A ditadura lida por dentro

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Romance de Bernardo Kucinski escava com atualidade e vigor literário o terror da ditadura brasileira

Por Alexandre Pilati*

Lê-se o romance K. (Expressão Popular, 2011) de Bernardo Kucinski de um fôlego. Envolvente, o conjunto de fragmentos de que a narrativa se compõe abraça o leitor e pede dele atenção grave, sentimento operante e uma resposta comprometida. Tudo isso porque reconta, sob uma forma literariamente tensa, a busca de um pai pela filha desaparecida nos anos 70 durante a criminosa ditadura militar brasileira. Dado o tema, haverá quem reconheça no livro, de imediato, um mérito histórico, ligado ao resgate de um conjunto de questões que nunca será demais repisar: a tortura, os assassinatos, os crimes perpetrados por um sistema de opressão bem montado e com tonalidades próprias de perversão, as quais configuram a nota específica do terror institucional à brasileira. Outros dirão talvez que há muito valor nos traços universalizantes da narrativa, que articula a tragédia histórica do nazismo ao golpe brasileiro e seus atos de baixeza, escavando a natureza humana subjetiva em abstrações tais como a perda, o luto, a saudade, o amor entre pai e filha. Haverá ainda aqueles que destacarão a potência literária do livro, sua forma inquieta, não tradicionalista de oscilar narradores e transitar entre perspectivas narrativas distintas de que derivam estilos também distintos, num modo muito próprio de lidar com a memória. Mas é claro que uma leitura K. que se pretenda suficientemente profunda e abrangente não poderá considerar cada um desses aspectos isoladamente, sob pena de suprimir aquilo que podemos chamar de “a sua força contemporânea”. Tal força está precisamente na maneira como a narrativa se organiza e não, de maneira isolada, pelos seus méritos de denúncia e de reconstituição histórica de um tempo nefando. Esta força está em como ficção e história se articulam no romance em função de uma forma narrativa capaz de descortinar a vida que flui imperfeita, sob as aparências às vezes ambíguas que o tempo vai adesivando nos fatos, o que comumente favorece o bloqueio de sua inteligibilidade.

De cara, o romance propõe uma discussão que envolve fato e ficção, história e narrativa literária. A frase que inicia o aviso ao leitor que funciona como epígrafe do livro não deixa dúvidas quanto à intenção que a obra tem de instaurar uma inquietação para o leitor. A interpelação é dialética, como se reconhecerá: “Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu.” A armadilha ao leitor descuidado está no fato de que “invenção” em literatura não significa delírio ou evasão. Invenção ou fabulação são a matéria fundamental da ficção, são a base contraditória da obra literária que é a um só tempo mimese e poiese, como já ensinou Aristóteles há tantos séculos. Trocando em miúdos, a obra literária é imitação do real que se dá não apesar da fabulação, mas sim através da invenção. A esse respeito diz o autor: “Deixei que lembranças fluíssem diretamente da memória, na forma como lá estavam, há décadas soterradas, sem confrontá-las com pesquisas, sem tentar completá-las ou lapidá-las com registros da época.” Assim, o que o romance K. nos apresenta é, além de um dilacerado painel do tempo, uma grande problematização do fazer literário. Usando os elementos do romance, diríamos que a ditadura não é simplesmente relatada, documentada, exposta ou representada objetivamente por Kucinski. Em seu romance o que se vê é, de forma franca, a subjetividade, a dimensão mais íntima de um autor-narrador, filtrando os fatos da objetividade, nunca em detrimento da verdade histórica, mas sempre a favor de uma exposição tensa e vívida dela.

O dado formal fundamental da obra é a sua dinâmica narrativa, que se estabelece num movimento tenso entre tendências e formas dispersivas, por um lado, e, por outro, elementos unificadores. Também nesse ponto as palavras do autor são bastante esclarecedoras: “A unidade se deu através de K. Por isso, o fragmento que o introduz inicia o conjunto, logo após a abertura. E o que encerra suas atribulações está quase no final. A ordem dos demais fragmentos é arbitrária, apenas uma entre as várias possibilidades de ordenamento dos textos.” O que o leitor verá, portanto, é um conjunto de fragmentos, aparentemente postos em movimento de dispersão, que, no entanto, têm a unidade entre si garantida, em primeira instância, pelo elo que é a personagem K. Nesse dado formal encontramos uma adequação do autor a certa tendência à dispersividade narrativa do romance contemporâneo. Aí está, pois, um bom sintoma de sua atualidade. Entretanto, seria bom alertar que K. não é apenas um romance atual e sim um ótimo romance contemporâneo. Pensar assim passa por reconhecer um outro nível da dinâmica dispersão-unidade, que não está expresso pelo autor, mas que pode ter sido por ele intuído, uma vez que está excelentemente formalizado na obra.

Uma breve contabilidade descritiva dos capítulos dará a ver melhor este outro nível da referida dinâmica. K. é composto por 29 fragmentos narrativos. Desses, 15 fragmentos, ou seja mais da metade, apresentam uma voz narrativa em terceira pessoa e apresentam como personagem central o próprio personagem K., o pai que busca a filha desaparecida. Nesses fragmentos, apresenta-se uma tensa relação de distanciamento e aproximação do personagem, o que dá eles uma profunda humanização do relato. A intimidade entre narrador e personagem, embora sutil, é profunda e verifica-se uma empatia de alta sensibilidade entre eles, o que é determinante para a eficácia estética não apenas desses fragmentos, mas também da obra como um todo. Outro grupo significativo de fragmentos é aquele composto pelos 5 textos escritos também em terceira pessoa, mas que, diferentemente daquele grupo majoritário, não têm o personagem K. como protagonista. Os protagonistas são diferentes em cada um deles: um agente do terror, uma faxineira da casa de tortura, um general cassado, os professores em reunião de colegiado na universidade. Aqui a relação entre narrador em terceira pessoa e personagem se dá mais pela via da mediação crítica e avaliativa, do que pela via da subjetividade sentimental, como no caso dos fragmentos dedicados predominantemente a K. Há ainda um outro grupo de fragmentos em que a narrativa encontra-se em primeira pessoa, ou seja, os próprios personagens protagonistas falam, expondo a sua história. São eles: o pai do genro de K., que desfia saudade em um tom simples e tocante; um agente da polícia estúpido, que não sabe o que fazer com a cadela do casal assassinado; alguém que reflete sobre a busca inútil pela filha, que pode ser o próprio K. (ou quiçá o narrador daqueles primeiros fragmentos onde ele era o protagonista); o perverso delegado Fleury e, por fim, a amante do delegado torturador. Nesses fragmentos a notação ficcional se acentua, como forma de evidenciar as forças humanas em jogo numa sociedade massacrada pelo terror institucionalizado. Completam o quadro dos 29 fragmentos ainda duas cartas, uma do personagem Rodriguez e uma da personagem A., além de dois textos que poderiam ser creditados ao próprio autor, uma vez que evidenciam certos princípios e sentimentos que catalisam a produção do romance, falando da permanência fantasmática da personagem desaparecida e de uma resistência do sistema opressor mesmo em tempos de propalada democracia. No fim das contas, esses dois fragmentos, postos no início e no fim do livro, dão-lhe a moldura histórica e motivacional, evidenciando claramente a consciência do autor relativamente à contemporaneidade de sua obra. São ainda esses fragmentos sintomas da presença unificadora de um autor-narrador (ou autor textual) absolutamente consciente dos mecanismos que atuam no caleidoscópio narrativo que vai montando aos olhos do leitor, num processo que sempre revela as marcas da reflexão profunda que empreende acerca do fazer literário em tempos de ignomínia normalizada como instituição de governo.

A respeito dessa pluralidade narrativa, em jargão de crítica literária, diríamos que este é um modo de bem trabalhar com tensões e oscilações de tendências autodiegéticas, heterodiegéticas e homodiegéticas. Ou seja, com narradores que contam seus próprios feitos na condição de protagonistas; com narradores que contam feitos de outrem a uma relativa distância dos acontecimentos e com narradores que têm algum comprometimento com a história, embora dela tenham participado. Desse modo, em dínamo oscilante, dilata-se e amiúda-se a distância de empatia entre narrador e personagem, provocando um movimento de sentimento e experiência vital também no leitor. Vê-se, pois, que K. é construído a partir de uma eficientíssima pluralidade de pontos de vista narrativos e de gêneros literários, que movimentam-se nos meandros da recolha documental e a fabulação a serviço sempre de um resultado capaz de dar a ver a força da História. Assim, trata-se de uma multiplicidade que não serve ao delírio de invariância que caracteriza o grosso da narrativa pós-moderna. Tal variedade está amarrada ideologicamente fortemente pela presença grave e comprometida desta entidade que aqui chamamos de autor-narrador. Portanto um bom nome para essa peculiaridade estética do romance de Bernardo Kucinski é multiplicidade convergente, pois todas as versões apresentadas nos 29 fragmentos da obra convergem para uma verdade: o massacre articulado, sistêmico e institucional perpetrado pelo regime de terror da ditadura brasileira, o qual, de outra forma jamais seria com o mesmo teor de tensão revelado. Das suas virtualidades estéticas, pois, K. extrai a sua concretude política, que não deixa de ser uma aposta na força da História e na necessidade de que ela se construa como algo além do factual, exatamente para ser mais verdadeira. Estamos nas vizinhanças dos 50 anos do Golpe Militar de 1964 e K. deve ser visto como uma lição contemporânea acerca da vigilância relativa à compreensão do passado, nem que seja por meio do filtro da ficção. Esta, aliás, talvez a melhor forma de entender o massacre subjetivo dos regimes de exceção, uma vez que propõe uma leitura interpretativa da História não apenas a contrapelo, mas por dentro de seu obscuro bojo.

*Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. Poeta e crítico literário é autor, entre outros, de A nação drummondiana (7Letras, 2009).

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