Comum, caminho para ir além da família?

Para Silvia Federici, o Comum só pode emergir quando adota-se um modelo cooperativo de reprodução, partilhado pelas comunidades. E há exemplos vivos, no Brasil: em casas comunitárias, mas também nos quilombos e nos terreiros

Preparando a pupunha para festa, aldeia Demini, Terra Indígena Yanomami, Amazonas. Foto: Kristian Bengtson, 2003
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MAIS:
O texto a seguir é o capítulo 4  de:
O Comum entre nós — da cultura digital à democracia do século XXI
De Rodrigo Savazoni, pelas Edições SESC
Outras Palavras publicará a obra em capítulos semanais e organizará diálogos quinzenais com o autor, a respeito do tema. Leia o primeiro, o segundo, o terceiro e o quarto capítulos da série

Ao longo dos capítulos anteriores, vimos que o comum ocorre em comunidades que se autogovernam. Também observamos que há uma relação essencial entre os bens comuns (o patrimônio socioambiental, como oceanos, rios e ar, as cidades e o digital) e a forma que elegemos para geri- los e protegê-los. E que no centro da discussão política sobre o comum está a busca por outra forma de viver, baseada na colaboração, na partilha e nos afetos. Falta-nos agora cruzar uma tempestade que assola o mar da complexidade e enfrentar o debate sobre o chamado trabalho reprodutivo. Ou seja, a forma como cuidamos uns dos outros, de nossas crianças e idosos, lavamos nossas roupas, cozinhamos nossa comida, limpamos nossos banheiros, arrumamos nossas casas ou como delegamos isso a alguém. Na discussão sobre o trabalho reprodutivo, interessa-nos aquilo que ocorre “da porta para dentro” e, historicamente, tem ficado a cargo das mulheres, sendo considerado menor ou menos importante que o trabalho produtivo, em um arranjo desigual que caracteriza a sociedade capitalista. Como nos explica a pesquisadora italiana radicada nos Estados Unidos Silvia Federici, durante séculos esses afazeres reprodutivos eram feitos em coletividade, com as famílias e as comunidades partilhando tarefas e dividindo responsabilidades. O cuidado organizava o tecido social, e a solidão não era regra. Com o surgimento do capitalismo, a reprodução foi privatizada e desenvolveu-se uma estratégia perniciosa de isolamento que até os tempos atuais se expressa em relações de gênero injustas e desiguais: “Está profundamente esculpido em nossa consciência que as mulheres foram designadas como o comum dos homens, como uma fonte de riqueza e serviços colocados à sua disposição, do mesmo modo como os capitalistas se apropriaram da natureza” 1.

Federici é um dos expoentes da visão feminista do comum. Seu livro mais conhecido, Calibã e a bruxa (Elefante, 2017), é um estudo sobre a origem do capitalismo a partir da perspectiva das mulheres. De acordo com ela, as pesquisas de Marx e Engels, e de seus inúmeros seguidores, lançam luz sobre o trabalho assalariado, desconsiderando em grande medida a questão da reprodução e do trabalho doméstico. Assim, Federici refaz o percurso feito pelo autor de O capital e, ao regressar ao fim da Idade Média, à chamada fase de acumulação primitiva, localiza que, apesar de já existir divisão sexual do trabalho na época da servidão, não existia uma hierarquização entre o que era produzido por mulheres e por homens. Até aquele momento, homens e mulheres cultivavam a terra em comunidade, em regime de subsistência, baseando-se no valor de uso do solo. É certo que as mulheres já desempenhavam mais que os homens o papel de cozinhar, lavar, cuidar, mas essas tarefas eram valorizadas e reconhecidas como essenciais à vida. Porque o trabalho reprodutivo feito de forma coletiva era fonte de organização política e poder social para as mulheres. Em Marx, o cercamento dos comuns, com a expulsão dos camponeses de suas terras, empurrando-os para o trabalho assalariado, está na origem da criação do capitalismo. Outros autores destacam como instituinte desse sistema a colonização da América e a escravidão negra, que seriam responsáveis por gerar acúmulo de dinheiro para a Europa.

Federici introduz em seu livro um elemento adicional: a caça às bruxas, um dos maiores genocídios já perpetrados em todos os tempos, que dizimou mulheres na Europa e também na América. Por três séculos, mulheres acusadas de bruxaria foram enforcadas e queimadas em praças públicas, na frente de seus familiares e amigos, para servirem de exemplo, fortalecendo o medo social e interrompendo a troca ancestral de conhecimentos transmitidos de mães para filhas – muitas das bruxas eram curandeiras e parteiras, ou seja, detentoras do dom de trazer à vida e evitar a morte. Naquele momento também se produziu e se difundiu farta literatura – como o Malleus Maleficarum – que atribui às mulheres a origem de todo mal. A tese de Federici defende que a caça às bruxas foi fundamental para enfraquecer a cultura camponesa, ao promover a desigualdade na divisão social entre homens e mulheres, e também para disciplinar os corpos, no sentido de adequá-los para a venda da força de trabalho.

Também é nesse momento histórico que tem início o cisma entre o trabalho produtivo – em troca de um salário – e o trabalho reprodutivo – feito para a manutenção da vida, a priori sem valor de troca. Aquele, atribuição dos homens. Este, das mulheres. Peter Linebaugh escreve: “O homem comum havia se separado da mulher comum e da terra comunal. O homo sapiens se transformou em homo economicus” 2. Isso perdurou por séculos, até que o capital necessitasse de um contingente maior de trabalhadores e passasse a exigir das mulheres a jornada dupla, produtiva-reprodutiva. O que segue em curso até os dias atuais. No Brasil, conforme aponta o estudo Mulheres e trabalho, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) 3, as tarefas domésticas continuam sendo majoritariamente papel das mulheres. Os dados apontam que metade dos homens realiza algum trabalho reprodutivo, enquanto esse percentual no caso das mulheres é de 90%. As mulheres dedicam à faxina uma média de 25,3 horas semanais e os homens apenas 10.

Engana-se, porém, quem acredita que a caça às bruxas é um fenômeno localizado no tempo e no espaço. Para Federici, trata-se de um processo que se renova todas as vezes que há o cercamento de terras comunais, o que ocorre atualmente sobretudo na África e nas comunidades indígenas da América Latina.

Como desmontar essa armadilha histórica? A ativista e pesquisadora defende que o comum só pode emergir quando nos conscientizarmos da necessidade de um modelo cooperativo de reprodução, em que as comunidades partilhem efetivamente os cuidados com o viver, eliminando as fronteiras entre o pessoal e o social, “entre o ativismo político e a reprodução da vida cotidiana”.

Se a casa é o oikos sobre o qual se constrói a economia, então são as mulheres, tradicionalmente as trabalhadoras e as prisioneiras domésticas, que devem tomar a iniciativa de reivindicar o lar como centro da vida coletiva, de uma vida perpassada por diferentes pessoas e formas de cooperação, que proporcione segurança sem isolamento e sem obsessão, que permita o intercâmbio e a circulação de posses comunitárias e, sobretudo, que lance as bases para o desenvolvimento de novas formas coletivas de reprodução.4

O capital ou a vida! Um grito entalado na garganta. Uma frase que inspira a agir. Formas alternativas de produzir e se relacionar emergem das mulheres em movimento, revolucionando o trabalho reprodutivo. Isso pode ser observado nas várias experiências de hortas comunitárias urbanas, em que se busca garantir a soberania alimentar por meio de autogestão; nas lavanderias coletivas do Nordeste do Brasil; na cozinha comunitária dos acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e dos movimentos sociais por moradia; nas redes de mães e pais, que pretendem oferecer apoio mútuo à criação dos filhos e assim enfrentar o isolamento unifamiliar; em feiras solidárias e bazares de trocas de produtos ou serviços ou em redes de empréstimo de objetos, que são práticas ancestrais de inúmeras comunidades, inclusive as religiosas; nas estratégias de convívio intergeracionais – tão comuns no Japão, por exemplo – em que jovens e idosos intercambiam saberes e afetos; nas casas coletivas (co-housing) ou comunidades de moradia, estratégias para fugir do isolamento e partilhar as tarefas domésticas.

La Maison des Babayagas, por exemplo, é uma alternativa feminista de moradia para idosas inaugurada em 2012 na região metropolitana de Paris, França. “Babayaga” é o nome de uma bruxa da mitologia eslava, e o projeto consiste em uma habitação social autogestionada por um grupo de idosas que optaram por viver em comunidade e com independência. Dos 25 apartamentos da casa, 21 são adaptados e 4 são reservados para estudantes. O gasto é de 420 euros por mês. A casa fica em uma zona central do bairro de Montreuil (Seine-Saint-Denis), próxima de comércio e transporte público. Em 2016, viviam 21 idosas na casa. Moram em quartos pequenos, compartilhando espaços comuns, sem equipe de cozinha, enfermagem ou qualquer outro serviço profissional.

Todas as moradoras concordam em dedicar 10 horas semanais às tarefas coletivas e partilhar recursos para garantir visitas médicas mensais. Nessa experiência, o morar não é apenas residir. Uma série de atividades ocorre, como cursos, grupos de discussão, escrita criativa e shows. As mulheres são encorajadas a realizar atividades em prol do bairro e agir social e politicamente. A mansão custou 4 milhões de euros e teve patrocínio de oito financiadores públicos, mas é gerida por uma associação sem fins lucrativos. Como observa Federici:

Essas práticas constituem, do mesmo modo que os reflorestamentos coletivos e a ocupação de terras, a expressão de um mundo em que os laços comunais ainda são poderosos. Mas seria um erro considerar essas atitudes como pré-políticas, “naturais” ou produtos da “tradição”. Na realidade, […] há nessas lutas uma identidade coletiva; elas constituem um contrapoder tanto no espaço doméstico como na comunidade e abrem um processo de autovalorização e autodeterminação sobre o qual temos muito que aprender.5

Modificar os padrões do modelo de reprodução baseado na exploração não é tarefa simples. Em 2013, a Casa de Lua surgiu em São Paulo para ser um experimento de auto-organização comunitária de mulheres. Era um arranjo intergeracional, mas liderado sobretudo por jovens, em torno dos trinta anos.

Ocupando um casarão alugado, localizado na zona oeste da capital paulista, as mulheres iniciaram suas atividades como coletivo e depois optaram por se formalizar como uma associação cujo objetivo era sintetizado por uma frase: “fazermos juntas aquilo que não podemos fazer sozinhas”. Do ponto de vista prático, a casa era um centro de reflexão e de projetos em torno da questão de gênero, não apenas da porta para fora, mas sobretudo da porta para dentro.

A Casa de Lua não tinha funcionários. As crianças e os idosos eram bem- vindos. O tempo do feminino era respeitado. O recolhimento do lixo era coletivizado. Numa lousa localizada na sala estavam fixados os dias e horários da coleta seletiva e a dos resíduos não recicláveis. A faxina, no início da experiência, era motivo de festa. Realizada todas as sextas-feiras, depois quinzenalmente, a limpeza costumava reunir cerca de vinte mulheres, as que estavam mais vinculadas ao dia a dia da organização. A alegria era um imperativo: limpavam dançando, bebendo, conversando e compartilhando suas técnicas. Com o tempo, porém, o número de pessoas disponíveis para esses encontros foi minguando. A questão de contratar uma funcionária para a limpeza tornou-se recorrente nas reuniões, dividindo opiniões das integrantes. A casa mantinha como atividade permanente um grupo de estudos sobre a obra de Federici, o que as ajudou a compreender melhor o desafio do trabalho reprodutivo. Mas a compreensão política não garantia a resolução de uma questão elementar: como organizar o tempo entre o trabalho produtivo e o reprodutivo? Quando a Casa de Lua encerrou suas atividades, cerca de três anos do início de suas atividades, a limpeza era feita por uma empregada doméstica. A experiência, porém, é lembrada pelas mulheres que participaram do projeto e pelo público que frequentava o espaço como um importante laboratório de aprendizagem baseado no comum.

Um olhar imediatista poderia julgar que a Casa de Lua fracassou. Mas o que de fato ocorreu é que essa experiência foi precursora da primavera feminista que ganhou força nos últimos anos. As dificuldades encontradas pelas ativistas são as mesmas que todos enfrentamos quando tentamos desconstruir padrões político-culturais historicamente construídos. O que a Casa de Lua testou foi um processo prático de desaprendizagem, e ninguém que frequentou a cozinha de azulejos verdes daquele centro cultural voltou a olhar para a questão de gênero e para a exploração do trabalho reprodutivo do mesmo jeito.

Quilombos, terreiros e alegria‌

Em julho de 2016, a rapper e historiadora Joyce Fernandes, conhecida como Preta-Rara, postou nas redes sociais um relato sobre os maus-tratos que sofria quando trabalhava como empregada doméstica na cidade de Santos, no litoral de São Paulo: “Joyce, você foi contratada para cozinhar para a minha família, e não para você. Por favor, traga marmita e um par de talheres e, se possível, coma antes de nós na mesa da cozinha; não é por nada; só para a gente manter a ordem da casa”. O curto mas incisivo texto era a reprodução de um recado a ela dado por sua patroa. O post foi publicado acompanhado da hashtag #euempregadadoméstica e viralizou, atingindo milhares de pessoas. Com a enorme repercussão, Joyce começou a receber denúncias de abusos narradas por mulheres de todo o Brasil e resolveu criar uma página para compartilhá-las.

Assim nasceu o projeto #Euempregadadoméstica, que produz conteúdos para redes sociais e gerou uma série audiovisual, um livro e também ações ativistas em defesa dos direitos humanos.

De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT)6, o Brasil detém o maior contingente de empregadas domésticas do mundo. São cerca de 6 milhões, o que corresponde, segundo dados oficiais, a 14% do total das mulheres brasileiras. Até 2015, quando foi aprovada a lei regulamentando o trabalho doméstico no país, 70% delas não possuíam carteira assinada. Quatro em cada cinco domésticas são negras.

Conforme nos lembra a escritora e pesquisadora Bianca Santana, para cerca de metade dessas trabalhadoras (48%), o trabalho de cozinhar, lavar, limpar e cuidar é realizado duplamente: em suas casas e comunidades, de forma não remunerada, e nas casas das patroas, recebendo baixos salários. Em seu artigo “Mulheres negras: um convite ancestral ao comum e ao bem viver”, ela descreve a face brutal dessa exclusão, mas também nos lembra que as estratégias de sobrevivência criadas por essas mulheres são exemplos de bens comuns.

Da precariedade, afinal, pode brotar a potência. Recorrendo às memórias de sua infância, ao convívio com sua mãe e sua avó, a autora do livro Quando me descobri negra descreve práticas comunitárias de partilha que conformam tecnologias de convívio humano: as vizinhas que cuidam das crianças umas das outras; o fogão compartilhado em que uma oferta o gás e outra mantimentos; a pequena criação de codornas que garante um troco adicional e também o ovo para as refeições; a horta de ervas que curam e acalmam. O comum de Santana não é aquele inspirado nas terras coletivas da Europa medieval, mas outro, o dos quilombos, territórios negros comunitários que durante os mais de trezentos anos de escravidão legal foram o epicentro da resistência da população preta que conquistava independência ou fugia da opressão. Nessa perspectiva, o comum é um conceito associado à memória e à ancestralidade da diáspora africana, e nos convoca à luta pela superação do racismo, do sexismo e das demais formas de preconceito que destroem o tecido social.

Na desumana travessia do Atlântico, a brutal violência da escravidão e as inúmeras dificuldades impostas pelo racismo institucional e a discriminação da pós-abolição, que se mantém ainda hoje, as mulheres negras trançam seus cabelos, cantam, dançam, adornam seus corpos, contam histórias, fazem roupas de boneca, cozinham, cuidam das ervas, alimentam seus filhos. A afirmação e recriação de costumes e hábitos de diversas etnias, portanto, inscreveram no cotidiano das mulheres negras brasileiras condutas específicas.7

Esse comum-quilombola é também aquele que Preta-Rara persegue. Seu projeto #Euempregadadomestica promoveu no primeiro semestre de 2017 um festival com atividades voltadas à ideia de cuidado para lançar um guia de direitos para empregadas domésticas. O plano de Fernandes era oferecer às trabalhadoras atenção especial, com massagens, oficina de turbantes, comidas saudáveis, cosmética e odontologia natural, jogos e brincadeiras, para lembrá-las que quem cuida pode ser cuidada. Voltando aos ensinamentos de Federici, constatamos que os bens comuns constituem o “mecanismo primordial pelo qual se criam o interesse coletivo e os laços de apoio mútuo”. São uma forma de resistência pacífica e uma chance de valorizar as trocas horizontais e experienciar a solidariedade.

Não há comum possível a não ser que nos neguemos a basear nossa vida e nossa reprodução no sofrimento de outros, a não ser que rechacemos a visão de um “nós” separado de um “eles”. De fato, se o comum tem algum sentido, este deve ser a produção de nós mesmos como sujeito comum. Esse é o significado que devemos obter do slogan “não há comuns sem comunidade”. Mas entendendo “comunidade” não como uma realidade fechada, como um grupo de pessoas unidas por interesses exclusivos que as separam dos outros, como comunidades baseadas na etnicidade ou na religião. Comunidade entendida como um tipo de relação baseada nos princípios de cooperação e de responsabilidade: entre uns e outros e em relação às terras, às florestas, aos mares e aos animais.8

O quilombo é uma referência para as mulheres negras, mas Santana também cita as rodas de samba e os terreiros de candomblé como extensão desse raciocínio. Na edição de 2017 do festival alemão de cultura digital Re:publica, o desenvolvedor e pesquisador Ricardo Ruiz participou da mesa “Criando Novas Organizações para o Comum”, em que defendeu justamente uma visão do terreiro como bem comum. Ruiz é filho de santo da casa Ilê Axé Oxum Karê da Iyalorixá Mãe Beth de Oxum. Em seu trabalho, ele funde a ética hacker dos desenvolvedores do software livre com a religiosidade de matriz africana.

Estudioso da inovação, inverte a ordem dos fatores e, ao invés de perseguir o futuro, olha para a ancestralidade em busca do novo. O candomblé é a matriz. Certa altura, em sua palestra, ele indaga: como explicar uma religião que, apesar da perseguição generalizada, por parte do Estado, dos católicos e dos evangélicos, manteve vivos seus rituais, práticas e conhecimentos? Essa cultura só segue viva e preservada graças às práticas comunitárias. Os terreiros de candomblé são espaços de cuidado, autogovernados, em que se pode produzir e compartilhar saberes e alimentos entre seus membros, o que para Ruiz é a essência do viver.

Em uma entrevista a Bruno Tarin, para o livro Cartografia das emergências, Mãe Beth de Oxum enfatiza um outro aspecto essencial da democracia dos terreiros: não separar a militância da festa. Afinal, o comum da cultura popular brasileira é cria da alegria. “Isso fica para os partidos, isso fica para os intelectuais. A gente mistura essas coisas, ao mesmo tempo que está metendo o cacete está também bebendo, está brincando, está curtindo, está dando umbigada.” 9

Todo primeiro sábado do mês, desde 1998, sem recursos de governos ou do mercado, por meio de partilha e articulação em rede, a comunidade liderada por Mãe Beth realiza as sambadas. A festa ocorre no bairro de Guadalupe, Olinda, no estado de Pernambuco, onde foi fundado o Centro Cultural Coco de Umbigada, organização sem fins lucrativos que realiza atividades artísticas, culturais e educacionais. Segundo Mãe Beth, as sambadas são eventos que juntam no beco, em frente ao terreiro, mais de 2 mil pessoas, sem estrutura de palco, aproximando os moradores locais com gente de todo o país e do exterior. Tudo ocorre no chão em que se pisa, o chão sagrado por onde também transitam orixás e as entidades indígenas. “Isso é da alma! Isso é a alma das pessoas.” A experiência do terreiro de Mãe Beth é a de um comum multidimensional. Digo isso porque nessa experiência se associam pelo menos cinco bens comuns: o terreiro de candomblé e a Jurema Sagrada – prática xamânica de origem indígena – como espaço de articulação comunitária; a rua como espaço urbano ocupável e reprogramável pela cidadania; a cultura popular do coco e da sambada, expressão ancestral e coletiva, construída por corpos resistentes que dançam e cantam sem fazer distinção entre natureza e cultura; as tecnologias livres, softwares e hardwares, que são usados sobretudo para a produção de narrativas artísticas; isso tudo mediado pelo brincar.

[…] queria acrescentar que a brincadeira alimenta a nossa alma, mobiliza nossa comunidade, nos faz refletir sobre como queremos nossas cidades. Pra prédios e estacionamentos? Ou pra gente na rua e a gente se misturando nela? […] O Terreiro e a brincadeira do Coco traz muito sentido à nossa vida e à vida cultural da nossa cidade. A família e a comunidade tornam-se a extensão da brincadeira. A tecnologia tem que ser um instrumento para melhorar nossas vidas, ao nos apropriarmos das tecnologias se criam possibilidades, arranjos para rodar uma chave que sempre teve fechada pra gente: a nossa comunicação.10

Neste capítulo procurei promover uma ponte entre os estudos do comum – cuja bibliografia é majoritariamente do norte global – e as perspectivas feministas, afro-brasileiras e indígenas desse conceito. A tarefa de desenvolver esse campo está sendo empreendida com maior propriedade pelas mulheres pesquisadoras e avança gradualmente. No campo da militância, o comum aparece – se assim podemos dizer – em sua vertente latino-americana.

A Marcha das Mulheres Negras de 2015, por exemplo, adotou pela primeira vez como lema o bem viver – conceito de origem indígena que, como descrevemos anteriormente, guarda grande semelhança com a ideia de comum, ao afirmar a dimensão comunitária da vida, enfatizando o afeto, o respeito e os direitos da natureza. O lema era “contra o racismo e a violência e pelo bem viver”. Em 2017, no Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, a marcha convocada carregava o lema “Mulheres negras e indígenas por nós, por todas nós, pelo bem viver!”. Os povos indígenas brasileiros também reivindicam a ideia de bem viver. Um encarte produzido pelo jornal Porantim, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), reúne vários depoimentos de lideranças de todo o Brasil. Por isso, para encerrar este capítulo, que não tem fim, reproduzo a frase de Kura Kanamari, do vale do Javari, no Amazonas: “Estamos lutando para viver com nossa cultura, falar nossa língua, comer o peixe pescado na hora, sentir o cheiro da floresta, isso é o bem viver! […] Não falo por um povo só. Falo por todas as pessoas que vivem e que respeitam a vida dos outros. Ninguém vive só!”


[1] Silvia Federici, op. cit., p. 157.

[2] Peter Linebaugh, op. cit., p. 279.

[3] Disponível em: <http://trabalho.gov.br/images/Documentos/Noticias/Mulher_e_trabalho_marco_2016.pdf>, acesso em: 20 abr. 2018.

[4] Silvia Federici, op. cit., p. 156.

[5] Ibidem, p. 152.

[6] Cf. Marina Wentzel, “O que faz o Brasil ter a maior população de domésticas do mundo”, BBC Brasil, 26 fev. 2018. Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/brasil-43120953>, acesso em: 20 mar. 2018.

[7] Bianca Santana, “Mujeres negras brasileñas y sus prácticas colectivas del común”, in: Adriana Benzaquen; Marcela Basch (orgs.), Comunes: economías de la colaboración, pp. 78-9. Disponível em: <http://www.encuentrocomunes.com/documents/libro_comunes.pdf>, acesso em: 23 maio 2018.

[8] Silvia Federici, op. cit., p. 154.

[9] Alana Moraes; Bruno Tarin; Jean Tible, Cartografia das emergências, São Paulo: Friederich Ebert, 2015, p.64.

[10] Ibidem, p. 77.

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