Avanços e percalços dos sem-teto em São Paulo

 

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Por Suzanna Ferreira

Passavam carros, passava gente. Passava rato, passava nada. Passava dor, passava choro. Passou barata, cama, passou criança… Entre tantos prédios, eis uma velha realidade, passada e atual, que carrega três décadas de luta de 130 mil famílias que, segundo a Secretaria municipal de Habitação, não possuem lugar para morar em São Paulo, uma das cidades mais ricas do mundo.

Agora, imagine que entre essas famílias existem em média duas a três crianças ou jovens, que desde cedo recebem o seu não-direito de morar. Enquanto isso, o IBGE garante que aproximadamente 290 mil imóveis permenecem abandonados na capital.

Os movimentos de moradia surgiram em meados da década de 1980 para mobilizar cidadãos que frequentemente eram despejados dos cortiços da cidade devido às altas taxas de IPTU, água e luz cobradas pelos proprietários. As contas impossibilitavam a permanência de familias de baixa renda, que ganham até tres salários mínimos.

Há muitas organizações sem-teto na capital. Algumas delas possuem regras comum—por exemplo, o Movimento de Moradia do Centro (MMC) e a Frente de Luta por Moradia (FLM), que exigem de seus militantes assuidade às assembleias e a proíbem terminantemente o consumo de drogas ou álcool. As normas são afixadas em cada uma das ocupações, como a localizada no cruzamente das avenidas Ipiranga e São João, no Centro da cidade. Cartazes afixados logo na entrada esclarecem: “Não é permitida a entrada de moradores alcoolizados” ou “Não é permitida a saída de crianças desacompanhadas de adultos”. Outra mensagem ainda sugere aos moradores que não saiam para fazer compras no supermercado sem trazer algo para o coletivo. Devido ao espírito de comunidade, não falta comida. As refeições são compartilhadas numa cozinha comunitária, e as funções de cada um são definidas logo no primeiro dia de ocupação. Para os reparos técnicos de luz ou água, os próprios moradores que possuem conhecimento na área se encarregam do serviço.

Nas últimas semanas, os movimentos de luta por moradia em São Paulo passaram por momentos marcantes. No início de novembro, cerca de 3.500 pessoas ocuparam 12 prédios abandonados. De lá pra cá, alguns a Justiça agiu e a polícia executou as ordens de reitengração de posse na maioria deles. Daquela leva, hoje apenas 5 prédios continuam ocupados. A Prefeitura e os proprietários dos imóveis—que, como se de repente tivessem despertado de um coma profundo—alegaram invasão.

As ações de ocupação foram mobilizadas por 13 movimentos diferentes como forma de pressionar o poder público para dar seguimento a vários processos pendentes, como a espera por unidades habitacionais e a desapropriação dos edifícios Mercúrio e São Vito, famoso pelo apelido de treme-treme, que foi ocupado em 2007 por famílias que fazem parte da FLM e demolido em maio deste ano.

Entre ocupações e desocupações, o saldo retrata a existência de um déficit habitacional preocupante em São Paulo. Segundo o IBGE, existem 1,12 milhão de domicílios vagos em todo o Estado. E, de acordo com o Censo 2010, são 1,127 milhão de famílias paulistas que não têm lugar para morar ou que vivem de forma precária—habitando, por exemplo, casas em locais de risco. O governo tomou algumas medidas no sentido de reduzir o déficit, mas nenhuma delas brindou solução efetiva ao problema habitacional da cidade. Uma das propostas governamentais foi o imposto progressivo—que obriga a aplicação de um aumento dos tributos em caso de abandono do imóvel—e o Projeto Nova Luz, criado pela Prefeitura de São Paulo. O primeiro não é cumprido desde 2010, quando foi implantado, e o segundo, ainda em fase de desenvolvimento, não é claro sobre o destino das famílias que vivem em condições precárias ou que necessitam realizar mudanças frequentes. A especulação imobiliária é presença marcante em todo o processo, aproveitando-se da ciranda financeira que valoriza o preços dos prédios após longos períodos de abandono e mudanças estruturais na região.

Para a urbanista Raquel Rolnik, relatora especial da ONU para o direito à moradia adequada, vivemos um modelo de política urbana excludente, que mercantiliza as áreas centrais da cidade—que possuem maior oferta de serviços—enquanto a expansão habitacional ocorre de forma horizontal e ilimitada em regiões impróprias para moradia, como as áreas de proteção ambiental e de mananciais. “Isso é resultado da falta de planejamento na cidade e de criação de espaços para que as pessoas de baixa renda possam morar com fácil acesso ao trabalho e escola”, diz Raquel, que também é professora da USP.

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