Estado de emergência: somos todos homo sacer?

O que Giorgio Agamben e Slavoj Zizek têm a dizer sobre banalização da tortura e da violência policial nas sociedades contemporâneas

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Por Pedro Lucas Dulci | Imagem: Adolfo Vasquez RoccaHomo Sacer (2009)

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Na vida dos conceitos, há um momento em que eles

perdem a sua inteligibilidade imediata e,

como todo termo vazio,

podem carregar de sentidos contraditórios

Giorgio Agamben

Em dezembro de 2014, o Comitê de Inteligência do Senado dos Estados Unidos divulgou o resumo de um relatório sobre o programa de interrogatórios da CIA, elaborado por espiões norte-americanos de alto escalão após os ataques de 11 de setembro de 2001. O programa aconteceu entre 2002 e 2007, durante a presidência de George W. Bush. Os prisioneiros suspeitos de terrorismo eram interrogados usando métodos como “waterboarding” (simulação de afogamento, que causava convulsões e vômitos), humilhação, esbofeteamento, exposição ao frio e privação de sono por até 180 horas. 1 No episódio de divulgação de resultados do relatório, o que mais chamou a atenção da mídia internacional foi o fato de que, de acordo com o documento, a CIA enganou os americanos sobre o que estava fazendo ao utilizar técnicas coercivas de interrogatório – um nome técnico para tortura. Sob o famigerado pretexto de “ajudar a salvar vidas”, além de tornar oficialmente pública a existência de tortura contra suspeitos de terrorismo, a agência também precisou admitir que tal procedimento falhou em conseguir informações que impedissem novas ameaças. 2

A declaração da senadora Dianne Feinstein, membro do Comitê de Inteligência, de que “os presos pela CIA foram torturados, em qualquer definição do termo” 3 nos leva a pensar sobre a atualidade que o conceito de homo sacer introduzido contemporaneamente pelo filósofo Giorgio Agamben. Quem também relaciona tais procedimentos governamentais em relação aos suspeitos de terrorismo com a ideia de vida nua do homo sacer é Slavoj Žižek, quando nos lembra que tais fatos:

parecem apontar diretamente para a distinção de Agamben entre o cidadão total e o Homo sacer que, apesar de um ser humano vivo, não é parte da comunidade política. […] mas isso não quer dizer que se tornaram ilegais por causa de sua atividade terrorista criminosa: quando comete um crime grave, assassinato, por exemplo, um cidadão americano continua sendo um “criminoso legal”; a distinção entre criminosos e não criminosos nada tem em comum com a distinção entre cidadãos “legais” e os que na França são chamados de sans-papiers [sem documentos]. Os excluídos são não apenas terroristas, mas também os que se colocam na ponta receptora de ajuda humanitária (ruandeses, bósnios, afegãos…): o Homo sacer de hoje é o objeto privilegiado da biopolítica humanitária: o que é privado da humanidade completa por ser sustentado com desprezo. Devemos assim reconhecer o paradoxo de serem os campos de concentração e os de refugiados que recebem ajuda humanitária as duas faces, “humana” e “desumana”, da mesma matriz formal sociológica. 4

Tanto na figura do suspeito de terrorismo sendo torturado, quanto na do refugiado recebendo ajuda humanitária, o que fica evidente é que a população mundial é reduzida ao processo de potilização da vida ou a biologização da política – a biopolítica. No entanto, não basta apenas enumerar os exemplos hodiernos de homo sacer – poderíamos nos lembrar desde os habitantes dos campos de refugiado na Guiné ou no Congo, passando pelos indivíduos em situação ilegal em países estrangeiros, podendo chegar até aos moradores do que restou da Cracolândia em São Paulo. Em cada um desses espaços de exceção, em que a vida nua dos indivíduos é transformada em objeto de manobra política, o que está em jogo é uma operação que encontra na arcaica figura do direito romano seu melhor paradigma. O homo sacer era o indivíduo que havia sido julgado pelo povo por um delito, mas que não foi executado. Foi feito sacro, foi entregue aos deuses. Isso faz com que não seja permitido sacrificá-lo, mas, por outro lado, aquele que o mata não é condenado como homicida.

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Podemos dizer que é, no mínimo, esclarecedor que a primeira notícia que temos sobre a sacralidade da vida humana estar ligada ao delito contra o povo. Como sintetiza Agamben, “a vida insacrificável e, todavia, matável, é a vida sacra”. 5 Esse bandido, na verdade, é um abandonado, o feito fora-da-lei, por ter-se tornado, de alguma forma, um malfeitor à comunidade. Isso faz com que ele possa ser morto por qualquer um, sem que isso configure um homicídio, justamente porque o que está em risco é a própria comunidade jurídico-política. A justificativa para tal paradoxo encontra-se no fato de que aquele indivíduo que atenta contra a cidade ainda permanece fora dela, em algum lugar na natureza, na selva, enfim, banido da comunidade. Precisamente por isso que Agamben irá afirmar que:

A vida do bandido – como aquela do homem sacro – não é um pedaço de natureza ferina sem qualquer relação com o direito e a cidade; é, em vez disso, um limiar de indiferença e de passagem entre o animal e o homem, a phýsis e o nómos, a exclusão e a inclusão: loup garou, lobisomem, ou seja, nem homem nem fera, que habita paradoxalmente ambos os mundos sem pertencer a nenhum. 6

O bandido, o inimigo político, ou mesmo o manifestante que agora passa a ser acusado de terrorismo, tem na vida nua do homo sacer seu paradigma mais esclarecedor. Mais do que isso, eles foram feitos a base de justificativa para aquilo que podemos chamar de a substituição da tradicional ditadura pelo estado de emergência permanente. A partir da retórica da segurança e proteção da população a qualquer custo, a tecnologia política de suspender parte ou todo o ordenamento jurídico de uma nação está tornando-se a regra. O Estado passa a ter permissão de afirmar sua soberania sem restrições legais, uma vez que se encontra em situação de emergência. Tudo isso empreendido tantas vezes durante um mandato presidencial até que “a distinção entre estado de guerra e estado de paz fica embaçada; estamos entrando numa era em que um estado de paz em si pode ao mesmo tempo ser um estado de emergência”. 7 A prova de tal hipótese assume vários níveis de comprovação cotidiana, desde a impossibilidade de saber se a junta policial que vem em sua direção irá protegê-lo ou levá-lo preso, desde o fato de que, quando um avião sobrevoa uma área atingida pela guerra como em Gaza atualmente, nunca se sabe se ele vai lançar bombas ou pacotes de alimentos.

O grande fenômeno que permanece obscuro ainda em tal prática política tão corrente é que quando uma instituição estatal proclama estado de emergência, ela o faz como parte de uma estratégia maior de evitar a verdadeira emergência política. Em tal postura, esconde-se a pretensão de infinitude dos governos. Qualquer indivíduo ou situação que possa provocar situação de tumultuo no estado normal de coisas deve ser encarado como inimigo da comunidade, bandido, fora-da-lei, homo sacer. A grande pergunta que surge nessa altura é: e quando a ação política está diretamente ligada à agitação da ordem social? Conforme muito bem identificou Cauê Seignemartin Ameni, também por ocasião de uma análise ao relatório do Comitê de Inteligência do Senado dos EUA, a única pessoa que foi presa e está respondendo processo é John Kiriakou, ex-funcionário da agência que revelou a existência de métodos medievais utilizados pela CIA para obter informação. 8 Seguindo esse mesmo raciocínio, não apenas a tecnologia política atual do estado de emergência permanente, como também os regimes ditatoriais na Argentina, Brasil, na Grécia e no Chile assumem outra dimensão de sentido. Para evitar a verdadeira emergência política, os Estados proclamam estado de emergência a fim de controlar o caos que a politização generalizada causou. Para que o curso das coisas volte a correr normalmente, ou melhor, infinitamente, ocorre a instauração da exceção jurídica. Em resumo, “a proclamação reacionária do estado de emergência é uma defesa desesperada contra o verdadeiro estado de emergência”. 9

Em tudo isso percebemos, pelo menos, três coisas. Em primeiro lugar, atualidade da noção de homo sacer para lançar luz sobre vários fenômenos sociais de primeira importância. Além disso, fica evidente a conexão retroalimentada entre sacralização da vida nua dos indivíduos abandonados pelo governo e as políticas de perduração infinita do controle da população. Por fim, e em consequência direta com a última constatação, qualquer esforço que não se empenhe em escapar desse paradoxo evidenciado pela ação humanitária que atende e responde a parcela de indivíduos que foi desumanizado, mostra-se inócuo. Talvez seja hora, em tempos que o rosto de Guy Fawkes tornou-se modinha, lembrarmo-nos de outro rosto de grandeza política gigante. Foi o pastor e teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer que percebeu, muito antes que qualquer outro cidadão sob o terceiro Reich alemão, que: “se você embarcar no trem errado, não adianta nada correr pelo corredor na direção oposta”. 10

Notas

1. BBC. Relatório diz que CIA “mentiu” sobre tortura; conheça 20 principais conclusões. Disponível em: www.bbc.co.uk/portuguese. Acessado em: 01 de jan de 2015.

2. Ibid.

3. Ibid.

4. ŽIŽEK, Slavoj. Bem vido ao deserto do real: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas. Trad. Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 111.

5. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 90.

6. Ibid., p. 112.

7. ŽIŽEK, Bem vido ao deserto do real, p. 128.

8. AMENI, Cauê Seignemartin. Tortura: Obama prende quem denunciou… Disponível em: https://outraspalavras.net/blog/2014/12/18/tortura-obama-prende-quem-denunciou/#more-10073. Acessado em: 01 de jan de 2015.

9. ŽIŽEK, Bem vido ao deserto do real, p. 128.

10. METAXAS, Eric. Bonhoeffer: pastor, mártir, profeta, espião. São Paulo: Mundo Cristão, 2011, p. 203

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