Esquerda: a notável lição do trabalhismo inglês

Numa Europa acuada pela direita, partido mostra que outra política é possível e cresce defendendo programa radical baseado no Comum

À esquerda! Liderança de Jeremy Corbyn transformou Partido Trabalhista, mobilizou a juventude e venceu duas vezes a burocracia interna acomodada

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Desprivatizações. Serviços públicos geridos pela sociedade. Poder local. Numa Europa acuada pela direita, partido mostra que outra política é possível e cresce defendendo programa baseado no Comum

Por Marcelo Justo, na Página/12 | Tradução: Wagner Fernandes de Azevedo, no IHU

O Brexit domina hoje a política britânica, mas no congresso trabalhista, concluído no final de setembro, debateram-se muitos outros temas, que formam parte de um projeto de governo de esquerda cada vez mais definido.

1. “Quanto maior o caos que herdamos, mais radicais terão que ser as soluções”

Isso foi dito por John McDonell, porta-voz econômico e cérebro da estratégia trabalhista, mas cai como anel no dedo para a situação argentina [ou a brasileira]. Salvo por um detalhe: a palavra “radicais”. Em inglês, “radical” se diferencia de “extremist” e “moderate”. A diferença se explica pela sua etimologia latina: “mudar de raiz”. Quanto mais profundo e enredado o labirinto neoliberal, menores serão as opções de sair da crise com mudanças superficiais: tem que mudar os fundamentos próprios do sistema.

2. O que é o “radicalismo” trabalhista em termos concretos?

Pode-se ver muitas propostas, mas talvez as mais relevantes sejam a nacionalização das empresas privatizadas nos anos 1980 e a participação da força laboral nas empresas. Em sua versão atual, o trabalhismo britânico vai mais além da plataforma eleitoral do ano passado, que propunha a nacionalização da eletricidade, dos trens e dos correios. No modelo Corbyn.2 de 2018, a nacionalização dos serviços de água centra-se na criação de um diretório formado por trabalhadores, consumidores e conselheiros que sintonizem com a população e neutralizem a formação de impessoais capas burocráticas que com frequência desprestigiam as empresas estatais.

A essa forma de participação direta dos trabalhadores, o Congresso Anual Trabalhista adicionou a representação sindical no diretório de grandes companhias e a criação de um fundo de 10% dos dividendos das grandes corporações, que se dividirá entre o Estado e os trabalhadores.

3. Essa mudança radical abarca desde o governo central até o municipal

Uma das estrelas do congresso trabalhista foi o município de Preston, uma cidade de 141 mil habitantes no noroeste da Inglaterra. Em vez de buscar o investimento de multinacionais como estratégia de crescimento, Preston favorece um modelo baseado no investimento de companhias locais, o fomento de cooperativa de trabalhadores e o fim da terceirização de serviços. Em 2011 Preston estava na bancarrota. Com a mudança de política, converteu-se no primeiro município do noroeste em pagar um “living wage” (“salário digno” que está acima do salário mínimo), fundou uma companhia energética sem fins lucrativos e uma entidade creditícia para combater a proliferação de agiotas que haviam aproveitado a austeridade para fazer grandes negócios.

O trabalhismo quer estender ao resto dos municípios britânicos essa estratégia de “localismo municipal” (dar prioridade e estímulo às empresas da vizinhança). Uma pesquisa do “Center for Local Economic Strategies” mostra que por cada libra esterlina que investe uma pequena ou média empresa do município, uns 63 centavos são gastos em companhias ou comércios da comunidade. Em grandes corporações, somente 40 centavos de cada libra investida circulam pelas veias da economia local. O resto vai para fora. Com novos mecanismos em marcha, como um bando de desenvolvimento de Preston para toda a província de Lancashire, o trabalhismo crê que a diferença se tornará mais esmagadora a favor das pequenas e médias empresas locais.

4. A centralidade dos partidos na política britânica

Uma característica notável da política britânica é o peso que têm os partidos, que se reflete nos congressos anuais, transmitidos ao vivo pela BBC, e plataforma de grandes diretrizes que seguirão os dirigentes nos 12 meses seguintes. Esse poder se viu às claras na quarta-feira quando o líder Jeremy Corbyn adotou a estratégia do segundo referendo sobre o Brexit, depois que o congresso votou esmagadoramente a favor dessa política. No Reino Unido, os partidos são muito mais que uma vetusta ou oxidada ferramenta eleitoral. Corbyn deu um estímulo adicional, com campanhas maciças de filiação, que converteram seu partido na maior força social-democrata da Europa. Caberia explorar uma revalorização dos partidos à britânica, concebendo-os como um espaço de comunicação entre as bases e os distintos estratos partidários (sindicais, municipais, parlamentares, dirigentes, etc.).

5. Chamado à Unidade

A irrupção de Jeremy Corbyn como líder do trabalhismo em 2015 mudou a cara e a dinâmica de um partido que havia se convertido em uma força de centro nas duas décadas prévias. Desde 2015 houve duas tentativas de substituir Corbyn, uma nova eleição interna que o líder trabalhista ganhou com esmagadora maioria e múltiplas acusações de intimidação e caça às bruxas dos “centristas” e “blairistas” contra a nova direção. O Brexit aprofundou essas divisões. Corbyn nunca foi um grande entusiasta da EU, enquanto que o partido parlamentar (os deputados) está majoritariamente a favor de permanecer no bloco e convocar um segundo referendo. A votação no congresso sobre esse tema acalmou, nesse momento, essas diferenças. No seu discurso de encerramento, Corbyn convocou à unidade para enfrentar os conservadores e exortou ao seu partido para “gritar menos e escutar mais”. Claro que sempre há distância entre as retóricas e a práxis cotidiana, muito disseminada em uma multidão de ações e protagonistas. Em todo caso, em comparação com as divisões que assolam os conservadores, os trabalhistas pareceram ser um modelo de respeito e unidade. Nisso as enquetes britânicas são claras: o votante rechaça partidos mais preocupados com as suas questões internas que com a nação.

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Um comentario para "Esquerda: a notável lição do trabalhismo inglês"

  1. Rogerio Faria disse:

    Espero que a Presidente do PT, Sra. Gleise Hofman leia este artigo.

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