Feminismo: “A menina que bateu nos soldados”

A jovem Ahed Tamimi – famosa ao enfrentar forças israelenses na Cisjordânia – quebra estereótipos de resistência das mulheres palestinas. “Atrevida” e com cabelo descoberto, ela conecta a luta nacional com a feminista, sem a imagem vítima ou de “mãe de mártir”

Foto: Ilia Yefimovich/DPA /AFP
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Este texto foi originalmente publicado no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS), com o título “Representações da resistência palestina feminina de Ahed Tamimi”. Para ler outros textos da BVPS por nós publicados, clique aqui.

Na madrugada do dia 29 de novembro de 2023, durante as negociações de troca de reféns israelenses em Gaza por palestinos detidos em Israel, Ahed Tamimi retornou novamente da prisão para a sua casa. Detida poucas semanas antes, ela fez parte do conjunto de prisões operadas por Israel após o ataque de 7 de outubro sob a justificativa de incitação ao terror, principalmente através da internet. Este acontecimento nos faz recordar da primeira vez em que Ahed foi presa, aos dezesseis anos, em dezembro de 2017.

No portão de uma casa, em meio a uma longa troca de balas de borracha e pedras, dois soldados israelenses em serviço, uniformizados e armados, recebiam tapas e chutes de uma menina palestina que vestia calça, blusa rosa, jaqueta jeans e keffiyeh[1]enrolado no pescoço. Essa foi a cena que repercutiu amplamente na internet e na mídia, e que ocasionou a prisão de Ahed e de sua mãe, Nariman Tamimi, por quase oito meses, há sete anos atrás. Desde então, Ahed Tamimi tornou-se uma figura exemplar do movimento de resistência palestino, conhecida popularmente como “a menina que bateu nos soldados”. Sua representação não só reacendeu as narrativas que sustentam o conflito palestino-israelense, como mobilizou debates em torno das percepções consolidadas sobre o “ser mulher palestina”.

O confronto entre Ahed e os dois soldados israelenses foi filmado e transmitido ao vivo no Facebook por sua mãe no dia 15 de dezembro de 2017[2]. Até hoje, Nariman Tamimi utiliza sua página na rede social como ferramenta de divulgação e denúncia da violência sofrida pelo povo palestino. Em seu perfil, são comuns publicações compartilhadas em imagem e texto, além dos vídeos de transmissão ao vivo – as lives – de momentos de conflito na pequena vila onde mora. Ahed Tamimi e sua família são de Nabi Saleh, uma vila de aproximadamente 600 moradores localizada na zona periférica de Ramallah, na Cisjordânia. A partir de 2009, os moradores de Nabi Saleh passaram a se organizar coletivamente realizando protestos semanais contra as políticas de ocupação israelense e a construção de um assentamento judaico na colina em frente à vila (Ryan, 2015). Os protestos ocorreram semanalmente, às sextas-feiras, por mais de dez anos. Os vídeos feitos por Nariman cumprem um papel importante no registro e documentação de um cotidiano marcado pela resistência da população palestina na região.

A cena em que Ahed bate nos soldados é parte de uma live de 24 minutos em que Nariman filma de modo prolongado as ações de soldados israelenses nas redondezas de sua casa. Diante do impacto produzido pelas imagens do confronto, o trecho de pouco menos de quarenta segundos repercutiu de forma ampla na internet e nas mídias locais e internacionais. A live publicada no Facebook de Nariman possui 41 mil visualizações. Quatro dias depois do confronto, na madrugada do dia 19 de dezembro, soldados israelenses foram até a casa da família Tamimi e prenderam Ahed. O momento da prisão foi filmado pelos próprios soldados e parte do vídeo foi divulgado como anúncio da notícia através da conta oficial do Twitter do exército de Israel[3]. Nas horas seguintes, prenderam também Nariman, que foi responsabilizada pelo caso como autora do vídeo publicado na internet.

Ahed e Nariman Tamimi, mãe e filha, ficaram detidas no presídio Hasharon[4], em Israel, até serem libertadas conjuntamente em 29 de julho de 2018. A partir da prisão, surgiu a campanha #FreeAhedTamimi em defesa da sua liberdade. Ao mesmo tempo, manifestações a favor da sua detenção e condenação também se fortaleceram, especialmente entre setores conservadores da sociedade israelense. Ambos os discursos se espalharam internacionalmente e se materializaram por meio de hashtags, protestos nas ruas, eventos culturais e cartazes físicos e digitais, distribuídos nas ruas e nas redes. Seja em defesa da sua liberdade ou da sua prisão, as campanhas contribuíram como forças impulsionadoras da construção de Ahed Tamimi como figura de destaque do movimento de resistência palestina aos olhos do mundo.

O momento da sua libertação foi muito esperado por moradores de Nabi Saleh e ativistas da causa palestina. Diversos jornalistas se concentraram na praça central da vila, onde Ahed, sentada entre sua mãe e seu pai, Bassem Tamimi, concedeu a sua primeira entrevista coletiva e falou sobre sua decisão de confrontar os soldados que ocupavam sua casa naquele dia durante uma operação do exército em Nabi Saleh. Em sua autobiografia, Ahed descreve o retorno da prisão como um momento de realização das responsabilidades que estavam por vir.

Além dos nossos amigos, ativistas e inúmeros jornalistas, todo mundo na vila estava lá para nos proporcionar as boas-vindas de uma heroína. Nossos amigos e família balançavam bandeiras palestinas e seguravam cartazes com o meu rosto. Meu pai colocou um keffiyeh em volta dos meus ombros. O que aconteceu depois disso se tornou um borrão. Eu lembro do pandemônio de jornalistas nos rodeando, apontando câmeras para o meu rosto em todo lugar que eu olhava. Pessoas gritavam com eles para que recuassem, para que eu e meus familiares pudéssemos ter o espaço de se reunir apropriadamente, mas eles continuaram nos cercando, cada fotógrafo ansiando conseguir a melhor foto. Foi naquele momento que eu realmente comecei a entender o quão grande a minha história havia se tornado e como, daquele ponto em diante, eu deveria assumir um papel muito maior do que um dia imaginei (Tamimi & Takruri, 2020: 220, tradução livre).

Desde a repercussão da cena do confronto, Ahed Tamimi foi percebida e representada de diversas formas. Sua figura é marcada por inúmeras tensões, que são refletidas nas múltiplas narrativas consolidadas em torno do caso. Ela foi enquadrada como uma agente da violência e seus tapas nos soldados foram vistos como ato provocador, incitador de violência e até de terrorismo. Tal percepção abriu espaço para reações críticas, ofensas e ameaças à sua pessoa. Paralelamente, Ahed foi reconhecida como heroína nacional e figura exemplar do movimento nacional palestino. Sua representação imagética tornou-se um símbolo feminino da resistência, sendo reproduzida intensamente como bandeira política em cartazes, pinturas de parede, charges e fotografias. As contradições produzidas em torno da sua figura refletem a complexidade do debate sobre gênero no conflito palestino-israelense.

Muro de separação da Cisjordânia, Belém (2019)

Fonte: arquivo pessoal da autora

Ahed mobilizou novos discursos e símbolos sobre o feminino no contexto palestino. No vídeo gravado por sua mãe, ela apresenta uma resistência que se afasta do lugar de vítima. Ahed se dedica a apontar e denunciar as opressões que sofre no cotidiano, como palestina e mulher, por meio de discursos que enfatizam o seu papel na luta nacional e feminista. Assim, ela se diferencia da representação da mulher palestina em idade avançada, de hijab, mãe e avó, dona de casa, que carrega em seu pescoço a chave da casa perdida na Nakba[5] (Humphries & Khalili, 2007; Sayigh, 2007). E mesmo envolvida com o ativismo contra a ocupação israelense de territórios palestinos, Ahed também não se assemelha às militantes da luta armada organizada da década de 1970, que, como consequência das estruturas predominantemente masculinizadas das organizações políticas (Massad, 1995), foram marcadas por tentativas de se “apropriar da masculinidade”, renunciando características atribuídas ao feminino naquele contexto (Irving, 2012; MacDonald, 1991).

Na esfera da militância popular dos anos 1980, destacaram-se as mulheres de meia idade, mães e donas de casa que, junto às suas vizinhas, participaram massivamente de levantes populares – sobretudo a Intifada de 1987 – não só atirando pedras e confrontando soldados, como proporcionando redes de assistência e cuidado em meio ao conflito (Abdo, 1991). A representação da umm al-shahid, traduzido como mãe de mártir, consolida-se como uma categoria fundamental da atuação das mulheres no levante. As mães de mártir simbolizam o entendimento de que a mulher palestina resiste a partir da entrega dolorosa de seus filhos à causa nacional. Ainda, na Intifada de 2000, surge a representação das shahidat, jovens mulheres palestinas que se tornaram mártires da resistência através das bombas suicidas (Allen, 2009).

O ativismo de Ahed Tamimi é marcado pela incorporação de novos símbolos característicos da sua geração. Uma garota adolescente, de cabelo descoberto, calça jeans, ao lado de sua mãe, sem vínculos partidários e comprometida com um ativismo comunitário oriundo de uma pequena vila familiar e agrícola na Cisjordânia. Os smartphones e as redes sociais se apresentam como ferramentas importantes de sua luta. Seu ativismo se constitui a partir de vínculos familiares fortes, que podem ser observados ao longo da sua trajetória como militante, antes e depois do reconhecimento público. Em seus discursos, Ahed constantemente se refere às gerações passadas de mulheres de sua família como fontes de aprendizado na luta pelos direitos do povo palestino e ressalta a necessidade de seguir a militância em prol de oferecer um futuro melhor para as próximas gerações.

Fahra, a avó de Ahed, é descrita em sua autobiografia como “a melhor contadora de histórias”. “Todas as histórias eram educativas. Elas não só moldaram a minha imaginação, como revelaram a mim o trauma geracional que está intrínseco ao nosso DNA” (Tamimi & Takruri, 2022: 16, tradução livre). A memória da Nakba é encarada por Ahed como um trauma que atravessa gerações, incluindo a sua própria. Esse entendimento gerou o princípio de uma educação para a resistência que, no caso da família Tamimi, é transmitida desde a avó Fahra, passando por Nariman e Bassem até chegar em Ahed e seus irmãos.

Mesmo sendo uma criança, eu entendia que a minha vida tinha que ser devotada para uma causa maior que eu mesma. Meus pais injetaram em mim e nos meus irmãos a noção de que se a gente não fizesse nada para beneficiar a nossa nação, a gente não estaria fazendo nada para nos beneficiar. Se eu fosse bem-sucedida na vida, mas o meu sucesso não ajudasse a Palestina, então não seria um sucesso verdadeiro. Eles plantaram essa semente em nós quando éramos muito novos, mas mesmo se eles não tivessem, tudo que eu já tinha testemunhado desde muito nova teria sido suficiente para tornar a libertação da Palestina o objetivo principal da minha vida (Tamimi & Takruri, 2022: 81, tradução livre).

A noção de feminino permeou os discursos sobre o ativismo de Ahed Tamimi de forma recorrente e variada. Ela foi comparada a outras mulheres históricas e ativistas de diversos contextos, como no caso do artigo de opinião intitulado Ahed Tamimi is the new Rosa Parks, publicado na Al Jazeera[6]. E foi também acusada de ser uma atriz contratada para provocar os soldados israelenses. O diplomata Michael Oren, ex-parlamentar israelense e ex-embaixador de Israel nos Estados Unidos, publicou em seu Twitter:

A família Tamimi – que pode nem ser uma família real – veste crianças em roupas americanas e paga elas para provocarem tropas da IDF em câmera. Este uso cínico e cruel de crianças constitui abuso. Organizações de direitos humanos devem investigar! (Oren, 2017, tradução livre)[7].

Enquanto apoiadores ressaltaram a identidade de Ahed como jovem e mulher, opositores se utilizaram destas características identitárias como meios de desqualificá-la, chamando-a, por exemplo, de pirralha. Este foi o caso da declaração dada por Avigdor Lieberman, então ministro da Defesa de Israel quando Ahed estava presa[8]. A atenção voltada para a sua feminilidade inseriu Ahed em debates sobre as expectativas e estereótipos consolidados sobre a figura da mulher palestina e ativista. E o feminino, nesse contexto, aparece como alvo de disputas constantes nos cenários político e social em Israel e na Palestina.


Notas

[1] Lenço tradicional árabe utilizado pelos palestinos como símbolo do movimento nacional.

[2] Disponível em: https://www.facebook.com/nariman.tamimi.1/videos/1941041279245238. Acesso: 04 mar 2024.

[3] Disponível em: https://twitter.com/idfonline/status/943002514135355392. Acesso: 04 mar. 2024.

[4] O presídio Hasharon se localiza na cidade de Even Yehuda, há cerca de 33 quilômetros ao norte de Tel Aviv e 58 quilômetros de Nabi Saleh. O local recebe presos políticos palestinos dos territórios ocupados e presos civis israelenses.

[5] Nakba significa catástrofe em árabe. O termo é usado para se referir à expulsão de parte dos palestinos da região da Palestina histórica diante da fundação do Estado de Israel em 1948.

[6] Disponível em: https://www.aljazeera.com/opinions/2018/1/15/ahed-tamimi-is-the-palestinian-rosa-parks. Acesso: 05 mar. 2024.

[7] Disponível em: https://twitter.com/DrMichaelOren/status/943012861617590273?ref_src=twsrc%5Etfw&ref_url=https%3A%2F%2Fwww.richardsilverstein.com%2F. Acesso: 05 mar. 2024.

[8] Disponível em: https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=1808237045855902&id=178433145502975. Acesso: 05 mar 2024.


Referências

ABDO, Nahla. (1991). Women of the intifada: gender, class and national liberation. Race & Class, v. 32, n. 4.

ALLEN, Lori. (2009). Mothers of Martyrs and Suicide Bombers: The Gender of Ethical Discourse in the Second Palestinian Intifada. The Arab Studies Journal, v. 17, n. 1, p. 32-61.

HUMPHRIES, Isabelle & KHALILI, Laleh. (2007). Gender of Nakba Memory. In: ABU-LUGHOD, Lila & SA’DI, Ahmad (eds.). Nakba: Palestine, 1948, and the Claims of Memory. New York: Columbia University Press, p. 207- 228.

IRVING, Sarah. (2012). Leila Khaled: Icon of Palestinian Liberation. London: Pluto Press.

MACDONALD, Eileen.(1991). Shoot the women first. Londres: Fourth Estate Limited.

MASSAD, Joseph. (1995). Conceiving the Masculine: Gender and Palestinian Nationalism. In: Middle East Journal, v. 49, n. 3, p. 467-483.

RYAN, Caitlin. (2015). Everyday Resilience as Resistance: Palestinian Women Practicing Sumud. International Political Sociology, Oxford, v. 9, n. 4, p. 299-315.

SAYIGH, Rosemary. (2007). Woman’s Nakba Stories: Between Being and Knowing. In: ABU-LUGHOD, Lila & SA’DI, Ahmad (eds.). Nakba: Palestine, 1948, and the Claims of Memory. New York: Columbia University Press. p. 135-160.

TAMIMI, Ahed & TAKRURI, Dena. (2022). They Called me a Lioness: A Palestinian Girl’s Fight For Freedom. New York: One World.

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