Violência contra a mulher e a surdez kafkiana

Relatar traumas vividos tem efeito psíquico, pois ajuda a restaurar subjetividades; e político, ao expor feridas abertas da sociedade. Mas aí vem o escárnio, como no caso Gabriela Prioli: sintoma de que ouvir é difícil quando o dito nos implica

Imagem: Tânia Rêgo/Agência Brasil
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As primeiras páginas de O processo, de Franz Kafka, nos mandam notícias de um mundo que revela a falência da palavra. Quando se deu conta de que havia algo estranho acontecendo em sua pensão e que isso lhe dizia respeito, Josef K., nosso protagonista, imediatamente interpelou aqueles desconhecidos que o vigiavam e estavam prontos a detê-lo. Suas perguntas e seus protestos eram ouvidos, mas não eram escutados. Ameaça sair de seu aposento, mas é advertido, sendo questionado se não seria melhor ficar. Pergunta o motivo de sua detenção, mas escuta que isso não pode ser explicado naquele momento. Por fim, um daqueles responsáveis por sua detenção diz a Josef K. que logo perceberia que tudo aquilo era verdade. Não havia o que fazer.

A cena inicial da obra de Kafka é um absurdo. Josef K. não é impedido de falar, mas aquilo que fala não ressoa naquele que ouve. Diferentemente do que ocorre nos regimes explicitamente autoritários, em que a censura incide sobre a própria interdição da fala, nas primeiras páginas de O processo Josef K. não está submetido ao silêncio, pois não é impedido de falar, mas está submetido ao descrédito. Josef K. pode falar, mas aqueles que o escutam permanecem surdos diante de sua demanda, reconhecendo somente o que já haviam previamente definido como verdade.

Essa modalidade refinada de censura é frequentemente utilizada no Brasil para desacreditar as demandas e os protestos de minorias políticas, como, por exemplo, as mulheres. Aqui eu poderia me referir à ameaça covarde sofrida pela comediante Lívia La Gatto, mas também quero trazer para a conversa o desabafo da advogada Gabriela Prioli feito no mesmo final de semana. A advogada declarou ter sido vítima de abuso sexual aos sete anos de idade.

A declaração de Gabriela Prioli vale por vários motivos, mas quero destacar somente dois. Em primeiro lugar, ao falar publicamente sobre o abuso sexual sofrido durante a infância, a advogada estabelece uma conexão entre sua vida privada e sua vida pública, entre sua experiência individual e a experiência coletiva por aquelas que se reconhecem como mulheres. A declaração pode ter um duplo efeito: psíquico, ao possibilitar à Gabriela a capacidade de reintegrar, por meio da fala, aquilo que vivenciou de modo traumático; e político, escancarando uma ferida aberta em nossa cultura e que precisa ser transformada o mais rápido possível.

O segundo motivo não diz respeito diretamente à declaração, e sim aos comentários de alguns internautas. Cezare Nevi Razec questiona “Pq vem falar agora” (sic). Jônatas Kalashnikov avalia ser “estranho todas essas celebridade ser vítima de abusos” (sic). Marcos Gama sugere que “coloquem algo semelhante sob o viés masculino” (sic). Por fim, Emiliano Gomes Da Paixao Neto lacra em seu comentário dizendo que “Tá querendo ibop” (sic).

Os comentários revelam um dispositivo de censura que não nos é estranho. Vimos isso em nossa brevíssima e lúdica análise das primeiras páginas de O processo, de Kafka. Nenhum dos comentários mencionados mais acima interditam ou exigem o silêncio de Gabriela Prioli. Gabriela pode falar. Mas não é disso que se trata. Todos os comentários mencionados suspeitam da veracidade, suspendem a credibilidade, desconfiam das verdadeiras intenções da declaração da advogada.

Estamos falando de uma forma de censura que leva a pessoa a duvidar de suas próprias intenções e da veracidade dos fatos vivenciados. Com esse procedimento, a vítima não se sente capaz de reintegrar em sua vida afetiva as experiências traumáticas vivenciadas no passado. E essa sensação de incapacidade surge justamente diante das dificuldades encontradas para fazer sua voz ser reconhecida, não na intimidade de sua solidão, e sim diante do coletivo no espaço público. Sem esse reconhecimento público e coletivo, as experiências traumáticas encontram uma dificuldade muito maior para serem finalmente assimiladas.

Escutar experiências traumáticas não é uma tarefa fácil, ainda que você seja bem-intencionado. Imediatamente, nos colocamos a questão: o que eu tenho a ver com isso? Sou vítima como essa pessoa ou sou responsável pela violência sofrida por ela? Seja como for, a escuta é fundamental. Mas quando a escuta não é possível e a censura assume a forma da violência e da ameaça, é necessário entrar com um dispositivo à altura: a justiça. Se Gabriela Prioli merece ser escutada sem que a credibilidade de sua mensagem seja posta em questão, Lívia La Gatto merece que a justiça intervenha para que a violência não determine o fim da palavra.

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