A política externa dos presidenciáveis

Dilma e Aécio divergem sobre integração sulamericana, BRICS, “livre” comércio e postura diante dos EUA. Posição de Campos permanece incerta

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Dilma e Aécio divergem sobre integração sulamericana, BRICS, “livre” comércio e postura diante dos EUA. Posição de Eduardo Campos permanece incerta

Por Felipe Amin Filomeno | Imagem: Mapa de Nicholas Janzoon Visscher, 1658

As eleições presidenciais de 2014 oferecem ao cidadão brasileiro a oportunidade de influenciar a política do Estado frente ao seu contexto internacional. Embora este possa parecer um aspecto secundário do processo eleitoral, decisões quanto a tratados de comércio internacional, envolvimento em operações de paz e normas internacionais de direitos humanos têm impactos diretos sobre a vida do brasileiro. À medida em que a democracia se aprofunda e que o cidadão comum, graças às tecnologias de comunicação, tem maior conhecimento da inserção internacional de seu Estado, a natureza da política externa como política pública se aprofunda. O Itamaraty, como instituição de excelência que é, tem sua própria política de diplomacia pública.

Até agora, estão colocadas duas opções de política externa na pauta eleitoral. A primeira é a da candidatura à re-eleição da presidenta Dilma Rousseff, que é a de continuidade de uma política externa que enfatiza a promoção do desenvolvimento, a diversificação das relações internacionais do Brasil em direção ao Sul Global e o multilateralismo. A segunda é a da candidatura do senador Aécio Neves, que é a de um retorno à política externa neoliberal dos anos FHC, com um realinhamento aos interesses do Atlântico Norte (e dos EUA, mais especificamente) e um arrefecimento da cooperação Sul-Sul, incluindo aí uma redução do Mercosul a uma zona de livre-comércio.

Eu bem que gostaria de avaliar uma proposta inovadora de política externa, mas não há sinais de inovação oriundos nem do atual governo (em relação às diretrizes de política externa observadas desde Lula), nem da candidatura de Aécio Neves (em relação ao que foi praticado no governo FHC). A candidatura do governador Eduardo Campos e da ex-senadora Marina Silva, se já nebulosa enquanto projeto político nos seus aspectos nacionais, é ainda mais enigmática em seus aspectos internacionais. Se há algo que podemos esperar de um governo Campos-Silva, é a paralisia. A estreita base partidária desta candidatura, sua base de suporte regional fora do sudeste do país e a falta de clareza de seu projeto político tendem a agudizar os problemas que já vivenciamos hoje sob o “presidencialismo de coalizão”. Ademais, as candidaturas de Dilma e Aécio são as mais viáveis de acordo com as pesquisas de intenção de voto. Por isso, minha análise a seguir não irá avaliar os rumos que a política externa brasileira poderia tomar em um possível governo Campos-Silva.

Ao diferenciar os projetos de política externa de Dilma Rousseff e Aécio Neves, é importante não exagerar nos contrastes, pois ambos os candidatos enfrentariam os mesmos condicionantes estruturais caso fossem eleitos. Mudaria o chefe de Estado e a chancelaria, mudariam os partidos políticos na administração federal, mas o contexto mundial permaneceria praticamente o mesmo. Por isso, vou começar minha análise considerando os condicionantes de política externa atualmente existentes em três níveis: (1) o sistema capitalista mundial, (2) o regionalismo latino-americano e (3) a conjuntura social no Brasil. Em seguida, avalio o que Dilma, Aécio e suas respectivas chancelarias poderiam fazer de diferente neste contexto (pelo menos naquilo que já é aparente em suas declarações e práticas). Condicionantes estruturais estabelecem limites e possibilidades, mas não determinam o futuro indefinidamente; pelo contrário, são constituídos e transformados pela inter-ação social cumulativa e coletiva, o que inclui as iniciativas de política externa de Estados semi-periféricos como o Brasil.

O sistema capitalista mundial

Desde 2008, o sistema capitalista mundial vive uma recessão global, concentrada no Norte Global, especialmente na Europa. Neste quadro, a cooperação internacional fica mais difícil, com Estados tendendo a adotar práticas competitivas (como o protecionismo e a “guerra cambial”). Para o Brasil, a recessão também implica uma situação mais difícil na balança comercial e no orçamento público, o que limita os recursos disponíveis para iniciativas internacionais (como o financiamento a projetos de cooperação, a ampliação do corpo diplomático, etc.). As próprias empresas transnacionais brasileiras têm retraído seus investimentos no exterior. As críticas à personalidade supostamente centralizadora e avessa a temas internacionais da presidente Dilma tendem a negligenciar a força destes condicionantes estruturais, mas eles afetarão qualquer presidente.

Porém, a crise mundial não é apenas econômica. Temos observado uma onda global de protestos em massa, como as “Jornadas de Junho” ocorridas em 2013 no Brasil. Em cada país, estes protestos assumem formas e tem motivações diversas, mas compõem um quadro sistêmico de instabilidade política. Isto também tem implicações para a política externa. Hoje, o Estado brasileiro precisa se preocupar tanto com os protestos na Venezuela (que o levam a participar de um processo internacional de mediação) quanto com os protestos no Brasil (que o fazem se voltar mais para os problemas políticos domésticos).

No todo, esta crise põe em xeque a hegemonia dos EUA sobre o sistema mundial, em declínio desde os anos 1970, e também a ascensão do Sul Global, observada a partir de meados dos anos 2000. Por um lado, os EUA tentam sustentar sua hegemonia através de iniciativas internacionais como a Trans-Pacific Partnership (TTP) e o acordo EUA-União Europeia. Por outro, os BRICS buscam reformar a governança das organizações multilaterais e criar novas instituições internacionais. Ainda é cedo para dizer que movimento irá prevalecer, mas são processos com os quais qualquer presidente brasileiro terá que lidar.

O regionalismo latino-americano

Desde o início dos anos 2000, o regionalismo latino-americano tem experimentado mudanças significativas. De modo geral, há um declínio da influência dos EUA sobre a região, por causa da ascensão de governos à esquerda do centro e da criação de novos organismos regionais, como a ALBA, a UNASUL e a CELAC. Esta tendência é menos intensa nos países que hoje compõem a Aliança do Pacífico (todos com tratados de livre-comércio com os EUA e orientação neoliberal). O Mercosul, por sua vez, passou de um regionalismo aberto nos anos 1990 para um regionalismo fechado e com dimensão geopolítica mais expressiva. Os novos regionalismos da América Latina e a diversidade de orientações políticas na região (em contraste à predominância do Consenso de Washington nos anos 1990) serão uma realidade para qualquer presidente brasileiro.

Conjuntura social no Brasil

No âmbito nacional, existem pelo menos dois desafios importantes para o Brasil. Primeiramente, uma instabilidade política, associada à emergência de uma nova classe média, que coloca novas demandas para o Estado, e aos protestos em massa. Em segundo lugar, a desindustrialização, que se torna mais problemática na medida em que o boom nos preços internacionais das commodities perde força. Se a instabilidade política doméstica exige atenção dos governantes, que por isso podem dar menos atenção para questões internacionais, a questão econômica necessita de ação internacional.

Os presidenciáveis diante do contexto internacional do Brasil

Diante da crise mundial e do declínio da hegemonia dos EUA, o posicionamento de Dilma e Aécio tende a ser diferente. De uma segunda presidência de Dilma, podemos esperar a continuidade de uma estratégia “terceiro-mundista”, não tão assertiva quanto a de Lula, mas também alicerçada no multilateralismo, no BRICS, na UNASUL e no MERCOSUL. De uma presidência de Aécio, podemos esperar um internacionalismo liberal menos pautado pela clivagem Norte-Sul. Isto é arriscado, no sentido de que hoje vivemos um momento excepcional de instabilidade na hierarquia centro-periferia que historicamente caracteriza o sistema mundial, uma oportunidade que pode ser desperdiçada num abandono de iniciativas “terceiro-mundistas” contestadoras desta hierarquia.

Em relação ao contexto latino-americano, também há uma divergência clara entre as propostas dos dois candidatos. Com uma reeleição de Dilma, o Brasil continuaria investindo no Mercosul e na Unasul, com ênfase não apenas comercial mas também geopolítica. Para Aécio, o Mercosul é uma “camisa de força” e a Unasul inclui alguns Estados cujos governos são autoritários e não respeitam o Estado de direito (Venezuela, Bolívia, Equador e Argentina). A julgar pelas declarações do próprio Aécio e de diplomatas ligados ao PSDB (Luiz Felipe Lampreia, Rubens Barbosa), o Mercosul deveria rever a regra de negociação conjunta de tratados comerciais e, talvez, ser reduzido a uma zona de livre comércio. Isto permitiria ao Brasil participar em negociações regionais e bilaterais lideradas pelos EUA e pela União Europeia.

As propostas de política externa do PSDB são orientadas pelo medo de o Brasil ficar excluído de cadeias globais de valor, um novo vocabulário que se adotou para a defesa da liberalização comercial no Brasil. Este “medo” é bastante questionável. Por um lado, a liberalização comercial não conduz naturalmente a uma posição vantajosa em cadeias globais de valor. Na ausência de políticas industriais, um país rico em recursos naturais, e com industrialização de nível semi-periférico, que liberalize seu comércio internacional tenderá a se inserir em cadeias globais de valor como ofertante de matérias-primas, geralmente enfrentando oligopólios transnacionais que apropriarão a maior parte do excedente gerado nas cadeias. Por outro lado, a proteção tarifária não necessariamente exclui um país de cadeias globais de valor. Aplicando a proteção tarifária como parte de uma política industrial de suporte a indústrias nascentes e por tempo limitado, o país pode internalizar os elos mais tecnologicamente dinâmicos e economicamente rentáveis das cadeias globais de valor.

Portanto, sob Aécio, o Mercosul seria um projeto de integração bem mais modesto do que aquele assumido pelos governos do PT. Um regionalismo que seja peça complementar aos tratados de livre-comércio entre os EUA e países da América Latina e aos mega-acordos liderados pelos EUA não é um regionalismo contra-hegemônico (entendendo aqui contra-hegemonia num sentido amplo de promoção de uma ordem internacional menos hierárquica e mais multipolar, e não no sentido estreito de uma ideologia anti-americana). A proposta de Aécio para o Mercosul implicaria também que, em sua presidência, o Brasil teria uma postura mais competitiva vis-à-visos demais países da região. Aécio criticou a “passividade” do governo brasileiro frente à nacionalização dos ativos da Petrobrás pela Bolívia e as dificuldades colocadas pelo protecionismo argentino para as empresas brasileiras. Sob Lula e Dilma, o Brasil tem sido compreensivo com os países vizinhos nestas questões, adotando uma postura cooperativa voltada à integração no longo prazo. O Brasil produz quase todos os produtos que são exportados por nossos vizinhos, temos superávits sucessivos com a Argentina e nossas empresas são as maiores da região. Se, no curto prazo, não formos compreensivos com as necessidades de desenvolvimento dos países vizinhos, e demandarmos de imediato o livre comércio e a livre atuação das empresas brasileiras na região, que vantagem os países vizinhos verão em uma integração regional com o Brasil? Não quero, com isso, exagerar o caráter cooperativo das relações do Brasil com seus vizinhos nos governos do PT, tendo em vista o componente subimperalista destas relações também presente após 2003.

Na esfera regional, há ainda diferenças importantes entre os candidatos na promoção da democracia. O PT pauta suas políticas (inclusive a externa) numa noção de democracia substantiva e popular, enquanto o PSDB segue um conceito de democracia formal e liberal. Daí que, sob a liderança de Lula e Dilma, o Estado brasileiro teve boas relações com os governos de Chávez, Correa e Morales. Aécio, em contraste, ataca abertamente estes governos (por exemplo, demanda uma postura mais enérgica de condenação à repressão praticada pelo governo de Maduro) e também critica o governo de Cristina Kirchner da Argentina. Chega a dizer que o Brasil perde credibilidade internacional ao se aproximar destes governos. A “credibilidade internacional” é mais um instrumento retórico na proposta de política externa de Aécio (o primeiro é o medo de marginalização de cadeias globais de valor); ambos os instrumentos são bastante consistentes com a política externa brasileira praticada nos anos FHC. Aécio e seus simpatizantes também costumam classificar a política externa brasileira de ideologizada e partidária, como se só governos de esquerda tivessem ideologia, algo obviamente equivocado, como demonstra a reunião que Aécio teve com líderes da direita latino-americana em Abril deste ano.

É importante questionar as implicações do discurso abertamente crítico de Aécio a alguns governos vizinhos para a liderança brasileira na região. Apesar de sua oposição ao Consenso de Washington, não vemos Lula ou Dilma acusando o México ou a Colômbia de subserviência aos EUA do mesmo modo que vemos Aécio acusando governantes vizinhos de autoritarismo e infração da lei. Quem então estaria em melhores condições de dialogar amplamente com todos os governantes de países latino-americanos (uma condição necessária para a liderança regional)?

Conclusão

Para finalizar, não quis com esta análise apresentar uma visão maniqueísta e super-simplificada das alternativas de política externa que estão apresentadas nesta eleição, mas acho que o que temos na mesa hoje são os dois eixos de política externa que, segundo Cristina Pecequilo, se alternam, ou se combinam de diferentes formas, na trajetória histórica da política externa brasileira: o eixo horizontal (de intensificação das relações Sul-Sul, aprofundamento da integração regional, atuação assertiva em prol de um multilateralismo menos hierárquico), o qual é enfatizado pela candidatura Dilma, e o eixo vertical (de alinhamento do Brasil com o Atlântico Norte, especialmente na esfera bilateral com os EUA), o qual é enfatizado pela candidatura Aécio. Lembrando que estes eixos não significam orientações exclusivas, mas sim predominantes. Não é que o Brasil, sob Aécio, abandonaria a integração regional ou a cooperação Sul-Sul e olharia apenas para o Norte, mas haveria uma mudança de ênfase e inclusive de natureza, na medida em que as organizações de integração regional da América Latina passariam a ser vistas de uma perspectiva mais comercial do que de uma perspectiva geopolítica contra-hegemônica.

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2 comentários para "A política externa dos presidenciáveis"

  1. Ruy Mauricio de Lima e Silva Neto disse:

    Meu Deus, temos que tomar todo o cuidado para não por a perder todo um esforço de real diversificação de nossas relações comerciais internacionais que felizmente nos livraram, desde Lula, pelo menos em grande medida, da leonina e secular “supervisão” do capital internacional.O momento é realmente crítico pois estamos em plena fase de criação e operacionalização de novos instrumentos financeiros independentes de Wall Street, da City ou de Fujiwara.Uma absoluta maravilha – um Banco internacional mantido e gerido pelos países do Brics, para financiar as reais necessidades (do lado real e não meramente financeiro, como vinha sendo de Cabral a FHC) das economias destes países.FMI, Banco Mundial, BID e USAID no more.Com suas alentadas dotações para os governos “democráticos” de Lacerda, Ademar, Magalhães, gorilas,Sarney, Collor e FHC, para só ficarmos no último meio século.Todo o cuidado é pouco na hora do voto, mermão.Instrumentos preciosíssimos que, nos custaram uma enorme margem de sacrifício e de lutas e que facilitarão tremendamente a natureza e a abundância dos investimentos, daqui para frente, podem se volatilizar em questão de poucos meses, se um destes carismáticos poltrões vierem a merecer a maioria dos votos dos brasileiros em outubro próximo.Sem falar que, independente disto,
    alguns segmentos conservadores não deixarão de arquitetar alguma solução 2.0.

  2. Não sou tão otimista. Acho que o movimento de Aécio seria sim o de sufocar aos poucos o processo de integração sul-americano, agenda que lhe seria imposta como uma das condições do realinhamento com o “grande irmão” lá de cima. No seu projeto, a América Latina voltaria a ter um papel pouco significativo nas relações internacionais do Brasil.

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