Cartas da Guanabara: Delírio de janeiro

“Outro dia, vi fotos antigas da cidade e estava todo mundo de gravata e paletó. Como aquele, ali na frente. E o outro ali ao lado, que até chapéu está usando. São loucos, como devo ser”

160314_Avenida Central_RJ_foto Marc Ferrez

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Por Daniel Cariello | Imagem: Marc Ferrez

Caraca, hoje o sol está de lascar. E o pior é que tem essa reunião importante aqui no centro e me disseram pra vir de terno. De terno, fala muito sério! Só uso em formatura e casamento. Acontece que já faz uma era que nenhum amigo meu se forma ou se casa. E agora muitos deles têm preferido é se descasar, o que pode justificar uma grande festa, mas jamais um terno.

Como alguém pode vestir um treco desses no calor do Rio de Janeiro? É cruel. O astro rei fritando impiedosamente as ideias causa alucinações. Não entendo como os cariocas podiam se vestir assim em outros tempos. Outro dia vi umas fotos da cidade no início do século passado e lá estava todo mundo de gravata e paletó. Aliás, como aquele carinha ali na frente. E o outro ali ao lado, que até chapéu está usando. São loucos, como eu devo ser.

A Rio Branco está diferente ou é impressão minha? Deve ser impressão, esse sol irrogando miragens. Preciso respirar um pouco. Vou me abrigar debaixo daquela árvore o tempo de secar o suor.

– Ei, olha pra frente! Se causa um acidente quem vai preso sou eu!

– Perdão, perdão.

O condutor do bonde tinha razão, afinal era eu quem cruzava desatento a Avenida Central. Mas, pudera, agora as ruas estão sempre cheias. Não bastassem os bondes, as charretes e os cavalos, agora também há os automóveis a infestá-las. Leva tempo para se avezar aos novos costumes…

Novos como esse deslumbrante Palácio Monroe. Que exemplo de architectura! A nossa cidade está se embelezando a olhos vistos. Será mesmo a Paris dos trópicos. Uma constucção commo esta há de durar para sempre. Os hommens que virão saberão admirar e cuidar do nosso património, pensando apenas no bem-commum.

Ocorre-me agora observar também os demais transeuntes da praça. Ao longe, destaca-se um senhor encatarrhoado, coberto por um capote, pigarreando alto e deitando seus escarros na rua. Embuçado assim, com um calor dêsses, só pode mesmo estar doente, o pobre. E aquellas mulheres de ordem, com seus hábitos a se lhe cobrirem inteiras, se ainda não o estiverem, estarão muito em breve.

Um sorteiro sob a árvore ao lado tenta adivinhar o futuro das damas que lho pagam muitos reis. A sorte dellas eu não saberia vos informar, mas garanto-lhes que suas economias terminarão no bolso delle.

Enquanto isso, próximo ao Theatro, um ajuntamento observa um protervo sênhor desfilar seus desafôros a um outro. O motivo, parece, é que êste passou a mão próximo das ventas daquêle, que revidou atirando-lhe o chapéo. Nenhum passante parece desejoso de estremar a situação. Todos preferem assistir ao espectáculo, enquanto um sorveteiro comercializa suas gulozeimas.

Fatigado e com calôr, decido voltar a casa. Subo no primeiro bond que passa e procuro moedinhas no meu bôlso, mas não as encontro. Continuo as procurando, com certa vagareza, até sentir uma cutucada nas costas.

– Aê, doido. Dá pra dar uma licencinha? Vou descer na próxima e ainda tenho que pagar.

– Claro. É que estou meio perturbado com essa quentura toda.

– A parada tá mesmo sinistra hoje. Também tô derretendo, maluco.

Sento no banco da frente do ônibus, tiro o paletó, afrouxo a gravata e abro a janela. Estou precisando tomar um ar. Ao virar a esquina, vejo o Palácio Monroe. Esfrego os olhos e ele já não mais está.

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