Reforma Tributária solidária, saudável e sustentável

Assinado por mais de 70 organizações, manifesto pede taxação de produtos nocivos à saúde – como agrotóxicos, que escapam da “reforma” em tramitação. E propõe destinar recursos ao SUS, para enfrentar seu subfinanciamento

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Por Eduardo Lima, na Le Monde Diplomatique Brasil

A reforma tributária não sai do noticiário nesse primeiro ano do terceiro mandato presidencial de Lula. Depois de quase três décadas e inúmeros governos tentando tirar algum projeto de mudança do sistema tributário do papel, agora a aprovação da PEC 45/2019 é uma das principais agendas do governo Lula. O principal trunfo da proposta é simplificar o sistema de tributos do Brasil, substituindo cinco impostos diferentes (PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS) por um único tributo, o novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).

Além do IBS, a proposta de emenda constitucional trata do Imposto Seletivo, uma ferramenta que pretende desestimular o consumo de produtos com externalidades negativas, ou seja, que trazem custos indesejados para a sociedade, como produtos prejudiciais ao meio ambiente. É uma proposta excelente, no papel. Porém, não está sendo seguida à risca.

Uma mudança de última hora na PEC realizada no dia em que foi votada na Câmara protegeu agrotóxicos do Imposto Seletivo. Esses produtos, prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, podem ter sua tributação reduzida em até 60%, segundo estimativa da Folha de S.Paulo. Os alimentos ultraprocessados também podem acabar escapando da cobrança.

Em março de 2023, diversas organizações da sociedade civil se uniram para desenhar propostas para uma reforma tributária mais justa. O Manifesto por uma Reforma Tributária 3S, assinado por mais de 70 organizações, propõe uma transformação do sistema de impostos brasileiro que leve em conta a saúde da população, um tratamento sustentável do meio ambiente e um aspecto solidário e progressivo na taxação, diminuindo a desigualdade.

Dever constitucional

O Imposto sobre Grandes Fortunas é a única ferramenta tributária prevista na Constituição (artigo 153, VII) que até hoje não foi posta em prática. O sistema tributário atual impede a aplicação da Constituição Federal. Como garantir, por exemplo, o direito à alimentação adequada se as distorções da cobrança dos impostos “fazem com que, no final da cadeia produtiva, os alimentos saudáveis acabam pagando mais impostos do que os alimentos ultraprocessados”? Essa pergunta é da Paula Johns, da ACT Promoção da Saúde.

Corrigir as distorções de um sistema tributário complicado e convoluto, que Marcos Woortmann, do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS Brasil) caracteriza como “um recorte de exceções, muito mais do que um código de fato”, está no cerne de muitas das propostas da Reforma Tributária 3S. Atualmente, a cesta básica em São Paulo conta com produtos ultraprocessados, como salsicha. Escolher bem o que deve ser taxado, e como, é uma maneira de melhorar a saúde da população. Não é, como explica Paula, um benefício que você enxerga imediatamente ou facilmente. A taxação de produtos nocivos à saúde no fim se reflete em “quantas pessoas eu deixei de tratar no hospital porque elas deixaram de fumar, ou se alimentam melhor, ou fazem atividade física, ou não consomem tanto álcool”. É uma economia futura para os cofres públicos e, consequentemente, para o bolso do contribuinte.

O custo de um produto não acaba na fábrica. Um cigarro, por exemplo, vai ter seu custo de produção e, algumas décadas depois, vai provavelmente ter um custo social em forma de problema de saúde adquirido pelo fumante. Quem vai pagar essa parte do produto não é o fabricante do cigarro, e sim o imposto de cada um, financiando o sistema de saúde público. Isso é uma externalidade negativa: um custo não assumido pelo produtor e que escapa às relações puramente econômicas para afetar a sociedade como um todo.

Entendendo o conceito de externalidade negativa, fica mais fácil compreender a importância de um imposto seletivo. Essa taxação de produtos escolhidos pelas autoridades sanitárias e com base em evidências científicas, ajuda a combater as externalidades e “diminuir o tributo de demais produtos e mercadorias, porque você tem uma compensação na arrecadação”. Paula ainda explica que a seleção de quais insumos serão taxados seletivamente não pode ser uma escolha política, suscetível a lobbies de empresas. 

Quando essa escolha segue interesses privados, acontecem distorções. Esse é o caso dos agrotóxicos, que foram excluídos da proposta e que, hoje, “têm isenção de importação, de produção, de comercialização e para determinados segmentos gera-se crédito tributário a partir do custo do agrotóxico”, como explica Marcos. “Basicamente, só falta o governo colocar na cesta básica”. Assim, se perpetua um sistema onde as empresas lucram “às custas das enfermidades dos outros”, nas palavras da Paula. 

Uma pesquisa encomendada pela ACT para a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) mostra que, com um imposto seletivo sobre bebidas açucaradas, uma arrecadação anual mínima de R$4,7 bilhões pode ser vinculada diretamente para o investimento em saúde. Esse imposto seletivo também poderia ser usado para diminuir a alíquota do IVA, o Imposto sobre Valor Agregado proposto na reforma tributária. Com uma alíquota menor, os impostos sobre consumo ficam menos pesados no orçamento da população mais pobre, e a regressividade do sistema tributário brasileiro diminui. Taxar ultraprocessados é bom para a saúde e para a justiça social. 

Incentivos 

Se a reforma tributária é uma forma de aplicar o modelo de país da Constituição, não dá para continuar distribuindo incentivos fiscais a agrotóxicos e petróleo, por exemplo. Externalidades positivas são benefícios para a sociedade que podem surgir de uma relação econômica. Uma das propostas da Reforma Tributária 3S é que a taxação seja guiada por princípios como o de “poluidor-pagador”. “Se nós temos uma atividade econômica que nós não desejamos que seja o futuro do país, mas é um ponto presente, tem que pagar mais”, explica Marcos. O contrário disso é o princípio de “protetor-recebedor”: quem gera externalidade positiva deve ser recompensado por isso. Um exemplo, que já acontece no Brasil, é o programa Bolsa Floresta, no estado do Amazonas, que gera compensação financeira para quem protege a Amazônia.

Outra proposta é uma espécie de classificação das atividades econômicas de acordo com seus impactos ambientais e sociais. Essa classificação seria usada para decisões estratégicas e para basear o que taxar e o que subsidiar, como “aquelas atividades econômicas produtivas e positivas em seu impacto”. Um dos exemplos dados por Marcos Woortmann é o da agrofloresta, que “recupera solos, infiltra água nos aquíferos, preserva os aquíferos, gera emprego e renda e gera saúde a partir de alimentos nutricionalmente positivos”. 

Por um sistema tributário mais progressivo 

“O sistema tributário garante os recursos para que o Estado forneça políticas públicas”, explica didaticamente Jefferson Nascimento, da Oxfam Brasil. Como os impostos são organizados condiciona como podem ser aplicadas as políticas de um governo. O sistema tributário brasileiro atual é caracterizado como regressivo. Isso quer dizer, nas palavras de Jefferson, que “quanto menor a sua renda, mais imposto você paga proporcionalmente”.

O imposto sobre bens e consumo tem um peso muito alto na carga tributária brasileira. Como esse tipo de tributo funciona com uma mesma alíquota independentemente da renda, uma pessoa que ganha um salário mínimo vai acabar pagando, proporcionalmente, muito mais imposto numa ida ao mercado do que uma pessoa que ganha R$100 mil mensais. 

A segunda parte da reforma tributária, a ser proposta pelo governo federal, pretende mudar o sistema de imposto de renda brasileiro. Para diminuir o peso dos impostos indiretos sobre os mais pobres, é preciso aumentar a participação do imposto sobre a renda na carga tributária.

“O Brasil já teve imposto de renda com alíquota de 45% nas faixas mais elevadas. Hoje, a faixa com alíquota máxima é de 27,5%”, explica Jefferson. Uma mudança no pensamento econômico mundial, em meados da década de 1980, influenciou essa mudança no esquema de tributação no mundo todo. Os ricos foram menos taxados, e se esperou que isso gerasse mais crescimento econômico. O que aconteceu, na verdade, foi que nas últimas cinco décadas “a concentração de renda disparou”.

Alíquotas que não mudam e uma faixa de isenção que estava congelada desde 2015 e só foi atualizada recentemente fazem com que o sistema tributário brasileiro perca sua progressividade. Isso fica visível quando, como explica Jefferson, o Imposto de Renda “cobra a mesma alíquota [máxima] para quem ganha R$ 5 mil e quem ganha R$ 100 mil”. 

Fugindo do fisco 

Pelo menos quem tem a renda muito grande precisa pagar quase ¼ dela como imposto, certo? Não exatamente. Hoje, “quem tem rendas muito altas não paga nem 27,5%”, de acordo com Jefferson. Mas como? 

Diversos mecanismos são utilizados pelos brasileiros mais ricos para não pagar o tanto de imposto que deveriam. Uma dessas estratégias para escapar do leão do fisco é o recebimento de renda via lucros e dividendos, dos quais não são cobrados impostos na pessoa física desde 1996. No ano passado, isso significou R$ 556 bilhões que simplesmente não foram taxados. 

“Quando você pega desse valor”, explica Jefferson, “as pessoas do 1% mais rico do Brasil receberam 411 bilhões de reais.” A concentração de renda só cresce, e os 27,5% que deveriam ser pagos não são arrecadados. 

Além das injustiças na tributação da renda, o patrimônio dos mais ricos também passa muitas vezes intacto pelo fisco. O Imposto sobre Grandes Fortunas previsto na Constituição não foi regulamentado, mesmo 35 anos depois. “O Estado está com falta de recurso […] e a gente está abrindo mão de receber de uma fonte que está prevista na Constituição”, afirma Jefferson. 

Esse novo imposto não seria uma mudança tão grande no sistema tributário do país, pelo menos em escala. Jefferson explica que “várias estimativas falam que [o Imposto sobre Grandes Fortunas] abrangeria um universo de cerca de menos de 5 mil pessoas no Brasil”, só fortunas grandes mesmo. Se uma taxação sobre os grandes patrimônios fosse instituída, com alíquotas entre 0,5% e 2,5%, o Estado poderia arrecadar entre R$ 30 e 35 bilhões, suficiente para custear parte do Bolsa Família. 

O medo de uma fuga das grandes fortunas poderia ser justificável “se o Brasil não fosse uma exceção”, como explica Jefferson. No caso do imposto de renda, “o Brasil está abaixo da média da OCDE”. Se queremos tanto entrar no “clube dos países ricos”, talvez esteja na hora de começar a taxar como eles. 

Eduardo Lima faz parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil

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