Boulos: a esquerda brasileira saberá se renovar

Crise atual fecha um ciclo. PT promoveu avanços, mas não enfrentou establishment — e foi tragado por ele. Renovação começou; cedo ou tarde, produzirá novo projeto político

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Por Guilherme Boulos | Imagem: Aaron Douglas

Embalados pela vitória nas eleições municipais, expoentes do conservadorismo – no Planalto e na planície– passaram a celebrar o declínio da esquerda brasileira. O povo, enfim, teria compreendido o fracasso dos projetos da esquerda, que estaria então aproximando-se de um desfecho melancólico.

Os que celebram hoje são os mesmos que, vinte anos atrás, brindavam o fim da história como uma verdade inexorável. A história, teimosa que é, insistiu em contrariá-los e produziu um ciclo de governos progressistas na América Latina. São os mesmos também que, com sua crença fervorosa numa certa “mão invisível”, prometeram paraísos no mercado de futuros e o que conseguiram entregar foi a crise de 2008. É preciso ter cuidado com os vaticínios dessa gente.

De fato, a esquerda brasileira enfrenta uma crise. Crise que marca o fechamento de um ciclo. O Partido dos Trabalhadores, impulsionado em seu surgimento por grandes lutas populares, construiu uma hegemonia na esquerda nos últimos 35 anos. Seu período à frente do governo federal foi marcado por avanços sociais, mas também por descaminhos estratégicos.

Os avanços foram inegáveis: valorização progressiva do salário mínimo, expansão do crédito popular, inclusão dos mais pobres na universidade, programas sociais, redução das desigualdades regionais. Avanços que deram ao PT três reeleições sucessivas, só sendo apeado do poder por um golpe parlamentar.

Mas o preço pago pelo “consenso petista” foi abrir mão do enfrentamento aos privilégios históricos da Casa Grande. Achou que poderia aprofundar um projeto de avanços de mãos dadas com os donos do Brasil. Abriu mão de pautar reformas estruturais, como a tributária, agrária ou urbana. Acreditou que teria sempre a sustentação dos partidos conservadores no Congresso, usando dos velhos métodos, e –ao deixar de mobilizar a sociedade por uma transformação do sistema político– acabou tragado por ele.

Na primeira grande oportunidade que tiveram, a Casa Grande e seus partidos acabaram com a brincadeira. Deixaram claro que, no Brasil, não há espaço para um programa de avanços sociais sem reformas estruturais e sem enfrentamento. O PT, diga-se, não morreu, mas envelheceu nesse processo. Seu futuro dependerá de ter ou não a capacidade de aprender essa dura lição.

Mas é preciso lembrar que a esquerda brasileira não se reduz ao PT. Nem aos partidos, sem deixar de destacar o importante papel que o PSOL tem cumprido com sua aguerrida bancada e com candidaturas contra-hegemônicas. A esquerda representa, em tempos de desilusão, a esperança de milhões de pessoas por igualdade social e por participação política radicalmente democrática. Isso não é patrimônio de um partido político. Está nos movimentos sociais e nas lutas de resistência.

A esquerda saberá se renovar. Já o está fazendo, com os estudantes ocupando escolas, com os sem-teto, as iniciativas de mídia livre nas redes, a luta das mulheres, a luta pela diversidade sexual, o movimento negro. Cedo ou tarde, esse caldo dinâmico de mobilização social irá se traduzir num projeto político. Política autêntica, que nasce e se faz nas ruas.

O maior desafio é retomar esta relação viva com as ruas e, em especial, com o povo das periferias. Acolher suas demandas, estar junto em suas lutas e não trair suas esperanças. Os que preferem dedicar-se a resmungos amargos nas redes sociais contra a “ingratidão” ou a “alienação” do povo mostram apenas não estarem à altura da tarefa. O reconhecimento das dificuldades atuais precisa vir junto com o aprendizado das lições sobre o processo que nos trouxe até aqui.

Certa vez, Jean Paul Sartre, questionado sobre o “fim do marxismo”, disse que o marxismo só poderia ser superado quando fossem superadas as condições que o engendraram, ou seja, a divisão de classes sociais no capitalismo. O mesmo vale para a situação atual da esquerda no Brasil e na América Latina: enquanto nossa sociedade permanecer profundamente desigual, crivada por privilégios e privações, haverá lutas de resistência, haverá esquerda.

Ainda mais por aqui, ante um governo que – sem a legitimidade do voto popular – começa a impor um programa devastador de retrocessos sociais e trabalhistas. A perplexidade da maioria tem prazo de validade, mesmo quando apoiada num poderoso discurso midiático. A história, novamente, não acabou.

Os que comemoram hoje, com sua felicidade estampada na “Caviar Life Style”, saibam que a velha toupeira continua a cavar.

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16 comentários para "Boulos: a esquerda brasileira saberá se renovar"

  1. A vitória de Trump animou muita gente a sair do armário, não é? Até mesmo invadiram a Câmara no dia de hoje… Parece que estão mesmo decididos ao golpe total. Que nossa esquerda é uma droga eu não tenho nenhuma dúvida. Isso, porém, não significa imaginar que nossa direita seja uma maravilha. Gente que adora a livre iniciativa, desde que financiada com o dinheiro público. Gostando ou não, por sorte ou competência, fato é que o Brasil nunca esteve tão destacado no cenário internacional. Deixarei para minha neta um país melhor do que recebi de meu avô, e me esforcei para que ela possa (ao menos até agora) viver em liberdade, sem obrigar-se a assistir de cabo ou sargento aulas de Educação Moral e Cívica. É lucro em relação ao meu passado.

  2. Prezado Rogério
    Enquanto isso, o Brasil segue subdesenvolvido. Não passa de mero stakeholder do planejamento estratégico dos países desenvolvidos e das empresas multinacionais. Nunca será protagonista na cena internacional. Continuaremos a ser o eterno País do Carnaval. Paraíso de malandros. Perdemos muito tempo com essa esquerda de “araque”, incompetente e caquética. Que país deixaremos para os nossos netos?

  3. Bem, Sr. Roldão.
    O senhor está aqui apenas para professar cinismo em relação a esse período da história brasileira. Está aqui apenas para destilar ódio em relação a pessoas que fazem parte de seu pacote de desafetos – por motivos seus -, e isso não me interessa. Não sei a quem convencerá que governos militares foram de esquerda. Por que não praticaram liberalismo econômico? Não. Foram estatizantes, mas dai chama-los de esquerda vai distância. Boa sorte com suas teses. Quem sabe alguém aqui se interesse por eles.

  4. Prezado Rogério
    Discordo de você e vou mais longe. Indiscutivelmente, os governos brasileiros dos meados dos anos 60 até meados dos anos 80 do século passado foram governos de esquerda fascista. O horror ao liberalismo econômico e o fascínio pela repressão e pela censura foram os elementos da práxis da esquerda fascista adotados pelos governos brasileiros nesse período. Quanto aos “artistas” partindo para o exílio: Quem não gostaria de “curtir” um exilio “bois du vin” nas margens do Sena ou no Quartier Latin? Até eu, que sou mais “bobinho”, queria ser exilado assim! Os exilados que fugiram do Brasil, aproveitando a “deixa” BRASIL: AME OU DEIXE, deveriam ter permanecido no país, lutando até a morte pelos ideais democráticos. Preferiram o “Caviar Life Style” da esquerda festiva a “morrer pelo Brasil“. Essa esquerda de “araque” brasileira nunca me enganou.

  5. Caro Sr. Roldão.
    Talvez apenas nós sejamos dos velhos tempos de 68. Embora não militante, lembro-me claramente de práticas fascistas, e não vinham de gente de esquerda: Vinham do governo, talvez pelo senhor considerado “Glorioso”. Comando de Caça aos Comunistas, Operação Bandeirantes, Tradição Família e Propriedade, Departamento de Ordem Política e Social. Lembro-me de Don e Ravel, os “artistas” chapa branca. Lembro-me de receitas culinárias nos jornais para preencher lacunas de matérias que foram censuradas, lembro-me de artistas partindo para o exílio, de gente desaparecida, torturada. Não tenho saudade disso, não.

  6. Prezado Artur
    O articulista vem com essa cantilena “furada” do revisionismo da “esquerda brasileira” – a esquerda do Deus-me-livre – a esquerda do Caviar Life Style. Não se deixe enganar. Você é uma pessoa inteligente. Não haverá revisionismo nenhum porque é próprio da esquerda lato senso, como é a brasileira, ser arrogante e inconformada pela perda do poder sem violência ou, como queira, pelo “golpe parlamentar” (Eita golpezinho bem dado!!! Golpe sem botões dourados!!! Bem feito!!!). A esquerda lato senso nunca foi revisionista. A esquerda lato senso é teimosa. Não se dá por vencida. O que nós brasileiros veremos agora é o reflorescimento da esquerda fascista. A esquerda que estimula a ocupação de escolas e de prédios públicos, a baderna nas ruas, a confrontação com as instituições de segurança pública, a perseguição ostensiva aos “inimigos reacionários”, o patrulhamento ideológico no meio artístico e a instigação dos chamados “movimentos sociais” contra o governo X9 que aí está. Não se espante se surgirem mais “movimentos sociais” com viés fascista para importunar os cidadãos de bem como você. Para chegar ao poder, a esquerda fascista atacará a base da pirâmide social. Mobilizará o “Zé Povinho” pelo medo da insegurança. Nem precisará da “mídia golpista” para essa mobilização. Aplicará a velha e famosa “pressão de base” dos bons tempos de 1968. Lembra-se? Se houver “revisão”, será nesse sentido. Adotar práticas fascistas! Será mais um “pé-no-saco” que a esquerda Caviar Life Style dará nos brasileiros de boa-fé como você. Salve-se quem puder!

  7. Arthur disse:

    Sem dúvida, como bem diz o texto de Guilherme Boulos, os governos petistas cometeram muitos erros e equívocos. Não mexeram nas questões estruturais como a da cobrança de impostos sobre grandes fortunas, democratização da mídia, reforma agrária etc. Porém, como parece ser a opinião de alguns, entender que agora as coisas serão melhores com o (des) governo Temer e sua” ponte para o abismo ” é simplesmente lamentável.

  8. C.Poivre disse:

    A corrupção está no DNA tucano:
    http://www.vermelho.org.br/noticia/276211-1

  9. Rogério Centofanti disse:

    Leio no texto mais do mesmo, e sempre permeado pela esperança de dias melhores para as esquerdas. Nada muda, pois não se aprende nada com desvios. Aliás, nem mesmo se reconhece desvios. O melhor que li até hoje, vem de Frei Beto: “Em 13 anos de presidência, o PT não promoveu nenhuma reforma estrutural. Investiu-se mais em facilitar à população acesso aos bens sociais (celular, computador, carro, linha branca) quando deveria priorizar o acesso aos bens sociais (educação, saúde, moradia, segurança, saneamento, etc.)”. O PT fez mais: afirmou aos neo-trabalhadores que haviam sido promovidos à “classe média”. Convencidos desse equívoco, eles passaram a apostar nos partidos que agora acenam com maiores “conquistas” – serão “empreendedores”, e de “sucesso”.

  10. Priscila presooto disse:

    Outra coisa,comentários aqui prá lá de seletivos ,moralistas imorais,afffff

  11. Priscila presooto disse:

    Quero ver essa esquerda “purista”no poder.Tanto o psol e o pstu sāo hipócritas
    ,sempre ajudaram a direita batendo direto no PT.Cansei do Goulos e e outros mais.

  12. “Os que comemoram hoje, com sua felicidade estampada na “Caviar Life Style”, saibam que a velha toupeira continua a cavar.”
    Lapidar esse arremate do articulista. É exatamente esse o comportamento da “esquerda brasileira”. Tenho defendido a tese de que a esquerda brasileira não passa de mero arremedo ideológico. Simples posicionamento de “representantes do povo” em relação ao centro da mesa diretora das assembleias. Quem fica à esquerda da mesa diretora é de esquerda. Quem fica à direita da mesa diretora é de direita. Não passa disso. Desde os temos imemoriais, a esquerda brasileira comporta-se no “Caviar Life Style”. E ela é boa no que faz. Apresenta um discurso de resistência às condições de desigualdade social, mas quando ocupa o poder, mergulha com volúpia nas benesses. “Cai de boca” no “Caviar Life Style”. De fato, nos últimos 13 anos é inegável que houve melhoria aparente do bem estar dos brasileiros. É inegável, também, que o desemprego gritante que, atualmente, grassa nas camadas mais humildes da população brasileira é fruto da gestão patética dos governos de esquerda dos últimos 13 anos. Tenho defendido, também, a tese de que para distribuir riqueza, reduzindo a miséria, tem que produzir riqueza. Não adianta repartir o que não se tem. O que a “esquerda brasileira” fez nos últimos 13 anos foi repartir o que não se tinha. O fez dentro de um projeto Macunaíma de perpetuação no poder para alimentar o “Caviar Life Style” dos seus “figurões”. Depois que o “caldo derramou” vem com o discurso revisionista. Velha cantilena própria dos esquerdopatas para tentar justificar a enrascada em que se meteram. Não acredito nesse discurso revisionista. É conversa para boi dormir. Deixem a coitada da toupeira em paz.

  13. Atila de Oliveira disse:

    O marketing dos governos petistas de Lula e de Dilma foi o de proteger os pobres e contrariar os interesses dos ricos (os “nós” contra “eles”). Consideravam-se monopolistas da virtude ungidos da missão de redimir os fracos e oprimidos.
    A herança de Lula e Dilma não é o Bolsa Família nem a inclusão social. Estes não duraram mais que poucos anos. Foram destruídos pela incompetência, bandalheira, corrupção e nepotismo que são a marca registrada da turma que se apossou do poder e fêz tudo para não sair de lá.

  14. Atila de Oliveira disse:

    O lulopetismo estabeleceu a corrupção como modo de governar. A política petista, nos 13 anos de Lula e Dilma, pertence hoje à crônica policial. Uma política desprovida de qualquer pudor e sem nenhum valor moral tomou conta da cena pública, como se tudo fosse válido para a conservação do poder.
    Em nome de “valores superiores” da esquerda e do socialismo, limites éticos foram simplesmente desconsiderados. Houve um assalto ao Estado patrocinado pelo governo petista e o aparelhamento inescrupuloso da máquina do Estado pelo PT.

  15. Edgar Rocha disse:

    Espero que o senhor Boulos, bem como outras lideranças de grande envergadura, como João Pedro Stédile, saibam que, muito mais do que a esquerda, a direita golpista tem plena consciência de que o foco de resistência futuro estará de novo no meio dos movimentos sociais e do trabalho de base.
    Dito isto, é bom estar atento aos preparativos atuais para a criminalização dos grandes movimentos, em especial do MST e do MTST. A Rede Bandeirantes de Televisão já exibiu uma sequência de reportagens referentes às invasões de áreas públicas na periferia de São Paulo. João Dória deixou claro que em sua gestão, combateria com todas as forças as ocupações.
    Tenhamos certeza de uma coisa: a inoperância – ou covardia política – da administração Haddad e da própria esquerda como um todo na questão do avanço do crime e suas estratégias contribuiu e muito para se criar um caldo de cultura extremamente perigoso para a sociedade organizada, em especial aos fortes movimentos de habitação e de reforma agrária. Terrenos públicos e privados por toda a cidade foram ocupados sem a menor cerimônia por agentes do crime organizado – em especial do PCC – para a implantação de favelas que nada mais são do que feudos planejados para abrigar ao tráfico de drogas e acolher criminosos advindos até de outros Estados. Intensificou-se o conflito entre as milícias do crime organizado – amparadas indiretamente pelas polícias corruptas do Governo Alckmin (às vezes até diretamente!) – colocando em estado de sítio toda a classe trabalhadora avessa às leis do poder paralelo.
    A indignação causada pela tomada de praças, áreas de lazer e áreas verdes, com certeza será conduzida para uma proposital generalização de movimentos sociais voltados para a questão da habitação, uma vez que os grileiros do PCC se auto-intitulam lideranças de movimentos de sem-teto e por moradia.
    Que este quadro será usado contra os movimentos sérios, não tenho dúvida. Infelizmente, a gestão petista deu de ombros para esta situação nas periferias, contribuindo para uma leitura errada dos fatos. Tal equívoco sempre foi cometido (se é que não foi proposital) pelas administrações petistas. O caso é semelhante à TORTURA FÍSICA E PSICOLÓGICA dos carros tunados e do funk de rua em todos os bairros de todas as periferias, definido pelo governo Haddad como “manifestação cultural”. Seja por oportunismo, conivência, omissão ou covardia, foi graças ao não enfrentamento da questão que uma boa parcela dos trabalhadores tenderá a apoiar o estado policial criminoso empurrado goela abaixo aos que sofrem com o terror físico e psicológico. As consequências para as organizações sociais atuais e futuras serão inevitáveis. Vão dizer que invasões do MST e do MTST são da mesma natureza que as do PCC. Vai sobrar pros movimentos.

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