Conferência da OMC: Fracasso anunciado

Encontro no Emirados Árabes escancara a crise da instituição. A resolução de conflitos é sabotada pelos EUA desde 2019. E, diante de guerras, fome e crise climática, propostas de soberania alimentar são ignoradas. Vários países já buscam outras formas de articulação…

Foto: Vila Campesina
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Por Sergio Ferrari | Tradução: Rose Lima

A 13ª Conferência Ministerial da OMC realizou-se de 26 de fevereiro a 1º de março, em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, sem conseguir desbloquear a paralisia que a organização sofreu na última década. Devido às suas profundas tensões internas, desde 2013, a OMC não conseguiu chegar a novos acordos comerciais multilaterais.

A Conferência Ministerial que, geralmente, é convocada a cada dois anos, é o órgão decisório mais importante da OMC e reúne representantes dos Estados membros, que podem adotar resoluções relevantes para qualquer acordo comercial multilateral. Essa última edição de 2024 foi realizada no âmbito de rígidas regras de segurança que impediram qualquer protesto. Uma ampla plataforma de Organizações Não-Governamentais denunciou, em Abu Dhabi, a detenção por algumas horas de um ativista antiglobalista que distribuía panfletos críticos à instituição internacional.

“A perseguição sem precedentes às organizações da sociedade civil mostra como é fundamental silenciar vozes que discordam da agenda do livre comércio, porque seus argumentos são robustos e precisos”, disse Sofia Scasserra, do Instituto Transnacional (TNI, na sua sigla em inglês), em Abu Dhabi. É essencial garantir a participação da sociedade civil “para que resultados cada vez mais equilibrados possam ser alcançados em favor dos países em desenvolvimento”, acrescentou em entrevista por telefone.

Nada de novo sob o sol

Os convocadores da Ministerial aspiravam a algum tipo de avanço em setores como a agricultura, o comércio eletrônico, a pesca e reformas institucionais internas.

No final da conferência, Sofia Scasserra, do TNI, confirmou que “esta acabou sendo um fracasso nas negociações sobre facilitação de investimentos, subsídios à pesca e à agricultura, entre outros”. Desde Abu Dhabi, lembrou que a OMC não reconhece a importância das políticas públicas, especialmente nos países do Sul global.

As contradições históricas entre os países do Norte e os do Sul (e, às vezes, também dentro desses mesmos espaços geopolíticos), bem como a cláusula de consenso que define o funcionamento dessa organização, foram alguns dos obstáculos que impediram o desbloqueio da paralisia.

Não menos importante foi a crítica e a mobilização frontal contra a OMC promovidas por importantes sindicatos, setores camponeses e ONGs. Nada de novo, embora atualizado, se levarmos em conta as potentes mobilizações contra a OMC em regiões muito diferentes do planeta nos últimos 25 anos. Por várias décadas, a OMC tem sido um inimigo de linha de frente contra o qual protestos antiglobalistas e alterglobalistas foram travados nas últimas décadas.

Em 2001, a OMC lançou o chamado “Rodada de Doha”, um ambicioso programa de liberalização da economia mundial com consequências desastrosas, principalmente para os países do Sul Global.

Problemas e expectativas

A cláusula de consenso, sem a qual a OMC não pode chegar a acordos, é quase impossível de alcançar quando se trata de alinhar os representantes dos 166 Estados-Membros em pé de igualdade. O atual clima político também não ajuda a encontrar soluções para uma questão tão sensível como o comércio mundial. Como disse a economista nigeriana Ngozi Okonjo-Iweala, presidenta da instituição, na abertura do evento, em 26 de fevereiro: “A incerteza e a instabilidade são generalizadas”.

Um dos principais desafios em jogo na Conferência Ministerial tem sido, e continua a ser, a reforma da própria OMC. Em particular, a implementação de um sistema de resolução de disputas, paralisado desde 2019, após o bloqueio por parte dos Estados Unidos. Até o momento, pelo menos três dezenas de disputas comerciais internacionais aguardam uma decisão. Devido a essa inoperância, a OMC não consegue assegurar o exercício do direito de seus membros, como muitos Estados têm apontado.

No início da reunião, havia muitos representantes governamentais que esperavam chegar a uma proposta metodológica, algo como um “roteiro” que abrisse as portas para uma reforma interna para desbloquear a paralisia da organização. A possibilidade de que Donald Trump seja reeleito presidente dos Estados Unidos, em novembro próximo, é uma preocupação. Durante seu mandato anterior, Trump protagonizou um confronto comercial aberto com a China e dificultou o caminho da OMC, limitando, assim, sua capacidade de resolver disputas. Ele chegou, inclusive, a ameaçar se retirar da organização, como havia feito em outubro de 2017, quando abandonou a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

Paralisia persistente

Isolda Agazzi, especialista suíça em comércio internacional e porta-voz da Alliance Sud (plataforma de ONGs suíças de cooperação para o desenvolvimento), ressalta que “em duas décadas, o mundo mudou profundamente”. Além disso, que a Índia, a África do Sul e outras grandes nações que ainda se beneficiam de seu status de “países em desenvolvimento” não aceitam mais que os “países desenvolvidos”, em particular os Estados Unidos e a União Europeia, ditem imposições a ser obedecidas.

Segundo Agazzi, para contornar o obstáculo e a paralisia atual, várias nações, especialmente as desenvolvidas, “estão intensificando as iniciativas plurilaterais (ou seja, reunindo várias nações ou regiões) em âmbitos integrais”. A Iniciativa de Facilitação de Investimentos, cujas discussões começaram na Conferência Ministerial de Buenos Aires, em 2017, é a mais avançada. É patrocinada pela China e apoiada por 70 países, e reúne atualmente 110 nações, muitas delas em desenvolvimento.

Críticas de todas as partes

Assim que a agenda de Abu Dhabi foi anunciada, importantes vozes da sociedade civil internacional intensificaram seus alertas, desconfianças e críticas a essa nova Conferência Ministerial. Manifestaram as suas preocupações de que os países possam ser forçados a abrir as suas portas ao investimento estrangeiro sem qualquer possibilidade de controlá-lo ou de enquadrá-lo numa visão de desenvolvimento genuíno. Além disso, devem ser concedidos ainda mais direitos às multinacionais.

A Federação Sindical Internacional de Trabalhadoras/es dos Serviços Públicos (PSI, por sua sigla em inglês), que reúne 30 milhões de membros de 700 sindicatos e 154 países, publicou uma circular interna, em 22 de fevereiro, enfatizando sua oposição à proposta de adoção de um novo Acordo de Facilitação de Investimentos por considerá-lo muito amplo e também porque limita o poder de ação dos Estados-membros.

“Raramente, ou nunca”, argumenta a PSI, “[os governos] são consultados sobre regras comerciais que restringem sua capacidade de estimular as economias locais e regular o investimento para que desfrutemos dos serviços públicos de qualidade de que precisamos”.

Outras áreas políticas fundamentais que poderiam ser restringidas pelas definições que emergiram dessa Conferência são o meio ambiente e os direitos humanos. No caso específico do meio ambiente, a Federação Sindical Internacional defende que “em um momento em que estamos diante de uma transição urgente e vital para economias locais mais justas e de baixo carbono, nossos governos não deveriam abrir mão de sua capacidade de agir e implementar políticas no interesse das pessoas e do planeta”.

A OMC torpedeia a soberania alimentar

Coincidindo com essas vozes críticas, a Via Campesina, principal rede internacional de pequenos e médios produtores agrícolas, convocou seus membros para uma semana de mobilização contra a OMC durante sua assembleia na capital dos Emirados.

A Via Campesina denuncia a incapacidade da OMC há mais de uma década “de chegar a um consenso sobre uma solução duradoura para os estoques públicos de alimentos, apesar do fato de que mais de 80 países em desenvolvimento apresentaram propostas detalhadas”. Isso ilustra claramente o alinhamento [da OMC] com os interesses dos Estados Unidos e de outros países fortemente voltados para a exportação”.

Segundo a Via Campesina, a OMC “tornou-se um espaço onde prevalece a Regra do Poder, com poucos países desenvolvidos determinando os rumos do comércio mundial”. E, por isso, conclui, “apesar da firmeza do Sul Global, ela permanece presa no limbo, aparentemente cavando sua própria sepultura”. E reitera a sua oposição a todos os Tratados de Livre Comércio que ponham em perigo a Soberania Alimentar de um país, minem a autonomia e a autossuficiência das economias locais e tenham efeitos adversos na vida, nas condições de vida e nos salários de todas/os as/os trabalhadoras/es, incluindo migrantes e mulheres.

“Como voz global dos povos da terra, clamamos por um Marco de Comércio Internacional baseado em princípios de solidariedade, justiça social, internacionalismo e soberania alimentar”, conclui La Via Campesina.

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