Povos indígenas: poderá a saúde ser decolonial?

Pesquisadores reconhecem, no Abrascão, que não será possível avançar na Saúde Indígena sem garantir o respeito aos saberes tradicionais em seus territórios. E querem aplicar práticas integrativas para toda a população. Mas como fazê-lo?

Pataxós marcaram presença no 13º Congresso de Saúde Coletiva
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Desde a sua vitória nas eleições do dia 30 de outubro, especialistas passaram a discutir o primeiro grande desafio de Lula na presidência: governar com o Orçamento 2023 elaborado pela equipe do atual presidente, Jair Bolsonaro. Pouco antes do segundo turno, foram expostos novos cortes de verba massivos, especialmente na área da Saúde – especificamente na Farmácia Popular e na Saúde Indígena. Essa última tem sido um tema de intenso debate entre pesquisadores da Saúde Coletiva e ambientalistas, dada a urgência de retomar políticas de conservação ambiental, fiscalização das demarcações de Terras Indígenas e o atendimento a essas populações, muito vulnerabilizadas após a pandemia de covid-19. 

Pensar a Saúde Indígena é complexo e exige elaborar, por exemplo, estratégias de atendimento em áreas de difícil acesso. Mas a complexidade aumenta também pela necessidade de disponibilizar o atendimento e, ao mesmo tempo, respeitar saberes e práticas de saúde tradicionais. Esse foi o tema discutido no painel Os saberes tradicionais e populares e as Práticas Integrativas e Complementares em Saúde, que ocorreu no 13º Congresso de Saúde Coletiva, em Salvador, na terça-feira, 22/11. 

Na década de 1960, a geração do pós-guerra começou a pensar alternativas de saúde e cuidado, em contraponto a um modelo hospitalocêntrico fortemente estabelecido – e que prevalece até hoje. “Jovens de classe média passaram a pensar nas possibilidades de mudança”, conta Nelson Filice de Barros, sociólogo e especialista em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Desses novos profissionais, uma parte viu uma oportunidade de negócio nos saberes medicinais, enquanto outros enxergaram a possibilidade de criar novas políticas públicas para torná-los disponíveis a todos. 

“Para estarmos aqui, acertamos mais do que erramos nas nossas técnicas de cuidado”, afirma Nelson, mas acrescenta: Não incorporamos outras técnicas clínicas nesse sistema do cuidado. Fazer um método desaparecer no outro é enfraquecer o programa de Saúde. Precisamos produzir e manter a diferença, como riqueza e não como problema”, declara. O sociólogo admite que a chamada clínica integrativa, isto é, a ampliação do cuidado com a manutenção das diferenças, ainda é um desafio pela sua complexidade. 

Um dos primeiros obstáculos para pensar a integração é o descolamento total da natureza e a “desterritorialização”, isto é, a falta de noção sobre os territórios que habitamos e o que neles ocorre. “Não se pode usar a perspectiva da racionalidade e da biomedicina nas culturas em que certos conceitos não são aplicados”, argumenta Islândia Carvalho de Sousa, pesquisadora titular da Fiocruz de Pernambuco. No Guarani, por exemplo, não existe a palavra “corpo”, mas apenas o equivalente a palavra “pessoa” do português; corpo e mente são uma coisa só. Para diversos povos indígenas, a saúde está intrinsecamente ligada ao cuidado coletivo entre os diferentes membros da aldeia. 

Durante o Brasil Império, entre 1822-1889, muitas práticas ligadas aos saberes dos povos indígenas foram proibidas e perseguidas, acusadas de “apropriação” das práticas farmacêuticas. Em 1890, o decreto 847 proibiu “saberes homeopáticos”.  “Até pouco tempo, o Estado caçava e destruía esses conhecimentos”, lembrou Daniel Amado, gestor de políticas e projetos de Práticas Integrativas pela Fiocruz/DF e ex-coordenador da área no Ministério da Saúde. “Mulheres foram queimadas por fazer remédios com ervas medicinais. Nesse contexto, os povos originários foram brutalmente perseguidos”, afirma. 

Potentes, as práticas tradicionais nunca deixaram de existir, mesmo com anos de perseguição. “Nós somos pós-graduados em vencer pandemias. Há mais de 500 anos que trabalhamos com isso”, afirmou Ubiraci Pataxó, da reserva indígena de Coroa Vermelha, no sul da Bahia  “A biomedicina começou faz um tempo. Mas nossa história não começou com a chegada dos portugueses”. Ubiraci é terapeuta comunitário e aprendiz de pajé. Disse que sempre estranhou o fato de que, na medicina convencional, mesmo após seis anos de estudo, ainda é necessário fazer uma especialização em áreas como “medicina da família” para tornar-se, em suas palavras, “humano”. “Estudamos Lacan, Freud, Jung… eu fico pensando quantos nomes com esse peso não teriam saído de terras indígenas”, provocou. 

Há uma diferença entre práticas integrativas e complementares e os saberes populares. Enquanto a primeira é feita por profissionais da saúde, a segunda ocorre nos territórios de uma determinada população ou comunidade. Amado criticou o que chamou de “método colonizante” de abordagem pelo sistema de saúde nos territórios indígenas. “A comunidade reconhece determinados saberes para cuidar de seu povo dentro de um território. Isso deve ser respeitado”, e propõe que, para isso, o Estado deve “mudar a lógica de cuidado do Sistema”. Esse processo, segundo ele, vem ocorrendo desde 2006 com as primeiras implementações de políticas nesse sentido dentro do SUS. 

As chamadas práticas integrativas, porém, não podem se perpetuar na ausência do atendimento à saúde em determinado território. Tampouco podem ser espoliativas, isto é, oferecidas como “conforto” em áreas extremamente vulnerabilizadas e violentas. Nesse contexto, os especialistas defenderam que sejam formados mais agentes de saúde nos próprios locais onde estes atuam. “Não faz sentido insistir em aplicar uma técnica chinesa, por exemplo, em uma favela de Salvador. Nessas áreas estão as curandeiras, as rezadeiras. É preciso observar quem já atua no local”, alertou Ubiraci. Os presentes lembraram que saúde para todos também significa trazer cuidadores com outros saberes.

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