Sonhos (e pesadelos) com o pós-pandemia

As grandes perguntas sobre o futuro nebuloso… Voltaremos para o que conhecíamos? Será melhor ou pior? Que exemplos temos? Haverá mais autoritarismo? Ou resgataremos o SUS e os direitos? Que mundo queremos, afinal?

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Por Rachel Moreno | Imagem: Sara Wong

Lavem as mãos, com água e sabão. Ou com álcool em gel. Fiquem em casa, em quarentena. Se tiver que ir para a rua, mantenha 1,5 a 2 metros de distância de outros cidadãos

São as instruções básicas que temos ouvido e lido em todo canto, vindo de familiares, amigos, conhecidos, a OMS e… algumas autoridades brasileiras (nem todas… como acontece, por exemplo, com a atitude e o discurso do presidente, que defende a quarentena apenas vertical – “só para os idosos” – e a volta de todos os demais ao trabalho, à escola, à rua, se contrapondo a alguns governadores, ao antigo ministro da saúde, e questionando até a legitimidade da própria OMS)

Mas… como serão os cuidados numa comunidade:

– com ruas estreitas?

– em moradias com muitos moradores?

– em local onde a água não chega, ou falta na hora do pico?

– com a falta do álcool gel e, quando ainda está à venda, o seu preço é caro, assim como o dos produtos de limpeza?

– para famílias que precisam sair para ganhar o dinheiro de cada dia, para comprar comida?

– para famílias de “trabalhadores em áreas essenciais”

– para quem tem que tomar ônibus? Como? Lotado? Ser tocado?

Importante lembrar mais uma vez que o SUS nos salvaria. Mas… e a EC 95 – “Emenda Constitucional do fim do mundo” – que não só reduziu, como congelou a verba do SUS por 20 anos…?!

Algumas dúvidas:

Mesmo os governadores que têm estimulado a quarentena fazem-no, excetuando o que chamam de “trabalhadores essenciais”.

Mas… Quem são mesmo os “trabalhadores essenciais”?

É o pessoal da área de saúde, se expondo, mesmo sem equipamento de segurança adequado e suficiente, sem testes, ou qualquer trabalho preventivo?

Recentemente, os recém-formados da área de saúde decidiram antecipar a sua entrada no trabalho, querendo ajudar a salvar vidas. Mas serão suficientes, com esta precariedade, sem a volta dos “Mais Médicos”, que estão dando uma aula de solidariedade internacional, indo, de Cuba, para onde eles seriam úteis? Ou, ainda, com o Conselho Nacional de Medicina se opondo à aceleração do processo do reconhecimento do diploma dos médicos brasileiros formados no exterior, como fizeram ante a tentativa do governador Dino?

Inclui-se também na lista dos “trabalhadores essenciais” os que trabalham com a limpeza dos hospitais, as caixas de supermercado, os motoristas, os trabalhadores de uber, os de coleta de lixo, varrição de ruas, as faxineiras, os coveiros etc.?

E, se faltam equipamentos de segurança aos médicos e enfermeiros, será melhor a situação destes trabalhadores?

Serão eles, de fato, “essenciais” ou… na verdade estarão sendo vistos como “descartáveis”?

Quem seriam os “descartáveis”?

Como considerar os trabalhadores precarizados, que têm que batalhar diariamente o pão de cada dia… Desde quando foram transformados nisso? Porque? Mais do que “empreendedores” não serão simplesmente “trabalhadores precarizados” e sem direitos?

Porque será que o Bolsonaro diz que apenas os idosos devem ficar em casa, mesmo se sabendo que a pandemia tem também atingido os jovens? Se reabrem-se as escolas para as crianças, quem tomará conta delas, se os pais estão na rua, trabalhando? As avós?

Estarão nesse caso os idosos a salvo da contaminação? Ou assim mais sujeitos a ela? Ou estará o Bolsonaro de olho na economia que assim faria da aposentadoria paga a esta população?

E a ciência? E a verba para pesquisas?

E as condições de sobrevivência da população mais carente?

Os inicialmente R$ 200,00, que a oposição conseguiu transformar em R$ 600,00 para os cadastrados, durará quanto tempo? Para quem? Não seria hora da “renda mínima” universal?

Seria justa a equação “MORRER DE FOME ou MORRER DE CORONA”?

Segundo que critério? A quem convém? Desde quando?

AS MULHERES

As mulheres têm sido a maioria dos trabalhadores da área de saúde (enfermeiras, médicas e outros). Mesmo ganhando menos, com o teto de vidro impedindo a ascensão profissional, etc.

Além disso, com a pandemia, elas têm sido responsáveis por mais cuidados em casa, além dos que já se incumbem “por amor”, ou por um salário de diarista… Ficar em casa, com os idosos e as crianças – além do eventual maridão – aumenta, em muito, o trabalho de cuidado.

Temos visto que a situação tem também levado a um aumento da violência de gênero e feminicídio. Numa situação em que a estrutura de denúncia e atendimento estão ainda mais precarizadas do que habitualmente.

SOLIDARIEDADE

Diante disso tudo, a sociedade se mobiliza. Quando dizemos “a sociedade”, estamos, na verdade, nos referindo aos movimentos sociais, que têm se mobilizado para fornecer cestas básicas, alimentação, produtos de higiene aos que vivem em situação mais precarizada…

Agora, as grandes fortunas… estas continuam não taxadas.

Os grandes devedores (e beneficiários) do governo… como tem ocorrido com as políticas públicas que beneficiam os bancos… chegaram a destinar algum recurso? Quanto destinaram? E quanto devem, em termos de impostos não pagos? Quanto mais faturaram?

É também de se notar que os que eventualmente doam algum valor, fazem disso intensa propaganda (afinal, a propaganda “é a alma do negócio”…)

QUARENTENA X VOLTA GRADUAL

Fala-se, adia-se, retoma-se a conversa sobre uma volta gradual e segura. Será mesmo gradual? De que forma? Será discutida com quem? Como criar fóruns?

Será observada/acompanhada de fato? Por quem?

Com volta às aula, ou rodízio? Quem fica com as crianças? Os avós?

E quem decide ou decidiu? Foi o Estado? Ou o Deus-Mercado?

Como será garantido o bem-estar social e a saúde de todos?

PÓS-CORONA, VOLTAREMOS PARA O MUNDO QUE CONHECEMOS?…

Muitos já afirmam que, pós-quarentena, e pós-corona, não voltaremos para o mundo como o conhecemos e deixamos.

Será ele igual, pior ou melhor? Depende de que? Depende de quem?

Como criar espaços para evoluir nesse debate? Não deveremos estar todos representados nessa discussão?

SE FOR UM MUNDO IGUAL, será como?

Com a mesma concentração de renda extrema em poucos milionários e muitos necessitados? Com desemprego crescente e estonteante? Com trabalho precarizado e sem representação sindical? Com carteira verde-e-amarela e perda de direitos sociais históricos?

E SE FOR UM MUNDO PIOR?

Não há pesadelo que não possa piorar…

O mundo encontrado pós-quarentena ou pós-pandemia, poderá ter — mais autoritarismo explícito

Pode ainda ser temperado por gerontofobia e pobrefobia… que morram os velhos e os pobres!!!

E pode, finalmente, aumentar o fosso da diferença social

UM OUTRO MUNDO (MELHOR) É POSSÍVEL..

Mas um mundo melhor também é possível.

Um mundo com resgate do SUS; da Seguridade Social; dos Direitos dos Trabalhadores; da solidariedade; da igualdade.

Um mundo com uma jornada de trabalho reduzida, já que entramos na 4ª revolução industrial e, graças ao trabalho de todos nós, temos agora máquinas inteligentes, que podem se incumbir de boa parte do trabalho, liberando-nos parte da jornada, sem prejuizo de nossa remuneração.

Já não cabe crescer ao infinito, às custas da exploração dos trabalhadores e do desequilíbrio da natureza.

Interessante trazer aqui um manifesto, escrito por 170 acadêmicos holandeses , contendo cinco pontos para a mudança econômica pós-crise da covid-19, baseado nos princípios do decrescimento… Estes seriam:

1. Passar de uma economia focada no crescimento do PIB, a diferenciar entre setores que podem crescer e requerem investimentos (setores públicos críticos, energias limpas, educação, saúde) e setores que devem decrescer radicalmente (petróleo, gás, mineração, publicidade, etc.).

2. Construir uma estrutura econômica baseada na redistribuição. Que estabelece uma renda básica universal, um sistema universal de serviços públicos, um forte imposto sobre a renda, ao lucro e à riqueza, horários de trabalho reduzidos e trabalhos compartilhados, e que reconhece os trabalhos de cuidado.

3. Transformar a agricultura para uma regenerativa. Baseada na conservação da biodiversidade, sustentável e baseada em produção local e vegetariana, ademais de condições de emprego e salário justas.

4. Reduzir o consumo e as viagens. Com uma drástica mudança de viagens luxuosas e de consumo desenfreado, a um consumo e viagens básicas, necessárias, sustentáveis e satisfatórios.

5. Cancelamento da dívida. Especialmente de trabalhadores e donos de pequenos negócios, assim como de países do Sul Global (tanto a dívida a países como a instituições financeiras internacionais).

Parece interessante? A mim, sim… De quem depende?

Depende de nós: trabalhadores, precarizados ou não, mulheres, negros, LGBTs, MST, Movimentos sociais, população consciente, povo organizado… Começar a pensar, a conversar a respeito, a discutir…

Isso porque vivemos hoje em uma sociedade doente. Essa doença tem um nome simples: ‘desigualdade extrema’, além de intensa e desenfreada exploração da natureza, levando ao seu desequilíbrio.

UM MUNDO MELHOR, COMO SERIA…?

Lendo o manifesto acima, e trocando-o em miúdos, um mundo melhor passaria por…

– Acesso ao trabalho necessário e reduzido

– Descobertas, tecnologias novas, beneficiando a todos igualmente (inclusive financeiramente e com relação a tempo de trabalho)

– Onde todos tenham acesso e condições para uma boa moradia para todos; num bom lugar; com renda básica para todos para roupa, comida, lazer; com acesso à educação pública – gratuita e de qualidade para TODOS ; com acesso à saúde pública, universal e de qualidade para TODOS, onde Saúde seja vista como um impulsionador civilizatório, e um direito, não um peso para o equilíbrio fiscal; com acesso e usufruto à cultura e aos incentivos à produção artística; com acesso e disponibilidade ao lazer e tempo livre

E, particularmente,com informação para todos e acompanhamento sobre a importância do equilíbrio do meio-ambiente, incluindo o tratamento dos resíduos sólidos; tratamento de recicláveis; fabricação de produtos bio-degradáveis; fim dos agrotóxicos; alimentação saudável; preservação da natureza; acesso à água, como direito e não mercadoria, preservação e respeito às necessidades da natureza.

E com ação ativa de todos para restabelecer o seu equilíbrio, bem como com respeito aos Direitos da Natureza e de todas as espécies (animais e vegetais)

Este processo aponta também para a importância de democracia plena, e com igualdade econômica e política entre todos (sem igualdade econômica, mesmo que relativa, não há como poderia ser democracia plena)

AFINAL, QUE MUNDO, E QUE VALORES, QUEREMOS?

– Niterói (RJ) produziu um folheto dando instruções efetivamente pertinentes à população de rua, e à população que vai à rua. Adequadas e pertinentes.

– A favela de Paraisópolis, inscrustrada no Morumbi (SP), deu aula cívica de planejamento. Chamou médicos, passou uma perua dando instruções específicas para a comunidade, decidiu utilizar as escolas para hospedar os afetados pelo covid-19, elegeu um presidente de cada rua, para saber melhor as necessidades e conveniências, treinou parte da população para dar os cuidados básicos de saúde, para os necessitados disso.

– Nossos “parentes” indígenas já há tempo nos alertam – teorica e praticamente – sobre a importância sobre a preservação e o equilíbrio da natureza.

Temos muito a aprender, uns com os outros.

Ajudem a pensar, a saber, a fazer. A palavra está com vocês…

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2 comentários para "Sonhos (e pesadelos) com o pós-pandemia"

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