Blaise Cendrars vê, em Paulo Prado, retrato do Brasil

Fazendeiro riquíssimo, mas também pensador e mecenas fundamental no Modernismo, Prado é, para poeta franco-suiço, preceptor do país então pouco conhecido

Paulo Prado em sua casa, em São Paulo

Paulo Prado em sua casa, em São Paulo

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141104_seloOswald3Fazendeiro e empreendedor riquíssimo, mas também pensador e mecenas fundamental no Modernismo, Prado é, para poeta franco-suiço, preceptor do país então pouco conhecido

Por Ellen Spielmann | Tradução Antonio Pedro de Barros

Ellen Spielmann conhece bem o Brasil e os brasileiros. Em suas andanças por São Paulo e Rio de Janeiro, sempre como professora visitante da UFRJ, teve a oportunidade de aprofundar a sua pesquisa sobre o modernismo brasileiro. Assim, aliado a uma erudição notável ela consegue desenvolver um olhar generosamente provocador sobre esse nosso movimento cultural.

Preocupada em dar conta das múltiplas intersecções que aquela experiência nos proporcionou, e ainda nos toca tão de perto, Ellen se mostra ao mesmo tempo sensível a algumas questões pouco visíveis para aqueles que se debruçam sobre o tema.

Por razões óbvias, ela expõe uma percepção distante do familiar. Nesse sentido, preocupa-se, em seu pequeno ensaio, em dar conta de uma expressão tanto cultural, quanto afetiva. E é por aí que nos ajuda a compreender mais profundamente parte da nossa história cultural e, por que não dizer?, da nossa vida política.

Ela realiza uma incursão pela dimensão afetiva entre os dois escritores – Paulo Prado e Blaise Cendrars – a fim de entender melhor esse personagem decisivo do modernismo brasileiro que foi Prado, de quem publicamos, neste site, artigo sobre a poesia Pau Brasil de Oswald de Andrade.

As teias são múltiplas e a partir de seus traçados podemos entender a força do autor de Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. Astutamente, a autora “cola” a persona de Paulo Prado à imagem do Brasil.

Estabelece com isso um sinal decisivo de alguém que percebe a intensidade que os une (homem e nação), apesar de um certo “apagamento da memória”, mais ou menos intencional, de que o intelectual foi vítima.

Nesse momento, vale chamar atenção de que Paulo Prado é figura decisiva, sobretudo se pensarmos em seu papel na construção do projeto modernista no Brasil e nas suas ações concretas para a realização da Semana de Arte Moderna de 1922.

Num contraponto à personagem de Paulo Prado, Ellen nos oferece igualmente um retrato de Blaise Cendrars. Aproxima-se com muita engenhosidade daquela figura do poeta francês, amigo de Oswald, sabendo de antemão o quanto essa mesma figura resulta ainda meio episódica para o senso comum da nossa história literária. E isso se acentua ainda mais quando verificamos que é exatamente esse poeta que irá retratar o homem do retrato do Brasil.

Empreendimento difícil, o texto de Ellen pode ser lido como uma belíssima metáfora de alguém que transita por diversos mundos e sabe dimensionar como poucos as delicadezas dos gestos e das palavras nos cruzamentos das culturas.

Boa leitura! (Theotonio de Paiva, editor da seção especial “Oswald60”)

Em 1948, o poeta franco-suíço Blaise Cendrars publicou suas memórias no livro Bourlinguer. i A palavra encontrada para o título significa algo como “lutar contra as ondas”. Ele introduz, como epígrafe do livro, as considerações de Montaigne sobre uma visão melancólica acerca do passado. Elas conduzem Montaigne para uma “incursão extravagante”, a fim de nomear a si mesmo como o assunto do livro: E então […] eu me apresento a mim mesmo como o tema dessas argumentações”. ii

O livro de memórias é estruturado topograficamente. Ele começa com “Veneza”, seguido de “Nápoles”, “Rotterdam”, “Hamburgo”. “No capítulo final, “Paris, port-de-mer”, Cendrars retrata seu amigo e mecenas Paulo Prado. Os dois se uniram numa amizade duradoura. Amizade é a chave para a minha leitura deste retrato literário. O retrato de Paulo Prado=Brasil é o espelho que pode refletir uma nova visão sobre si mesmo (sobre a Europa).

Após Saint-Beauve e Contre Saint-Beuve

Com Bourlinguer, Cendrars envolveu-se com o gênero do retrato literário. Assim, temos Charles-Augustin Saint-Beuve e, mais ainda, Contre Saint-Beuve, de Marcel Proust, altamente valorizados na França. A premissa dos modernos de escrever totalmente diferente, de chegar aos limites e expandi-los, aplicou-se também a este gênero. Há referências diretas ao modelo e sugestões quanto ao estilo e ao encaminhamento. Cendrars contrariava as descrições de salão de Saint-Beuve, o espírito despreocupado da Causerie, a certeza da indispensabilidade da vida de salão para a Literatura e para a Arte com conversas crítico-filosóficas que ele tinha com seu amigo no Brasil. Evidentemente, essas conversas se passavam nas redes, o lugar ideal para o pensamento, em meio à natureza da fazenda de café.

O método de Saint-Beuve de conduzir a crítica literária autoritariamente e com temperamento totalitário, como num julgamento, que possuiu entrada mesmo no círculo avant-garde, algo praticado por André Breton, era tratado por Cendrars ironicamente, sarcasticamente. Ele emprestava a este tipo de crítico o título papal. Ele escreve:que teria tido a aprovação de seu Papa, este pequeno provincial André Breton. iii

Era característico do gênero inicialmente desviar do presente, ignorar o contemporâneo e se refugiar num glorioso passado – Saint-Beuve recusava-se, por exemplo, a comentar o trabalho de Honoré de Balzac, embora ele o tenha requisitado. iv Sua preferência era pelos grandes franceses do século XVII – por isso, o Contre Saint-Beuve de Proust dá as costas ao passado e põe o presente, o contemporâneo no centro. Proust reprova as teorias de Saint-Beuve, quando ele criava algo como figuras, nas quais diferentes protagonistas se fundiam. No entanto, continua no mesmo campo de questões estéticas de Saint-Beuve (Jean-Yves Tadié 1996:633-635). A virada de Cendrars no gênero literário o conduz, mais uma vez, a uma direção totalmente diferente. Ele mira a sua atenção ao não-literário, ao evento político, focaliza no aqui e agora, a história mais recente, a crise econômica mundial, a guerra e, o que é absolutamente não usual, ele integra o Brasil, uma ex-colônia europeia, e o coloca na dianteira.

Amizade

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Marinette Prado, mulher de Paulo Prado, e Blaise Cendrars no Copacabana Palace, 1926

Cendrars pinta o quadro de uma amizade perfeita. Assim, apresenta Paulo Prado como um “companheiro para toda hora”, que conhece sua família, seu pai, que sempre o acompanha até em casa: seja ela o luxuoso hotel parisiense Claridge, na avenida Champs-Élysée, no qual Prado passava seus meses de verão, ou na mansão-parque tropical de Prado, na Avenida Higienópolis, em São Paulo, ou, ainda, na fazenda de café São Martinho, no interior do estado de São Paulo. Juntos eles também cruzavam o Atlântico a bordo do “Almanzora” (Cendrars 1948/1961:287). v Com o alto valor da lei da hospitalidade, a efetivação do direito eterno ao acolhimento, Cendrars é eternamente bem-vindo como hóspede na fazenda.

Cendrars retoma diversos conceitos sobre amizade,vi passando pela História, Filosofia e história da literatura – dos épicos e Aristóteles até Montaigne e Proust – a fim de retratar Paulo Prado e seu relacionamento com ele. No retrato do amigo Paulo Prado=Brasil, sua amizade tange questões da filosofia, da moral, da razão política, da guerra, do oculto. Cendrars não concebe a amizade nem no sentido de Montaigne, da simbiose ou de alma-gêmea, nem a compreende meramente como um fenômeno social. Cendrars busca um outro caminho, que permita espaço para a ambivalência. O retrato é um grande elogio ao admirável Paulo Prado, o erudito, no entanto, não se abstém de ocasionalmente traçar quadros irônicos através da narração de episódios anedóticos assim como nos momentos de inquisição sobre o que concernem as questões de política mundial.

A imensurável fortuna de Paulo Prado, cuja vida luxuosa e livre como “l’homme des Lettres”, cujo sucesso como homem de negócios e como representante do truste do café, da afabilidade e poder de sedução impressionavam profundamente Cendrars.

No início do relacionamento tratava-se de uma amizade entre desiguais: o poeta avant-garde francês Blaise Cendrars foi convidado pelo patrono brasileiro Paulo Prado para uma viagem ao Brasil. Este gesto de hospitalidade se repetiu em 1926 e em 1927-28. Durante o primeiro encontro a parceria se transformou rapidamente numa amizade entre iguais. Seu nível comum permitiu um intercâmbio intelectual que incluía a troca de livros e jornais. Como Cendrars destaca, a condição para a amizade era o reconhecimento intelectual. Também é uma expressão dessa profunda amizade a duradoura troca de cartas, que só foi interrompida com as dificuldades de comunicação durante a guerra.

O retrato literário foi concebido em seções, que se interseccionam, se completam, se contradizem e se corrigem entre si. Em vez de formar uma totalidade, consiste em temas heterogêneos, literários ou não. Cendrars arranjava fragmentos, ensaios, diálogos, narrações e manifestos como se monta um filme. Ele passa de um tema a outro, de um lugar – cidade, país, continente –, de uma situação, pessoa ou grupo, para outro. Troca, repete, retorna.

Baltazar Gracián, Descartes na rede e o alfaiate em Londres

O difícil empreendimento de apresentar na França a personalidade de um país desconhecido como o Brasil, através de um retrato literário a seu respeito, só é possível através de imagens. Trata-se de escapar das tipificações estipuladas que vão de acordo com as projeções coloniais. Em seu elogio de Paulo Prado, Cendrars chega a uma comparação incrível. Ele o caracteriza como um erudito de outro tempo. Ele compara Paulo Prado com o “l’homme universel” da corte de Madrid. Cendras eleva o amigo ao status de um homem excepcional, mas também a uma figura antiquada. Gracián, portador de atitude humanista, marcado como uma figura da transição para o intelecto forte, tem seu contato com escritores e artistas contemporâneos, sua criatividade poética e sua busca por desafios intelectuais como os valores de comparação que movem Cendrars. Em 1924, o ano da viagem de Cendrars ao Brasil, foi publicada na França uma nova edição revisada de Oráculo manual y arte de prudencia, que causou uma certa agitação.

Essa imagem retrospectiva de seu amigo, a comparação com um pensador, moralista, filósofo da corte, estabelece um contraponto, entre os assuntos presentes e o olhar para o futuro: Paulo Prado como um pensador-preceptor do Brasil moderno. Em seu livro Retrato do Brasil (1928), um estudo histórico, Paulo Prado tenta dar uma primeira resposta a questões abertas, como a do processo de construção da nação, a integração no mercado mundial, além de empreender uma investigação sobre o desenvolvimento de uma mentalidade brasileira. Cendrars caracteriza o livro como uma síntese de história e psicologia única em seu gênero e cujo escopo vai longe no sentido das investigações sobre a formação profunda da alma dos Bandeirantes, descobridores e conquistadores, esse punhado de bravos paulistas que fez sexo com filhas de chefes indígenas, príncipes, reis dos índios e desaparecem na floresta para mineralizare preencher o continente de uma prole valente, e sem os quais este colosso de Brasil não iria realizar-se. vii Cendrars queria traduzir o livro na França, mas Prado recusou a sugestão. Segundo a sua avaliação, o livro tratava de temas especificamente brasileiros, que os franceses não entenderiam e ainda poderia prejudicar a imagem do Brasil. viii

Para trazer à vista os méritos de Paulo Prado como historiador, pensador e político Cendrars se vale de duas histórias anedóticas. A primeira trata da visita de Prado ao seu alfaiate em Londres, e a outra, da aquisição de documentos históricos da época do descobrimento e da colonização do Brasil.

A história sobre a visita ao alfaiate tematiza o problema do vestuário e dos costumes nas cidades brasileiras, as vitrines da nação emergente. A questão concreta é como o camponês, o agricultor, o “caipira”, que se vestem em trapos ou em trajes tradicionais, podem se metamorfosear em um “gentleman” numa cidade civilizada. Na anedota, Paulo Prado discute com seu alfaiate em Londres –Meyer & Mortimer, les tailleurs du roi d’Angleterre” – a possibilidade de criar um uniforme urbano na América Latina. Sob a visão dos passantes da Regent-Street, Paulo Prado apresenta o problema ao seu interlocutor Samuel:Isso é o que eu quero, disse ele. As roupas deste homem não se distinguem em nada, nem pelo corte nem pelo pano. E, à primeira vista, reconhecemos um Inglês. Um gentleman. Ele está vestido como todos os outros e está perfeito. Você acredita que se possa algum dia obtê-lo de um selvagem sul-americano, mesmo ao preço do dinheiro? . ix

Através de um intermediário, Paulo Prado adquiriu em um leilão em Londres uma carta do Padre Anchieta para veiculá-la entre a elite do café por um serviço de assinatura pública. Cendrars imputa à carta do apóstolo brasileiro um significado parecido àquele que a carta de Pero Vaz de Caminha possuía na monarquia portuguesa: o relato do primeiro encontro com os indígenas e da riqueza opulenta brasileira. A história da compra e da primeira publicação do “original” é única. Ela destaca uma atitude sem igual na América Latina da época: a apropriação do documento histórico, que examinava as raízes, o descobrimento e a fundação do Brasil, que até então eram inéditos ao público. Aqui se manifesta o interesse e o apreço pela própria história nacional, cultura e acumulação de conhecimento. Explorar a história cultural brasileira tornou-se um ato político. A diferença reside no fato de Paulo Prado ser o único em seu tempo a introduzir uma nova postura pública. Ele considerava a carta do padre Anchieta não como uma propriedade privada que deveria permanecer como um tesouro valioso em sua biblioteca. Pelo contrário, tornou-a publicamente acessível, enviando-a ao Museu Paulista (291). A contribuição de Paulo Prado para a criação de uma memória cultural x brasileira é mais do que notável.

O que conta nessa amizade são as conversas, as ideias, o intercâmbio intelectual e também o reconhecimento nas desavenças. Um tema comum dos amigos são as considerações filosóficas de René Descartes, o pai-fundador do pensamento moderno. O racionalismo puro de Descartes, formulado no Regulae, através da separação entre matéria e espírito e o fim da existência de deus, era extremamente instigantexi para a vanguarda. Para Paulo Prado, no entanto, as ciências naturais livres da teologia ofereciam uma base sólida para uma teoria do moderno, os novos apontamentos de Descartes sobre a natureza como uma substância estendida (res extensa), que seria controlada por leis mecânicas, de tal forma que animais e os corpos humanos são tomados como máquinas, uma orientação bem-vinda. Cendrars acha uma imagem maravilhosa para esse posicionamento de seu amigo Paulo Prado. Num clique instantâneo ele capturou Paulo Prado perto de Descartes: Paulo, deitado de costas, colocou o livro (Descartes) aberto sobre os olhos, em chapéu de asno”. xii É paradigmático que no lugar em que Prado e Cendrars conversam sobre Descartes, cujo Dualismo rechaça o corpo humano, haja justamente uma rede. É típico como o brasileiro Paulo Prado explica Descartes para o europeu Cendrars, com passagens do texto de Discours de la méthode livremente citados e comentados. Claro que nenhum dos dois não tinha vontade alguma de buscar a obra de 1637 na estante, ainda que Paulo Prado a tivesse à sua disposição em sua biblioteca na fazenda de café São Martinho. Por causa do calor, eles dormem em redes estendidas na varanda.

Fascinação pelo café

Cendrars consumia e apreciava, como a maioria de seus colegas poetas e artistas, café e tabaco, conquanto esses hábitos, na Paris dos anos 1920, fossem ainda exclusivos. A viagem à terra do café (e do tabaco) permitiu uma fruição ilimitada e a oportunidade de estudar tudo acerca da produção e da cultura de café, e assim, escrever o Brasil. No dia 8 de Janeiro de 1929, Cendrars fechou o contrato para escrever um livro com o título “Les planteurs du Brésil”.

Fernand Braudel escreveu em seu livro Civilisation matérielle, économie et capitalisme (XVe-XVIIIe siècle) (1979) a história mundial do café, que desde os tempos mais primordiais foi celebrada como uma história de sucesso global, tal como foi apresentada numa exposição em Berlim em 2013-2014. xiii O café, e a cafeína como substância estimulante, superava a nicotina do tabaco e o álcool no ranking mundial de consumo de drogas (Richard M. Gilbert 1986:77). Sua marcha triunfal na Europa começou como uma bebida exclusiva da nobreza, na segunda metade do século XVII, nas casas de café frequentadas por homens de negócios, eruditos e políticos. Nesta época, Voltaire foi uma personalidade ilustre entre os amantes – e dependentes – do café (Emma C. Spary 2012). Os cafés como pontos de encontro, como locais de trocas e do desenvolvimento de um público liberal e revolucionário, desempenharam um papel crucial na Revolução Francesa, mais ou menos durante a agitação na Bastilha (Simon Schama 1989:382). Em meados do século XVIII a apreciação e o estímulo do café mantiveram uma entrada no ofício da Arte e da Literatura. O consumo excessivo de café por Honoré de Balzac para o alargamento da criatividade e intensificação do ritmo de trabalho é lendário e moldou o novo hábito de artistas, poetas e literatos (David T. Courtwright 2001: 94).

O automultiplicável consumo da bebida exclusiva no século XVIII convocou as forças coloniais da Espanha e de Portugal para o plano. Até 1820, o Brasil alcançou taxas altas de produção de café através do trabalho escravo. No fim do século XIX, os países latino-americanos produziam 70% da colheita de café mundial. Na fazenda São Martinho Cendrars pôde estudar minuciosamente a história e a cultura do café.

São Martinho

São Martinho assume uma posição-chave no retrato literário de Paulo Prado. A fazenda foi adquirida pelo avô de Paulo Prado (Martinho Prado) e por sua avó (Dona Veridiana e seus filhos Antonio Prado e Martinho Prado Júnior) em 1889, ou seja, um ano depois da abolição da escravidão. Em 1907, a fazenda São Martinho já contava com 3.500.000 pés de café e 450 “casas” para os trabalhadores da plantação. xiv Localizava-se a 370 km de distância de São Paulo, próximo à localidade de Ribeirão Preto e das colônias de Santa Cruz das Palmeiras e Guarina. xv

A fazenda, de 28.000 hectares, já dispunha de 70.000 pés de café quando foi comprada. Quem, além de escravos, deviam ter trabalhado na propriedade, um ano após a abolição oficial da escravidão, em 1889? Muito provavelmente a fazenda foi recebida com os trabalhadores “livres” que, em regra, eram escravos que haviam permanecido na fazenda, uma vez que não possuíam nenhuma outra opção de trabalho. Cendrars não pôde examinar melhor essa situação de desenlace histórico, pela qual certamente se interessava. xvi Durante a política do café, a sua valorização, isto é, a regulação, estabilização e política de preços através da intervenção estatal, que sabidamente tiveram seu ápice com o Convênio de Taubaté (1906) – empréstimos estatais para a o suporte do setor cafeeiro, também por causa da recessão da economia mundial –, foi potencializada em São Martinho. Cerca de 500.000 novas plantas eram cultivadas anualmente, e, no Brasil, o cultivo era diferente do modo como se fazia na Colômbia ou na Guatemala, também em questões de gosto, e ainda havia uma nova força de trabalho de migrantes contratados. Em 1907 havia 450 casas fixas para trabalhadores, ao lado de acomodações temporárias para diaristas. O novo assentamento foi batizado com o nome do proprietário: Pradópolis. Com 1.500.000 pés de café, em 1907, São Martinho se transformou numa das posses mais importantes e prósperas da república (Darrell E. Levi 1977). Paulo Prado modernizou a infraestrutura e adquiriu máquinas. Ele relatou ao seu amigo Cendrars sobre seus investimentos em uma carta a Paris, do dia 23 de Abril de 1926: à estação “Martinho Prado”, particular da fazenda, segue-se uma alameda de eucaplitos de 2km de comprimento, havia ruas privadas (22 km) e ruas públicas, que se conectavam às localidades próximas, como pequenas cidades. Próximo à casa senhorial, o “palacete”, havia casas para a administração, 24 moradias para os altos funcionários, duas escolas, uma farmácia, 75 casas para os trabalhadores permanentes e 446 para os trabalhadores sazonais, duas casas de máquinas e dois depósitos, um cinema, a cujas sessões, aos sábados, compareciam 249 espectadores. Todo o pessoal da fazenda totalizava 3.297 pessoas, mais da metade de mulheres, e dois terços dos empregados eram trabalhadores sazonais. Quando o número de pés de café era aproximadamente de 2.774.000, a criação de gado foi adicionada às atividades da fazenda. xvii

Metafísica do Café

Em 1927, na ocasião das celebrações de 200 anos do início do cultivo de café, Cendrars publicou o pequeno texto “Métaphysique du café” [“Metafísica do café”], no suplemento especial O Jornal de 27 de Outubro de 1927. A conversão do grão de café de produto tropical a produto de exportação levou, através da magia do dinheiro, a imensuráveis fortunas, o que possibilitou a importação de bens industriais, de luxo ou duráveis. No porto de Santos e no do Rio amontoavam-se produtos manufaturados de todas as cores e categorias: “Essas carrocerias de automóveis, essas locomotivas a granel, esses vagões desmontados, essas sucatas, essas máquinas, essas estatuetas de Sta. Teresa do Menino Jesus que admitimos às dezenas de milhares, esses barris de vinho, essas toneladas de gasolina, essas banheiras, esses pacotes de papel higiênico, essas montanhas de gramofones e alto-falantes, esses aparelhos elétricos, esses baús cheios de belas roupas e vestidos raros, perfumes e colares de pérolas da moda, livros, cartas, jornais de todos os países do mundo, essas substâncias químicas, essas bestas destinadas à importação, essas ferramentas, esses instrumentos, um guindaste de 10.000 libras, um trator, um estojo de cirurgião, uma turbina de 100 mil watts.” (Cendrars 1.9.1927/1962:237). xviii

Em 1927, com os preços do café já baixos, foram introduzidas medidas contundentes, pelo instituto “Defesa do Café”, fundado em 1922, para tratar da organização da produção nacional de mercado. Paulo Prado tornou-se o representante do instituto. Ele estava em exercício quando houve o crack da bolsa de 1929 e quando a grande depressão se instalou em 1930. Três quartos da prosperidade brasileira dependiam diretamente da exportação de café.

Crise econômica mundial: o evento e suas repercussões

A representação do evento por Cendrars e suas teorias sobre os transtornos causados pela crise econômica mundial são de especial interesse. Os relatos de destruição de café foram recebidos pelos intelectuais e escritores na Europa com grande perturbação. Fotos de incêndios em montes de café e outros métodos de destruição foram vistos com horror. Bertold Brecht, Alfred Döblin e os visitantes do Romanisches Café preocupavam-se com isto. Cendrars exibiu uma forte reação ao acontecimento. No dia 31 de Agosto de 1929, ele perguntou a Paulo Prado, numa carta, se não havia de fato nenhuma outra solução a não ser destruir “un produit de première nécessité” [“um produto de primeira necessidade”] e ainda “pourquoi ne pas le distribuer à titre de propaganda” [por que não distribuí-lo, a título de propaganda”. xix Ele chega até a pedir a renúncia de seu amigo Paulo Prado da função de presidente do “Instituto de Defesa do Café”. Cendrars pesquisa exatamente os números e os métodos empregados na destruição de café – em 1931 o governo Getúlio Vargas permitiu que 800.000 de 20 milhões de sacas de café fossem queimadas para alcançar estabilidade nos preços – e avaliou esse protecionismo como uma forma de declaração de guerra. Cendrars desenvolveu esta tese de 1944 até o fim da guerra, quando o preço do café já listava duas quedas bruscas: a primeira devido à quebra da bolsa de 1929, quando teve seu valor reduzido pela metade, e a segunda, em 1931, quando seu valor foi reduzido ainda em 40%. Somente em 1947 o preço do café subiu a um novo recorde, alcançando o preço que tinha em 1928. Olhando para o período de cinco anos após a deflagração da crise, ele formulou sua teoria das revoluções:” De 1929 a 1934, durante os anos cruciais da crise financeira mundial, o Instituto de Defesa do Café destruiu 36 milhões de sacas de café. Jogaram-se os embarques de café ao mar. O café foi queimado no forno das locomotivas. Em Santos, uma montanha de sacos de café empilhados uns em cima dos outros, queimado dia e noite, durante todos os anos da crise e, talvez, até a declaração de guerra. Pense em 50 milhões de sacas. Attila Tamberlan não teria feito melhor. Era um absurdo. Ele percebe hoje. Mas isso não serve de nada. xx

Prado resignou-se. Se ele não o tivesse feito, teria mudado, então a amizade ficou em suspenso:

“Eis o homem que me impeliu a ir mais longe numa amizade”.xxi

Cendrars não foi informado da morte de Paulo Prado, em 1943, em meio à guerra. Cendrars escreve em 1948 “Sale guerre!” [Guerra suja!] 

Notas

i Bourlinguer é uma coleção de onze histórias publicadas por Blaise Cendrars (1887-1961), em 1948, pela Denoël.

ii “Et puis […] je me suis présenté moy-mesmes à moy pour argumentet pour sujet”, no original em francês. A passagem comentada pela autora está nas palavras iniciais do Essais de Montagine, através das quais o pensador francês se coloca como sendo ele mesmo a matéria do seu livro. (N. do E.)

iii No original: “quel […] eût eu l’approbation de son Pape, ce petit provincial d’André Breton” (Cendrars 1948/1961:321). (N. do E.)

iv Balzac se vingou em Illusions perdues (1839) com um retrato literário que representava Saint-Beuve como um talentoso escrevinhador, que buscava de maneira inescrupulosa ascender socialmente.

v Eu cito aqui e nas citações seguintes as páginas entre parênteses correspondentes à edição: Œuvres completes Vol. 6. 1960-65. Paris: Denoël.

vi Comparar com o estudo filosófico de Jacques Derrida de 1994. Politiques de lamitié. Paris: Galilée.

vii No original: “une synthèse unique en son genre d’histoire et de psychologie et dont la portée va loins dans les sens des investigatons sur la formation profonde de l’âme des bandeirantes, descobritores et conquistadores, cette poignée des braves Paulistes qui firent couche avec les filles de chefs, des princes, des rois des Indiens et disparaissent en forêt pour aller « minéraliser » et peupler tout le continent de vaillants rejetons, et sans lesquels ce colosse de Brésil ne tiendrait pas debout”. (N. do E.)

viii Conferir a troca de cartas entre Blaise Cendrars e Paulo Prado, reproduzido em Calil (Ed.) 2001, V. Mon cher Paul. p. 199-201.

ix “Voilà ce que je désire, dit-il. Les vêtements de cet homme ne se distinguent en rien, ni par la coupe ni par le drap. Et du premier coup d’œil on reconnaît un Anglais. Un gentleman. Il est habillé comme tout le monde et c’est parfait. Croyez-vous que l’on puisse jamais obtenir ça d’un sauvage sud-américain, même au prix de l’Argent?“(294), no original. (N. do E.)

x Para o significado constitutivo de coleções locais, regionais ou nacionais de objetos e imagens como base para a construção de uma memória coletiva ou individual, conferir os estudos de Maurice Halbwachs 1925/1950; Jan Assmann e. Tonio Höscher 1988; referidos à América Latina Carlos Rincón 2014.

xi Nesse trecho, a autora caracteriza esses temas da obra de Descartes como uma expressão intraduzível, que significa algo como um pano vermelho para um touro. N. T.

xii “Paul, renversé sur le dos, s’était mis le livre (Descartes) ouvert sur les yeux, en bonnet d’âne”(298)“, no original. (N. do E.)

xiii O título da exposição no Jardim Botânico de Berlim é “Kaffee. Ein globaler Erfolg. (Café. Um sucesso global) Exposição temporária, Berlim. 17 de Maio de 2013 a 23 de Fevereiro de 2014.

xiv De acordo com a brochura da Usina São Martinho, Secretaria da direção da fazenda de café, Roig 1988, La Fazenda São Martinho dOswald de Andrade et de Blaise Cendrars. Em: Quadrant 1988. p. 59-82.

xv O administrador Bento Canavarro desempenhou um papel central para o conhecimento de Cendrars acerca do negócio do cultivo de café e da vida cotidiana nas fazendas. Ele era chamado por Cendrars de Coronel Bento, devido à sua eficiência e discplina militar. Uma foto do arquivo privado de Paulo Prado o mostra usando botas de montaria e uma jaqueta branca em frente aos pés de café. Deve ser ressaltado seu laço estreito com a família Prado, a ponto de ele e sua família terem lugares cativos na mesa do senhorio. Que esse senhor certamente desempenhava com mão pesada suas funções de vigia dos coletores de café, imigrantes italianos, espanhóis e japoneses, suas lembranças idílicas sobre o informante da família Prado não discutem. Da mesma maneira, Carlos Augusto Calil o tematiza pouco no trabalho editado e ampliado de Alexandre Eulalio 2001, aqui p. 254.

xvi Essa questão não se encontra nem nas indicações dos documentos, nem em trabalhos existentes sobre as questões introduzidas por Cendrars, por exemplo, no estudo informativo de Adrien RoigLa Fazenda São Martinho dOswald de Andrade et de Blaise Cendrars. Em: Quadrant 1988. p. 59-82.

xvii Conferir as cartas do Dr. Luiz Prado São Martinho 23. April 1926, com informações sobre a fazenda; Fond Blaise Cendrars der Bibliothèque Nationale Suisse in Bern. B.N.S. P 41, 5a, 5b, Roig 1988: La Fazenda São Martinho d´Oswald de Andrade et de Blaise Cendrars. Em: Quadrant 1988. p. 59-82.

xviii As inovações no cultivo de café, os processos de transformação material e recomendações morais levam a uma intensa oscilação. Em 1952, Cendrars descreve a modernização em Le Brésil, des homes sont venus… No original: “ces caisses d’automobiles, ces locomotives en vrac, ces wagons démontés, ces ferrailles, ces machines, ces statuettes de Ste. Thérèse de l’Enfant Jésus que l’on introduit par dizaines de mille, ces futs de vin, ces tonnes d’essence, ces baignoires, ces ballots de papier hygiénique, ces montagnes de gramophones et de haut-parleurs, ces appareils électriques, ces malles pleines de beau linge et de robes rares, de parfums à la mode et de colliers de perles, livres, lettres, journaux venus de tous les pays du monde, ces produits chimiques, ces bêtes de prime importées, ces outils, ces instruments, une grue de 10.000 kilos, un tracteur, une trousse de chirurgien, une turbine de 100.000 watts” (N. do E.)

xix Apud Calil (Ed.) 200: 212-213.

xx  No original: “De 1929 à 1934, durant les années cruciales de la crise financière mondiale, l’‘Institut de Défense du Café’ a détruit 36 millions de sacs de café. On a jeté des cargaisons de café à la mer. On a brûlé le café dans le foyer des locomotives. A Santos, une montagne de sacs de café empilés les uns sur les autres a brûlé jour et nuit durant toutes les années de la crise et peut-être jusqu’à la déclaration de la guerre. Mettons 50 millions de sacs. Attila, Tamberlan n’ont pas fait mieux. C’était absurde. On s’en rend compte aujourd’hui. Mais cela n’a servi de rien” (Cendrars 1948/1961:305).(N. do E.)

xxiC’est l’homme avec qui j’ai poussé l’amitié le plus loin”(305), no original (N. do E.) 

xxii Guerra suja!

Bibliografia

Assmann, Jan / Höscher, Tonio (Ed.) 1988.Kultur und Gedächtnis. Frankfurt/M: Suhrkamp.

Calil, Carlos Augusto 2001. Veja: Eulalio 2001.

Cendrars, Blaise. Œuvres complètes 1960-65. Paris: Denoël.

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