Crônica: A Cracolândia que ninguém vê

Muitos só veem o fluxo como multidão. Mas ali há gente forte e fraca, grande e pequena, de coração aberto e egoísta. Vítimas da chibata colonial de bombas, balas de borracha e gás de pimenta. Mas, em 30 anos, poder público ainda recusa-se a vê-los

O bloco de carnaval Blocolândia é uma das manifestações culturais e políticas da Cracolândia, que reúne usuários, trabalhadores e militantes – Júlia Dolce/ Brasil de Fato
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Por Daniel Mello, Aline Yuri Hasegawa, Ricardo Paes Carvalho e Verena Carneiro, no Brasil de Fato

Quantas vezes você leu que a Cracolândia é um problema há 30 anos no centro de São Paulo? Escutou na TV pelo menos. Na voz de um jornalista corretamente engravatado. Aos berros por um deputado coronel-pastor-empresário. Por pesquisadores e pesquisadoras com fundo de estantes cheias de livros. À esquerda ou à extrema-direita. Sinceramente, pedimos para que tente se lembrar.

Porque o que propomos aqui é completamente diferente. Não vamos dizer que a Cracolândia é um problema, porque a Cracolândia é antes de tudo (e talvez apenas) as pessoas. O fluxo só existe como multidão. Gente forte e fraca, grande e pequena, de coração aberto e egoísta, ao mesmo tempo. A maioria preta, mas alguns não. De baixa escolaridade e pobre, sem esquecer dos doutores e ex-professores. Apesar de que ali não se deixa de ensinar e quem quer consegue aprender.

No dia 8 de julho de 2023, o Estado, que pode atender por governo, prefeitura ou Judiciário, mas que na Cracolândia costuma aparecer muito mais fardado, fez mais um mal desnecessário. Obrigou aquela massa de pessoas, várias descalças, a percorrer 3 quilômetros ao incentivo macabro de granadas de gás, bombas de efeito moral e 23 balas de borracha (segundo os próprios informaram por Lei de Acesso à Informação). O objetivo era obrigar o fluxo a ficar em um lugar inóspito, entre a Marginal Tietê e os urubus. O que não aconteceu.

A partir dos relatos dessas pessoas, que colhemos para denunciar mais essa violação, tentamos retratar um pouco de como isso repercutiu nos corações das pessoas que hoje fazem A Craco Resiste. Nós, que às quintas-feiras, algumas chuvosas, vamos às ruas que durante o dia são a Santa Ifigênia para jogar futebol, à moda das crianças de cidades pequenas e bairros tranquilos. A gente, que tenta em algumas quartas-feiras do mês projetar um filme em um lençol preso com fita crepe, acreditando que cinema não é o filme, é a experiência de ver uma história junto. 

Nós estamos aqui tentando contar essa narrativa de uma forma que você queira entender. Sem verdades absolutas, apenas com a certeza que as soluções estão nas pessoas.

Cena 1  – Negra livre

Da Rua dos Gusmões com a Triunfo se ouvem histórias, denúncias e pedidos. Estão lá aos milhares, a qualquer hora do dia ou da noite é possível escutá-las. “As pessoas ficavam olhando pra gente enquanto éramos levados].” “Não deu tempo de pegar nada. Ninguém falou pra onde a gente estava indo.” “Não tinha opção, tinha que seguir o caminho que estavam empurrando.” “Eles trata nós como um bicho, conspiram em gente caída no chão.”

As frases remontam a noite fria e chuvosa do dia oito de julho de 2023, na qual as Polícias Militar, Civil e a Guarda Civil Metropolitana (GCM) deslocaram dezenas ou centenas de pessoas (não se sabe ao certo) da Cracolândia para a Ponte Governador Orestes Quércia, da Marginal Tietê. “Eu uso aqui no fluxo pra não ficar fumando nas calçadas, não merecemos isso.” “Moro na Duque de Caxias, não me deixaram voltar pra casa, tenho osteoporose, por que fazer caminhar até lá?” “Uma pessoa caiu no rio, só então pararam a operação.” 

Semanas depois os relatos desta noite ainda reverberam pelas ruas do centro de São Paulo, e as marcas das balas de borracha estampam os corpos de muitos que por ali passam. “Jogaram spray de pimenta na minha boca duas vezes”, conta mais uma das pessoas ouvidas que vivem na Cracolândia, alvo de operações policiais há pelo menos uma década. 

Na semana do dia 24 de julho de 2023, foi divulgada a pesquisa Operação Cachimbo: relatório das detenções em massa realizadas na Cracolândi“, produzida pelo Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, na qual aponta que 90% das prisões em massa em 2022 na Cracolândia foram consideradas ilegais pela Justiça e arquivadas. Um dos motivos para o arquivamento das ações contra os usuários de drogas é o de “Princípio da Insignificância”. Talvez seja esse o mesmo motivo para as tantas histórias, denúncias e pedidos nunca ouvidos.

“Ao invés de buscarem tratamento, de regularizarem um espaço de uso, esse é o Estado que deveria nos proteger. Esse mesmo estado que permite com que a droga entre no meu país. E agora o que fazer, pergunto eu para a sociedade?” “Coloca aí: assinado mulher negra e livre.”         

Cena 2 – Continuidade do pesadelo colonial

Registros do aprendizado da violência colonial disparados numa das últimas operações policiais no fluxo: 

“Não tinha opção, tinha que seguir o caminho que estavam empurrando senão apanhava.”

“Eu me senti sequestrada, encarcerada e exposta […]. Não deu tempo de pegar nada.”

“Um caminho empurrado é o quê? Empurram-me… e sei que apanho se não andar… Apanho mesmo andando.”

“Tinha que seguir o caminho, obrigatoriamente. Pra onde estão me empurrando?”

“Para cá e para lá, espremida entre as ruas. A GCM de um lado… Nossas coisas ao redor, organizamos as barracas e expomos os produtos. Às vezes, presenteio. Troco. Às vezes, ganho coisas. Nos colocam pra andar, perco minhas coisas. Não fica nada. Já não durmo há alguns dias, caminhamos sem saber pra onde estamos indo. Cadê o meu pessoal?”

“Tenho dificuldade de andar e me fizeram andar até o fim.”

“As torturas cotidianas e o sadismo da violência colonial, estou falando sobre isso.”

“Eu sinto fome. Me fizeram formar filas para receber sopas frias. Rezei, esperei, agradeci e comi calminha. Eu vi a fumaça saindo da sopa sendo colocada quentinha, mas depois de tanta enrolação, ela ficou grossa e fria.”

“A GCM de um lado pressionando, muita gente aglomerada. A galera da sopa levou carro de som, tava uma agitação. Quando vi, um irmão ficou irritado, catou um pedaço de pedra de calçada e foi pra cima da polícia.”

Cena 3 – O que você escuta?

Um trovão? Uma bomba? Algo pesado que cai no início da noite no centro da cidade. Veio do céu ou veio do inferno? Pelas ruas as pessoas com e sem CEP parecem se agitar, sem fazer menção de escutar o som. Ou será só impressão minha, pré-disposto a esperar o caos a cada passo? Entro no bar em movimento brusco, impulso do passo apressado.

Eles estão nos encurralando, diz Roberto nesse meio de conversa que pego atravessado. Começo cumprimentando quem está sentado. A mesa é longa, mas sinto que todos escutam e sentem os mesmos sons que percebia pelo caminho. Mormaço frio.

Nos países de primeiro mundo, existe um lugar para os usuários usarem a droga, como se fosse uma praça. Se catarem vendendo, lá dentro, vai preso. Então, eles tinham que arrumar uma praça, um lugar assim para os usuários consumirem a droga e ficarem lá consumindo, continua Roberto, nessa fala real que tirei das ruas. Na prefeitura ainda não escutam.

Cena 4 – O caminho do abatedouro

“Não tinha opção, tinha que seguir o caminho que estavam empurrando , se não apanhava.”

CONVERSA DE BOIS

Os homi do pau comprido e marimbondo invisível chegaram. Dá pra ouvir o enxame zunido e cortando o ar. Chegam em nuvens que faz arder os olhos, junto com raios e trovões que arrancam sangue, contorcer a alma e desbaratinam o viver. O bando si dissipa, como quando tubarão passa no meio do cardume. O frágil e imperceptível, equilíbrio e organização do caos se desfaz, derrete, como a pedra aninhada no Cachimbo.
O torpor  que embala o uso e acalma as dores, não existe mais. A parceria é cuidado, aê família, se desintegra, restando apenas a miséria e os sofrimentos, o descaso e a invisibilidade.

A dor abrindo caminhos  e saldando a excelentíssima normalidade da violência.

Resta apenas o terror. Os bois, a nuvem bombástica e eletrizada que arde os olhos. Os marimbondos que rasgam a pele, os raios e  trovões que sangram a carne, impondo através da dureza da força, um estado de desespero. Tudo isso só amplia fatorialmente as dores, os traumas, as porradas ainda tão latentes nas frágeis vidas. Uma vez encurralado, o bando perde seu fluxo. A brisa se torna transe, e este se torna trânsito. 

O bando de indivíduos já extremamente fragilizados, torna se uma massa amorfa, conduzida através da dor, sofrimento, descaso, e violência. Não há mais pessoas ali, apenas essa massa sem forma ou mesmo vida. 
Entre gritos, gemidos , revoltas, rasgam a cidade nesse cortejo de horror, fúnebre e violento, esse bando, essa família de indivíduos e histórias, é transformado à força, em coisas, animais, bois , tocados violentamente numa sociedade de picanhas.

O ardiloso ritual social que sacrifica vidas já fragilizadas  nos altares das ruas e calçadas,  também atenua a dor das próprias feridas purulentas de uma sociedade doente, em nome do perverso sistema falido e desigual, que é essa sociedade de todos nós. 

Encerramento

Fecha a cortina. 

Aqui, provavelmente, ainda há quem espere uma conclusão ao estilo branco da palavra final. Pedimos, porém, só um pouco de desconfiança. Diabo e crack não são a mesma palavra. Quem dorme na calçada precisa de casa, assim como quem caga na sua porta deveria ter uma privada.

A Craco Resiste

Aline Yuri Hasegawa, mãe da Irene, pesquisadora, educadora, doutora em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC, mestra em Sociologia pela UFSCar e bacharela em Sociologia e Antropologia pela UNICAMP. Foi Educadora do Espaço de Tecnologias e Artes do SESC Birigui e do SESC Avenida Paulista. É articuladora geral da Galeria Escola da Diáspora Galeria, produz o projeto Siwati e é produtora e pesquisadora do Coletivo Peixe Lindo. Jogadora de Futebol do União Lapa e aprendiz de Capoeira Angola da Escola Flor da Aroeira.

Daniel Mello é jornalista, poeta e documentarista. Formado em comunicação social pelo Ceub-DF, é  cinegrafista pelo Senac-SP e tem especialização em fotografia pela Faap-SP. Atua como repórter em São Paulo desde 2009, cobrindo temas relacionados a políticas públicas e direitos humanos. Em 2015, lançou, como codiretor e coprodutor, o documentário USP 7%, sobre o racismo estrutural e a luta por cotas na Universidade de São Paulo. O filme recebeu o prêmio de aquisição do Canal Brasil no Cine Ceará e menção honrosa do Festival de Belo Jardim. É militante contra a violência policial na região da Cracolândia desde 2017 , onde atua com o coletivo A Craco Resiste e a  Associação Birico. Em 2019, lançou o livro Gargalhando Vitória – poemas da Cracolândia pela Editora Elefante.

Ricardo Paes Carvalho estudou quatro anos de Ciências Sociais, pela Universidade de São Paulo e graduou-se em Jornalismo, pela Universidade Anhembi Morumbi . É pós-graduado pelo Programa de Especialização em Comunicação Jornalística, com ênfase em jornalismo social, pela PUC – São Paulo.   Trabalha na área social há 18 anos, atuando em várias instituições sociais como educador social, coordenador e diretor, além de desenvolver projetos de formação e assessoria em inclusão social, direitos humanos e desenvolvimento local.

Verena Carneiro: jornalista, pós-graduada em jornalismo literário e ampla experiência em redação e comunicação corporativa, com especialização nos setores de saúde e tecnologia. Atua como redutora de danos pelo coletivo Craco Resiste e times mistos de várzea de São Paulo União Lapa e Rosanegra ADF -, ambos com atuação política e social por meio do futebol.

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