Solarpunk: a ficção brota das cinzas da distopia

Nova corrente literária fertiliza o imaginário com mundos em que o humano, perpassado por outras espécies e toda a natureza, nem sempre é o protagonista. Ao enterrar o pessimismo melancólico, faz da escrita um ofício ecopolítico

Imagem: Marcel Mosqi
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Por Lynne Feeley em The Nation | Tradução: Maurício Ayer

No dia em que o landrus chega, as pessoas não fazem nada. Já viveram dias assim anteriormente, quando animais desconhecidos apareceram nos arredores da cidade. Algumas são espécies que de alguma forma retornaram da extinção; outras são mutações que chegaram à cidade a partir de depósitos de lixo nuclear. Mas todos eles, nas palavras do povo da cidade, são “parentes”. Muitos anos antes, o povo concordou por “decisão coletiva” em não matar nenhum parente cuja intenção parecesse inofensiva, então enquanto o landrus está achatando as plantações do povo ao arrastar seu corpo de morsa do riacho para os campos, destruindo plantações e condenando pessoas a um inverno de fome, é claro que o animal não representa nenhum mal. Então eles assistem, projetam e fazem reuniões sobre o assunto, mas não o expulsam da cidade, não o detêm e não o caçam.

Logo fica claro que todo o achatamento dos campos é para fins de nidificação. O landrus solitário está preparando um terreno fértil. Uma centena de landruses grávidas estão chegando, mas para chegar ao terreno fértil elas precisarão da ajuda do povo para atravessar um trecho de asfalto intransitável e irregular. O debate se intensifica e as tendências começam a se formar: ajudar as landruses a atravessar, deixá-las à própria sorte ou expulsá-las. Mas não importa, porque enquanto os adultos estão se reunindo, seus filhos já agiram. Eles construíram uma ponte de neve para ajudar as landruses, mesmo que isso signifique que as pessoas venham a ser deslocadas da cidade.

Este é o arco do conto de Phoebe Wagner “Children of Asphalt”, que apareceu na antologia de 2021 Multispecies Cities: Solarpunk Urban Futures. Como uma obra de ficção solarpunk, a história se passa em um mundo onde a cooperação e a ajuda mútua substituíram o implacável interesse próprio do capitalismo, e onde a definitiva dicotomia – e hierarquia – entre os humanos e o mundo não humano se dissolveu. A história de Wagner é um exemplo especialmente engenhoso de solarpunk na forma como joga com as expectativas dos leitores: se isso fosse uma obra de realismo, os landruses seriam mortos, ou dissecados, ou criados, ou mantidos em um zoológico, ou monetizados de alguma outra maneira. (Quando apresentei essa história em uma aula de “ficção climática”, um aluno tinha certeza de que um empresário faria chapéus de pele de landrus.) Mas as pessoas não fazem nada disso, e quando os adultos se aproximam, as crianças os mantêm sob controle. A cada expectativa que a história traz ao leitor, só para frustrá-lo depois, Wagner esclarece a diferença entre um futuro solarpunk e nosso presente capitalista.

Em sua nova coleção de ensaios Death by Landscape, a romancista e ensaísta Elvia Wilk dedica um ensaio à política da ficção solarpunk. Embora o solarpunk seja “construído sobre uma compreensão clara do presente distópico”, particularmente a distribuição desigual da distopia climática de acordo com classe, nacionalidade e raça, ainda assim é “curiosamente otimista” sobre nosso futuro planetário. Ele oferece uma imagem de um futuro ecologicamente enredado e abundante, onde o igualitarismo radical se estende na e além da espécie humana. Como afirmam os vários manifestos solarpunk que circulam pela internet, a única coisa que a ficção solarpunk não pode ser é distópica. Esses manifestos também afirmam que, embora o solarpunk seja visível atualmente em ficções como o conto de Wagner, seus criadores estão envolvidos em soluções práticas e imediatas para a crise climática. As histórias podem ser especulativas, mas os mundos que constroem são apresentados como plausíveis. Para Wilk, o propósito e a promessa do solarpunk é “preencher o vão de plausibilidade” entre nosso presente distópico e um futuro não distópico – entre chapéus de pele de landrus e crianças dispostas a ceder a cidade – “expandindo o imaginário estético”.

A ficção solarpunk está entre uma constelação de obras literárias que atraem a atenção de Wilk por seus imaginários expandidos sobre a vida durante e após a crise climática. O ponto de partida de Wilk é que a crise climática revelou certos fatos ecológicos: a interdependência de todas as espécies, a porosidade dos corpos, a falsa separação entre a humanidade e o resto do mundo não humano e a falsa exaltação dos modos humanos de conhecer. O interesse de Wilk está em obras de literatura e arte que tomam esses fatos ecológicos como seus conceitos narrativos. Seu livro cataloga um importante e crescente corpo de literatura que tradicionalmente não apareceria sob a bandeira da “escrita da natureza” ou “literatura ambiental”, mas que é fundamentalmente ecológica no que permite em seus universos ficcionais: o borrão, o apodrecimento, a fusão e os enxertos que caracterizam a vida de uma perspectiva ecológica.

Há, então, histórias de mulheres que são transformadas em plantas (“Death by Landscape”, de Margaret Atwood), e histórias de plantas que têm consciência (The Plants Are Watching), histórias de pessoas se desfazendo em um composto orgânico (Paradise Rot de Jenny Hval) e histórias de pessoas se entregando a buracos negros (As She Climbed Across the Table). Histórias desses tipos são “bizarras” tal como Mark Fisher, um dos principais interlocutores de Wilk, define o termo: como aquilo que “está além da percepção, cognição e experiência padrão”. Mas elas não são bizarras nem falsas do ponto de vista ecológico. São ficções especulativas que, de certa forma – pelo menos na forma dos “fatos ecológicos” –, mais reais que o realismo.

Wilk se recusa a discutir seu arquivo literário em termos de gênero, no entanto, efetivamente cada ensaio foca em, digamos, um conjunto de textos que compartilham conceitos narrativos básicos a refletir um princípio ecológico. Surgem agrupamentos brutos. O primeiro ensaio da coleção, por exemplo, é dedicado ao que ela chama de “romance de ecossistemas”. O nome é um recorte dos assim chamados “romances de sistemas”, em que a figura de um herói se encontra enredada em sistemas sociopolíticos, econômicos ou tecnológicos maiores. Os romances sistêmicos de Pynchon, DeLillo e outros podem desfazer o que Amitov Ghosh chama de “história de aventura moral individual” ao enredar seus protagonistas em sistemas maiores, mas, de acordo com Wilk, eles ainda mantêm a distinção entre o reino humano e o reino ecológico. E em vez de desafiar a distinção binária entre figura e fundo – dicotomia que Wilk considera especialmente insustentável na era da crise climática – os romances de sistemas acabam por reforçar essa distinção (ecologicamente falsa). “Em livros sobre sistemas, os homens tendem a emergir do pano de fundo em vez de se fundir nele”, escreve Wilk.

O romance de ecossistemas, ao contrário, não “foca na história de uma pessoa tendo como pano de fundo o mundo”, explica Wilks. Em vez disso, toma como seu o conceito de que “o humano não é um elemento autocontido, mas sim completamente inseparável de todos os outros organismos, tanto em nível micro quanto macro”, e se esforça para contar uma história que corresponda a essa verdade. Além das histórias de mulheres-que-viram-plantas que abrem o ensaio, Wilk lista The Overstory de Richard Powers (2018),The Need de Helen Philips (2019) e Occupy Me de Tricia Sullivan (de 2016) como exemplos de narrativas que retratam “dependências ecológicas” e “insistem que figura e solo não são distintos um do outro”. O próprio romance de Wilk, Oval, publicado em 2019, faz uma tentativa semelhante de borrar esses limites, com sua ecovila situada no topo de uma montanha artificial que tem mente e corpo próprios. A discussão de Wilk sobre as limitações do romance de sistemas sugere que o romance de ecossistemas, em seu primeiro plano do enredamento original de todas as criaturas, pode capturar melhor “o que significa ser uma pessoa em uma era de drástico declínio ecossistêmico – de extinção planetária”.

Wilk também examina narrativas às vezes rotuladas como New Weird (Neo-bizarras), uma área da ficção científica na qual os impulsos de outro mundo de escritores como Lovecraft são atualizados de tal forma que a ocorrência bizarra é tratada não como “esquisita ou assustadora”, mas simplesmente como evidência de que a nossa experiência cotidiana da consciência é restrita ou achatada – até que, de repente, deixa de ser. Annihilation de Jeff Vander Meer serve como exemplo. No entanto, o ensaio de Wilk faz a notável observação de que talvez o New Weird não seja tão novo, no fim das contas: Wilk junta sua discussão sobre Annihilation com leituras de obras do misticismo cristão do período medieval em que as autoras acessam os níveis mais elevados da consciência humana e o amor divino através de atos de extrema autonegação. É por meio desse pareamento do contemporâneo e do medieval que Wilk é capaz não apenas de caracterizar formas de conhecimento que fogem dos limites de nossa visão superficial e restrita de racionalidade, mas também de começar a esboçar uma história de mais longo curso dessas epistemologias alternativas.

Na minha opinião, Wilk não leva até onde poderia essa percepção de que a “nova” consciência de fatos ecológicos, como interdependência, porosidade, falta de integridade e controle do corpo e os limites da consciência humana, representa menos uma descoberta desses princípios e mais uma generalização deles. Certamente, sempre houve pessoas cujas experiências vividas e obras literárias não permitiram que esses fatos ecológicos desaparecessem de vista, e é provável que algum privilégio esteja em jogo quando esses princípios são amplamente esquecidos.

O aparecimento de místicos medievais em um ensaio sobre o New Weird levanta a ideia de que os insights ecológicos que Wilk acompanha na ficção contemporânea têm uma história muito mais longa, e levanta a perspectiva de um tipo totalmente diferente de história cultural – uma história de escritores e artistas que estavam trabalhando com o ponto de vista ecológico muito antes da crise climática tornar muito difícil para algumas pessoas o negarem.

No entanto, o relato de Wilk faz parecer que estamos vendo uma onda de literatura contemporânea que está trabalhando a partir de uma metafísica ecológica. Wilk escreve que essas obras desafiam as formas literárias ocidentais tradicionais, particularmente em seu esforço para acabar com a figura humana singular contra um pano de fundo estático e sem sentido. De certa forma, essas estratégias narrativas parecem perfeitamente alinhadas com as revelações ecológicas e metafísicas do Antropoceno. Mas em certa perspectiva também parecem estar em desalinho com as revelações históricas disso – ou seja, que um subgrupo de humanos levou o planeta à beira da catástrofe porque durante séculos foi capaz de negar ou evitar fatos ecológicos.

Em alguns círculos climáticos, há uma tendência a deixar de falar da “humanidade” como responsável pela crise climática para falar do capitalismo, ou mesmo de corporações e indivíduos específicos, como culpados. A crítica Kate Aronoff, por exemplo, nos convida a citar nomes: “Nós” não causamos distúrbios climáticos; ExxonMobil, sim. Em narrativas desse tipo, embora não ficcionais, o impulso é precisamente o de resgatar a forma narrativa “figura-fundo” distinguindo-a dessa maneira historicamente falsa de contar a história, como se um vasto número de humanos indiferenciados desempenhasse papéis iguais no drama.

As narrativas discutidas por Wilk capturam e manifestam algo sobre a ecologia que se perde na história da “aventura moral individual”, mas não devemos perder de vista o fato de que suficientes riqueza e poder podem produzir vidas capazes de, ao menos parcialmente, eliminar algumas das restrições de um mundo interconectado. Se uma maneira de descrever a crise climática é como o lugar onde fato ecológico e fato histórico entram em conflito e atritam até a medula, então parece que, se resta algum valor de uso para a estrutura narrativa “figura-fundo”, é focar exatamente em como alguns indivíduos se moveram ao longo da história não como heróis da cultura, mas como vilões do clima.

Há vários ensaios em Death by Landscape em que a figura de Wilk é destacada. “Extinction Burst”, por exemplo, descreve a experiência de Wilk com a terapia de dessensibilização e reprocessamento de movimentos oculares (EMDR), um tratamento para transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) que considera o estresse traumático como um fenômeno fisiológico e usa o movimento dos olhos para mover memórias traumáticas de um hemisfério do cérebro para o outro. “Ask Before You Bite” segue Wilk enquanto ela participa de uma noite de dramatização de ação ao vivo (LARP) e revela o objetivo profundo das comunidades progressistas de LARP de criar um mundo no qual as regras de engajamento, particularmente em torno do consentimento, sejam explicitamente formuladas e definidas proativamente, obtendo, para Wilk, o efeito de maximizar a liberdade e minimizar os danos. Há ensinamentos nesses ensaios sobre como criar novos tipos de narrativas para a era da crise climática que as ligam vagamente às outras da coleção; mas o que fica são essas pequenas joias brutais de imagens, a Wilk cuja involuntária resposta traumática ao estresse é adormecer de repente, a Wilk que recebe um tapa consensual de um estranho em um desafio em um LARP nórdico. Nesses ensaios, são as idiossincrasias da vida cotidiana, tão profundamente estranhas, observadas com lucidez, que expandem nosso senso do belo e do possível, sem necessidade de landruses.

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