medidas de exceção logo se tornaram regra. A prisão de Guantánamo talvez seja emblemática. As pessoas para lá enviadas não possuem nenhum classificação precisa, portanto, não possuem direitos. Não são americanos. Não são prisioneiros de guerra. Também não são estrangeiros. Tal anomalia formou um vazio jurídico em que tudo é possível. São comuns, por exemplo, relatos sobre presos que sequer foram julgados e são submetidos a torturas sistemáticas.

É possível, portanto, nas sociedades atuais, que sejam formados espaços de exceção dentro de um mesmo Estado. Ou seja, locais em que à lei é respeitada e outros em que há um vazio jurídico. A vida nua, nas palavras de Agamben. Tal fenômeno legitima-se sempre por meio de uma retórica belicista e de autodefesa da sociedade. Ou seja, tanto Foucault quanto Agamben estão percebendo algo muito parecido.

Agora sim. Como essa dinâmica funcionaria na sociedade brasileira? Para responder essa pergunta é preciso perceber que o direito brasileiro não se aplica em todos os espaços. Notadamente, nas periferias. Mortes, torturas, invasão de propriedades etc. A vida de milhares de pessoas permanece num vazio jurídico. Tais indivíduos podem, muitas vezes, ser mortos, caso classificados como “traficantes”. Afinal, justificam os agentes públicos, estaríamos vivendo uma guerra e não se combate um inimigo usando as regras tradicionais. O problema é que tal guerra é permanente. E, com ela, a exceção torna-se regra.

No Brasil, os elevados índices de criminalidade geram insegurança. Como dito no início do texto, há uma fricção constante entre segurança e liberdade. Os indivíduos abrem mão de parte da sua liberdade, em nome da segurança. Quanto maior a insegurança, maior será o controle.

Mas, nesse caso, a ação do poder central age de forma localizada, pois o perigo é identificado e localizado em espaços específicos. O medo e a insegurança, portanto, legitimam a exceção.

Em recente pesquisa, o Instituto Datafolha trouxe dados alarmantes. Para 69% dos brasileiros “o que este país necessita, principalmente, antes de leis ou planos políticos, é de alguns líderes valentes, incansáveis e dedicados, em quem o povo possa depositar a sua fé”. 85% disseram não se importar com a lei. 60% dos que opinaram disseram concordaram com a frase “a maioria de nossos problemas sociais estaria resolvida se pudéssemos nos livrar das pessoas imorais, dos marginais e dos pervertidos”. Essas afirmações foram tiradas da pesquisa clássica do filósofo Theodor Adorno, pensada para caracterizar o que ele chamou de personalidade autoritária, típica dos regimes fascistas.

E é justamente nesse aspecto que entra Jair Bolsonaro. O deputado estimula essa racionalidade destrutiva para lucrar politicamente. A retórica alarmista e inflamada da extrema-direita transforma o medo em ódio. E o ódio clama pela vingança, pela exceção. É a antítese da democracia.

Tal processo abre espaço para todo tipo de discurso radical, que se materializa em ações violentas contra as minorias. Forma-se um ciclo vicioso, que leva todos à ruína. A desordem gera medo. O medo reverte-se em ódio. O ódio, em exceção. E essa, por sua vez, em caos. Enfim, é uma engrenagem que retroalimenta a desordem social. Essa foi a dinâmica do nazismo, que arruinou a Europa. E é justamente nesse espiral do apocalipse que estamos entrando.

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18 comentários para "Como Foucault e Agamben explicam Bolsonaro"

  1. Carlos disse:

    “As revoluções liberais resgataram a ideia de direitos naturais”

    Direitos naturais para os antigos tinha relação com casuística e não positivismo.
    E nem por isto a lei é menos correta, pois a falha não é da lei nem do legislador, e sim da natureza do caso particular, pois a natureza da conduta é essencialmente irregular. Quando a lei estabelece uma regra geral, e aparece me sua aplicação um caso não previsto por esta regra, então é correto, onde o legislador é omisso e falhou por excesso de simplificação, suprir a omissão, dizendo o que o próprio legislador diria se estivesse presente, e o que teria incluído em sua lei se houvesse previsto o caso em questão.

  2. Carlos disse:

    “Vamos aí resumir o que você escreveu nesse texto desnecessariamente prolixo: A modernidade criou uma ideia de normalidade em relação a determinadas categorias de seres humanos. Esses seriam considerados humanos verdadeiros. O que se afasta dessa régua de normalidade o Estado permite que seja eliminado. Ele mesmo não precisa matar, mas deixa que morra. É algo mais passivo do que ativo, como era na época do capitalismo comercial.
    Pois bem, isso não explica o espírito da classe média, que é o que anima a ascensão do Bolsonaro.
    É apenas o começo dessa explicação.
    Quem diz que a classe média usa moralismo como cortina de fumaça para esconder suas verdadeiras intenções conseguiu tocar melhor na cerne do problema do que esse texto. Porque o Bolsonaro é isso: o moralismo hipócrita de classe média encarnado.”

    Obrigado, cara.

    Como esses metidos a intelectuais são chatos.

    Gostam de deixar algo simples complicado só para dizer que são inteligentes e que estão acima dos “vermes”

  3. marcelo gabriel delfino disse:

    Que delícia um texto desses! Começa citando o grande pensador Júnior Lima, que tem estudos no campo da filosofia política e é lido principalmente em Oxford, Cambridge e outras instituições importantes. Só por isso, já podemos saber o nível de absurdos que vem por aí. Logo em seguida, maravilha, o autor afirma que Jair Bolsonaro repete uma racionalidade semelhante à de Hitler e Mussolini. Qual seria essa “racionalidade”? O culto do Estado, como fez Stálin, Mao Dzé-Dung? Ou como tenta fazer o senhor Maduro e certamente fará, se eleito, Luis Inácio? Poderia ser a sobreposição do coletivo em detrimento do indivíduo, como fizeram todos esses senhores já citados? Já sei: Bolsonaro defende uma elite, que vai governar e viver no luxo, com dinheiro público sendo usado como se fosse mato e não acabasse nunca, exatamente como, veja só: todos esses senhores já fizeram. Logo depois somos brindados com uma pequena digressão sobre o pensamento de Foucault. O que o autor pretende é mostrar como, munido de um conceito de normalidade, o Estado realiza aquilo que ele denomina racismo de Estado. Será que era isso quando, na antiga URSS, os dissidentes políticos, ou aqueles que simplesmente cometiam qualquer infração ao regime, mesmo que involuntariamente, ou eram denunciados por vizinhos ou alguém a serviço do partido, eram encarcerados, mandados aos gulags, sumiam? E é sempre bom lembrar que as teorias de eugenia sempre foram amplamente apoiadas historicamente pela esquerda, como se deveria saber, embora o autor desconheça esse fato. Mas não é preciso ir longe, hoje todas as crianças com síndrome de Down são abortadas (uma conquista da esquerda, né?!) na Islândia. E a ONU, veja só, defende que essa prática se torna comum no mundo todo. Caramba, está cada vez mais difícil chamar o Bolsonaro de fascista, mas o texto continua. O trecho sobre Agamben cai no mesmo relativismo que destaquei sobre Foucault. O autor destaca a era Bush e o nazismo, mas não dá uma palavra sobre os regimes comunistas, que sempre usaram a ameaça de infiltrados contra a revolução. O pior, no entanto, é que o texto parece que vai mostrar um paralelo irrefutável entre a “extrema-direita” e o fascismo, mas conclui rapidamente em 3 mirrados parágrafos que Bolsonaro é a aplicação desse desejo de matar o diferente que corrói todo mundo que é de direita. Isso, dizem, é um professor universitário. Usando conceitos de modo frágil, traçando paralelos sem convicção alguma do que está fazendo, desviando o olhar para a matança de homossexuais em Cuba; para o massacre chamado de Revolução Cultural na China, para os Gulags. Ainda não li Agamben, mas se o autor é tão fraco como esse texto dá a entender, Foucault conseguiu um discípulo à altura.

  4. Soares disse:

    Racismo de Estado é utilizado por Foucault também pra analisar as práticas políticas do socialismo stalinista….

  5. Thiago Lion disse:

    Fora que aqui não é a França, aqui não é a Itália pós-guerra.
    Aqui é o Brasil.
    Vamos aí resumir o que você escreveu nesse texto desnecessariamente prolixo: A modernidade criou uma ideia de normalidade em relação a determinadas categorias de seres humanos. Esses seriam considerados humanos verdadeiros. O que se afasta dessa régua de normalidade o Estado permite que seja eliminado. Ele mesmo não precisa matar, mas deixa que morra. É algo mais passivo do que ativo, como era na época do capitalismo comercial.
    Pois bem, isso não explica o espírito da classe média, que é o que anima a ascensão do Bolsonaro.
    É apenas o começo dessa explicação.
    Quem diz que a classe média usa moralismo como cortina de fumaça para esconder suas verdadeiras intenções conseguiu tocar melhor na cerne do problema do que esse texto. Porque o Bolsonaro é isso: o moralismo hipócrita de classe média encarnado.

  6. Thiago Lion disse:

    “As revoluções liberais resgataram a ideia de direitos naturais”
    A ideia de direitos naturais moderna nada tem a ver com o que defendiam os antigos.
    Resgatou nada.
    Só usou o mesmo termo para designar coisas com lógicas completamente diferentes.

  7. Thiago Lion disse:

    Porque o poder, o poder, o poder.
    Coisa abstrata.
    Em todos os seus textos você reduz as questões da sociedade moderna a vontade política de atores.
    Lembro que li um sobre totalitarismo, e lá vai você concordar com coisas como Hannah Arendt e outras figuras que reduzem totalitarismo a dominação política. Ou seja totalitarismo é política e política é jogo de poderes de agentes volitivos individuais. Você não percebe, mas é bastante liberal. Não percebe, mas parece que o que conta é a vontade individual de quem está nesse jogo de interesses.
    Não estou dizendo que teus textos sejam ruins, mas dá para melhorar se tu entender o que estrutura a sociedade capitalista.

  8. MEtanol disse:

    E como esses grandes explicam Fidel Castro e Cheguevara? que fez de uma nação soberana igual a CUBA escrava dos próprios ideais?

  9. Antonio Martins disse:

    Muito obrigado, Daniel. Corrigimos! Abração.

  10. Borges de Garuva disse:

    Referências introdutórias, é verdade (não se trata de um artigo científico), mas sérias. Lido e guardado.

  11. Borges de Garuva disse:

    Putz!

  12. daniel disse:

    Achei o texto bem esclarecedor porém achei um pequeno detalhe no final que poderia ser revisto. Na segunda frase do último parágrafo você trocou “ciclo” por “clico”. abraço

  13. Prolixo e utilizando as técnicas de Saul Alinsk para dizer que Bolsonaro e uma espécie de bicho papão e que foi assim que aconteceu com Hitler…
    Lamentável.
    Lembrando que nenhum direito fundamental pode servir de escudo para ferir outro direito fundamental. (Norberto Bobbio).

  14. Eduardo Migowski disse:

    fico feliz em saber

  15. Eduardo Migowski disse:

    Denise, eu gosto de usar duas definições distintas de fascismo. A primeira, mais famosa, está relacionada aos movimentos políticos que emergiram no pós-guerra. Se o termo “fascismo” for referente a este contexto, como nesse texto, Bolsonaro não seria exatamente um fascista, a despeito das inegáveis semelhanças. Mas há outra definição possível, que prioriza o comportamento. Seria o que Foucault chamou de fascismo ético. Nessa segunda linha, ele poderia ser perfeitamente caracterizado como fascista.

  16. Professor, gostei muito do seu texto (nada chato, ao contrário). Permaneci, porém, com uma dúvida: no início, o senhor coloca que nazismo e fascismo são conceitos da Ciência Política e, imagino eu, como tal, devem ser utilizados em contextos específicos. Mas eu gostaria de saber por que não se pode classificar tecnicamente o Bolsonaro como fascista (compreendo que não como nazista). Obrigada pelo lúcido texto!

  17. De chato esse texto não tem nada. Salvo para futuras referências.

  18. ana reis disse:

    e a exacerbação da misoginia e da heteronormatividade como vc explica?

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