Arte de rua, trincheira da luta anticolonial

Em toda a América, sobre os muros cinza, pretensamente “limpos” e “neutros”, uma profusão de cores, estilos e mensagens. A insubmissão é por vezes cooptada, mas é expressão das opressões e da multiplicidade ancestral

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Por Roberta Traspadini, na coluna Diálogos Pedagógicos | Imagem: Robinho Santana

toda autêntica obra de arte deveria ser revolucionária, isto é, subversiva da percepção e compreensão, uma denúncia da realidade estabelecida, a manifestação da imagem da libertação.

(Marcuse, A dimensão estética: crítica à ortodoxia marxista)

Alguns elementos iniciais

O que define a condição estrutural de dependência da América Latina é a dinâmica geral de produção social de riqueza capitalista em sua fase imperialista. A dependência é condicionada por um processo maior e, ao mesmo tempo, condicionante de relações sociais particulares, próprias de cada realidade nacional.1

O imperialismo estadunidense — após duas grandes guerras mundiais e uma crise que reestruturou o sistema monetário internacional — configurou um novo regime de poder, associado à hegemonia do dólar, e organizou, a partir do Norte, a estrutura de dependência latino-americana no século XX.

Uma das características marcantes de propagação da ordem hegemônica dos capitais estadunidenses na América Latina é a construção de imagens como produção simbólica e geral de um processo que deve ser copiado, digerido como padrão, gravitando por cima dos conflitos sociais, como se tudo, no que diz respeito ao desenvolvimento capitalista naquela economia, tivesse dado certo.

A produção das imagens das guerras, dos nacionalismos e das marcas que dimensionavam o sonho americano no mundo — como a bandeira dos EUA e do Brasil nas janelas nos remetem à invasão reprodutora do mito do desenvolvimento — assentou-se, sempre, na educação pelos sentidos, especialmente os visuais e auditivos. Propagandas, jingles, produções estéticas de perpetuação de verdades, vendiam coisas e, através destas, solidificavam sonhos de pertencimento a um projeto introjetado de fora para dentro.

A era das marcas define, assim, um tipo e sentido de inclusão via reprodução dos sonhos. A galera da nike, da coca-cola versus as bandas dos consumos comuns, o popular, que estão à margem. A imagem e o discurso vindos do poderio continental disseminam verdades absolutas com a pretensão de serem reproduzidas ao longo de toda territorialidade produzida mais ao Sul.

Ao mesmo tempo, também ao longo do século XX no interior dos EUA, à medida que as contradições emanadas do apartheid social contra negros e latinos acentuavam-se, surgiam, nos guetos, nas periferias e demais espaços públicos, as potências rebeldes dos gritos destes grupos na forma da música, da arte de rua, como forma de reação à exclusão. A composição étnica e racial dos Estados Unidos não corre longe da realidade que a alimenta: a diversidade dos seres latinos e africanos que habitam o continente após séculos de invasão colonial.

A dinâmica desigual é tão potente na economia mantenedora do dólar, controladora com ares de dona do mundo do século XX que, quanto mais os gritos nas ruas ecoavam como contestações reais à ordem, mais os financiadores das guerras tornavam-se intencionalmente fomentadores da arte. Rockefeller, Coca-Cola, Pepsi-Cola, Nike, entre outras, apresentaram-se ao longo dos anos 1970 e 2000 como financiadoras da arte de rua, dos cantores pops e como patrocinadores de diversas modalidades esportivas.

As contestações à ordem estão presentes: nos desenhos nos muros dos guetos; nos choros e risos que emanam dos saxofones através dos sons negros e populares do blues; na potência grave e aguda dos corais compostos por mulheres nas igrejas protestantes dos bairros latinos e negros. O popular e a arte não se divorciaram ao longo das história, ainda que possam ser separados pelos reguladores da ordem ou pela midiática ideia de certo e errado propagada para ser reproduzida como verdade, socialmente.

Os guetos estadunidenses foram, aos poucos, tornando-se espaços-tempos do financiamento privado das grandes corporações monopolistas. Produtores de cercas, os grandes capitais instituíram nos próprios territórios populares, a concreção da arte de rua, desde que não saíssem destas fronteiras delimitadas.

A arte de rua no capitalismo excludente, tanto do Norte como do Sul, significa existência, resistência, potência dos de baixo. Talvez seja a demarcação mais evidente de que a arte de rua em todo o continente americano é latina e caribenha. Isto ocorre por conta dos fluxos migratórios inerentes à lógica espoliadora do capital. Nos Estados Unidos, no Canadá, na América Latina e Caribe, arte de rua é expressão popular, tanto a pintura sobre seus processos, como os pintores e suas raízes.

A exclusão, ainda que mais severa do lado de cá, não implica ser inexistente do lado de lá. Essa diversidade da desigualdade conforma e confirma que existem sujeitos que tendem a romper com a sujeição, em uma sociedade que tende a apresentar o moderno nos tons questionadores das cores, em nome a arquitetura e estética clean. Neste movimento de tese e antítese produz-se muitas sínteses no processo coletivo de produção da arte de rua. O pulsar da diversidade das cores presentes na pintura de rua, inclusive nisso que intencionalmente propagam como neutro, contrapõe-se ao intencional sentido do cinza, do branco (como sinônimo de limpo e avançado) e do preto como reprodução simbólica de uma desigual ordem social (como obscuro, sujo, atrasado).

Os donos da ordem e seus perpetuadores tendem a apresentar as cores branca, cinza e preta como ausentes de diversidade, quando em realidade, estes tons são a expressão concreta da mistura como possibilidade. Assim como na vida, na arte as cores, seus significados, usos e sentidos estão em disputa. Entre a imagem e visão dos transeuntes correm mundos de histórias possíveis sobre a mesma imagem.

O cinza a partir da determinação mercantil é a conformação nas paredes, de uma real segregação social que não suporta a mistura, a diversidade, ou sequer a presença da diferença. Condição histórica, social e cultural que se origina de uma economia política cujo desenvolvimento para poucos parece afirmar-se como possível de prescindir muitos e muitas vidas.

A criminalização e a cooptação, via recursos, sempre foram armas potentes de silenciamento cultural, político e social, resultantes da hegemonia econômica do capital. Em plena era neoliberal, nascida das crises econômicas dos anos 1970 – demarcadas pelo crescimento da guerra imperialista e o peso da era do petróleo – a arte de rua denuncia a desigualdade e anuncia a existência dos/das de baixo. Isto vale para o Norte e para o Sul do continente.

No entanto, frente à intencional forma de manipular, dando dinheiro e construindo uma ideia aparente de inclusão, também mantém-se a arte engajada das pessoas que dizem não. Esta parece ser fruto de muitos processos em que o popular toma para si o direito à cidade, à vida, à voz e à tinta. Frente aos históricos saques, os artistas de rua colocam-se, a partir dos tons de suas consciências e coletividades, como protagonistas em vozes e cores do real significado de se viver à margem.

É na margem de uma sociedade que combina poucos dentro, muitos fora com sonhos de fazerem parte, e outros tantos excluídos da real condição de sobrevivência, que precisamos entender a arte de rua — na qual se insere o grafite, a pichação, e outras expressões – como encarnação do movimento dialético existente em duas dimensões violentas historicamente determinadas: – o público e o privado; – autonomia versus subordinação. Portadores de tudo o que opera na margem, é sobre eles e elas que serão definidos os estereótipos de marginais, marginalidades, contraventores perigosos à ordem do moderno Estado de direito – penal — do capital.

O público e o privado

Na primeira dimensão violenta que emana da relação entre o público e o privado, a arte de rua coloca em movimento o debate sobre o direito à cidade em plena condicionante da primazia do direito à propriedade privada originada, desde sempre, pelo latifúndio, pelo monopólio da terra (no campo e na cidade) e das diversas dimensões da escravidão (colonial e moderna) que resultaram do passado colonial. Mais do que isto, o público privatizado, ao privar os sujeitos de bens, espaços e estruturas comuns, reitera a vida como um grande negócio demarcado pela compra-venda.

Ante a potência das via públicas, dos espaços públicos e das estruturas públicas como espaços-tempos do convívio, do comum, do social como possibilidade para todos, a arte de rua é demarcada pelos diferentes tons da desigualdade.

Ao mencionar isto, precisamos recuperar uma história pouco contada no Brasil, sobre a incidência da arte mural mexicana após a vitória da revolução (1910-1924). Foi como política pública que José Vasconcelos potencializou a pintura mural como elemento substantivo de educação popular para camponeses, indígenas e demais importantes protagonistas da luta social daquele então.

O México, economia dependente, tocada em todos os moldes pela violência da invasão colonial espanhola e posterior violência de guerra dos Estados Unidos sobre seu território – cuja guerra fez com que o México perdesse mais de 40% de seu território no final do século XIX -, foi o protagonista da arte mural, arte de rua, como história, geografia e economia política da resistência.

No México de Zapata e Villa, das soldadeiras e dos artistas de diversas partes engajados no Partido Comunista Mexicano, o muralismo apresentou-se como arte pública, oriunda de política pública, dando centralidade ao popular na voz, nas imagens, na história anterior e posterior à invasão colonial.

A arte pública como um programa de Estado. A arte pública como um instrumento político de alfabetização e educação dos sentidos para o novo que, naquele então, nascia: a revolução mexicana, a potência dos camponeses, dos índios e dos negros presentes na história do continente.

Utilizar os espaços públicos como céu aberto para a reescritura da história, dando ênfase aos até então oprimidos e superexplorados. Essa era a consigna presenta na arte pública orientada pela história da revolução. As escolas, os palácios, a universidade, viraram páginas em branco que ganhariam as cores da fusão entre o passado pré-colombiano e o posterior processo de constituição de uma nação sequestrada, mutilada, mas, ainda assim, viva.

A arte mural foi tão central e importante que, entre os 1940 e 1960, ganhou os Estados Unidos e projetou, em museus, galerias, e espaços públicos e privados, a potência da riqueza da comunicação e expressão dos artistas-intelectuais mexicanos. Entrou, inclusive, na seara das disputas sobre o papel do artista e da arte em uma sociedade de classes. David Alfaro Siqueiros, Aurora Reyes, Diego Rivera e Clemente Orozco, eram alguns dos grandes nomes. Ao lado deles, Tina Modotti, Frida Khalo, José Revueltas, Juan Rulfo, Alberto Hijar, entre outros grandes nomes das artes e das lutas políticas, neste momento fundidas.

Foram mais de 40 anos de produção coletiva de imagens como artes públicas murais, associadas a jornais (el Machete)2, fotografias e demais sentidos estéticos. Mas, bastou que a aceleração do tempo histórico chegasse na aerodinâmica da produção flexível, para que essa história fosse rapidamente substituída pela sociedade de consumo presente nos shoppings centers. No México coexistem esses vitoriosos processos da revolução e a ofensiva neoliberal e seus outdoors. Ambos plasmados nas ruas das cidades.

À medida que o neoliberalismo ganhou força, também o privado apropriou-se, de forma intensa, dos domínios que até então eram públicos. Empresas, escolas, espaços públicos foram cedidos, apropriados, cercados pela lógica privada do capital.

A arte, como potência comum disponível nos espaços públicos, passou também a ser submetida à política dos cercamentos contemporâneos. Não há farpa maior do que a produção violenta de um imaginário coletivo acerca de quem são os criminosos, quais suas cores e como devem ser tratados.

A apropriação privada de processos públicos foi tão acelerada a partir dos anos 1970 que é impossível trabalhar a arte de rua sem mencionar a aceleração e intensificação do saqueio, da pilhagem, dos extrativismos presentes no campo e na cidade, subordinados à lógica do capital financeiro monopolista.

Autonomia x subordinação

Na América Latina a violência do privado sobre o público demarca a segunda esfera de reflexão sobre a arte de rua. O Estado no capitalismo dependente atua para responder a uma dupla determinação: a dos interesses dos capitais hegemônicos internacionais, e a dos interesses da oligarquia agrária que atua no espaço-tempo físico e simbólico nacional. Nesse sentido, a arte pública após os anos 1970 na América Latina é igual a contravenção contínua à ordem do capital.

No Brasil, até a abertura democrática de 1984, a arte de rua se mistura com a luta contra todo tipo de violência emanada da ditadura, da cassação das liberdades de expressões e das torturas que culminam em mutilações do ser social. Em 20 anos de ditadura formal, a arte de rua não poderia ser outra coisa, que não um contraponto à perversidade da ordem vigente. Os uniformes dos militares e as cores das paredes davam o tom da tirania de um único sentido para o verde e o cinza como camuflados para impor-se coercitivamente na ordem social. O cinza e o verde como as cores dos anos de chumbo.

Ao terminar o período de ditadura formal – 1984 – e entra em cena a democracia formal, porém não real, a arte de rua se mescla com o cotidiano das ruas como casas para os/as sem tetos das cidades. Tanto a arte como a vida demonstram a história dos/das que vivem à margem. É dessa mescla entre artistas de rua e uma marginalidade construída e controlada presentes em uma sociedade desigual no direito e paritária nos deveres, que se intensifica a visão coletiva da arte de rua como “suja”, “criminosa”, “delinquente”. E não poderia ser diferente, afinal, as cidades foram feitas para a circulação de mercadorias e de dinheiro sobre e contra as pessoas.

Manter fora do campo de visão os sujeitos que estão à margem, torna-se vital para a perpetuação da lógica do capital. Essa propagação da violência estrutural sobre os corpos e sentires da população como um todo, demarca a vitória das ideias dominantes de segregação social, racial e de gênero nos nossos países latino-americanos e caribenhos. O Estado, responsável formal pela garantia de uma ordem ancorada no direito à propriedade, na qual não cabem determinados sujeitos, pune, projeta e mantém fora das ruas, os populares. Estabelece o encarceramento simbólico e concreto de muitos sujeitos. Isto vale para os produtores de feiras, de artesanatos, para os artistas e suas diferentes expressões artísticas. A arte de rua é difamada, destruída, estereotipada.

A rua transformou-se, rapidamente, em espaço privado. Assim, tanto o urbano apresenta-se como a capital da ideia de modernidade, como esta somente existe eliminando do imaginário coletivo o papel protagonista das populações do campo.

As cidades tragam as contradições na mesma velocidade que produzem imagens de consumo velozes.

Em uma população sem tempo para comer, conviver e compartir, a mutilação dos sentidos é apenas uma arma a mais de dominação. Arma que corrói as histórias presentes no processo de dominação. Mas, ainda que a dominação reine, isto não significa existência sem outras resistências, respiros, insistências em poder ser.

No corre-corre intenso das cidades reinam: o não me toque, o não te conheço, nem reconheço. A sociedade que há séculos constrói o individualismo, enfim, pôde vivenciá-lo em seu mais alto estágio: o da exclusão entre os excluídos. Sem necessidade de cercas visíveis, as cidades materializam a potência da segregação nos corpos e mentes dos transeuntes apressados para chegar a seus destinos.

Alguns elementos a serem considerados

A arte de rua, na América Latina, é herdeira das revoluções e contestatária das múltiplas fraturas históricas, feituras de uma classe sobre outra, com matizes de raça e gênero que perpetuam os estereótipos de violência. Em Minas Gerais, o Circuito Urbano de Arte (CURA-BH) coloca em movimento as contradições das muitas expressões que habitam as cidades. E provoca reações esperadas, afinal, o Brasil foi, ao longo de mais de 500 anos, educado para a manutenção violenta da segregação.

A beleza da arte de rua presente nos prédios altos da capital, é interpelada na história contemporânea como agressora simplesmente por deixar gigante aquilo que no dia a dia tem existência majoritária nas cidades, mesmo que nossos olhos não queiram ver, existem: mulheres, famílias e culturas negras, índias e camponesas. O grafite quando as pinta, agride a moral estabelecida! Mas por quê? Porque somos um povo que teve historicamente negada a diversidade que nos compõe e que foi educado para celebrar a cópia de uma modernidade mal feita à custa de muito ódio, chibata, e, na atualidade, demasiadas armas de fogo contra os povos.

O que parte dos moradores, proprietários privados dos prédios em que as artes foram modeladas reforça, é a reprodução da história hegemônica dos barões do café, dos escravocratas que ainda habitam nosso (in)consciente cotidianamente. Nesta afirmação da práxis dominante, negam o que realmente são, para reproduzir o que jamais alcançarão ser: proprietários privados dos meios de produção.

O CURA expõe as veias abertas do nosso continente. E demarca que na era do agronegócio, que se acha pop e tec mas não anuncia as próprias sequelas que produz à luz dessa nova fase de expansão da fronteira agrícola no continente, o que está em jogo é a margem de disputa que ainda temos sobre o sentido do público, em uma sociedade cujas cercas estão por todos os lados. E com elas a violenta lógica do sensível e do concreto da primazia da propriedade privada sobre a vida.

O capitalismo dependente latino-americano, do qual o Brasil faz parte e se destaca como potência intermediária reprodutora dos anseios hegemônicos no continente (subimperialismo), hospeda terrores antigos. Entre eles, o fascismo, a tortura e os desaparecimentos contínuos.

A arte de rua é a forma-conteúdo do grito. Demarca as histórias, as memórias e a cotidianidade que pulsa nas cidades de forma sempre plural em sua singularidade latina. Como tal, a arte de rua necessita manter-se viva como potência dissonante à ordem do capital, mesmo quando não seja seu viés majoritário, dada a necessidade de sobrevivência dos/das próprios/as artistas.

Manter-se firme, ante todo tipo de violência e opressão, assegurar sua autonomia em pleno berço de reprodução da condição de dependência, burlar a ordem da superexploração com cores, cantos e contos nos muros e nas ruas. Eis uma tarefa que expõe para o pensamento crítico latino o quanto, se todo artista tem que ir onde o povo está, como canta Milton Nascimento, por onde têm, então, andado os intelectuais e militantes dos partidos de esquerda, frente a esta andança solitária da arte de rua.

Entender a arte como uma ocupação urbana protagonizada por aqueles/aquelas que são descartados na sociedade individualista do espetáculo, é uma questão de ordem. Quanto mais sujeitos sem direito o sistema cria, mais potentes às ocupações físicas das pontes, para moradia, ou da cidade, para poesias concretas.

Será que a arte de rua de Robinho Santana, na potência pintada de uma família negra que habita o cotidiano das cidades, como exemplo de milhões de famílias em Belo Horizonte e no Brasil, fere mais do que historicamente foram e seguem sendo feridas estas famílias pela exclusão, segregação, postas à margem, com fome, sede, impotentes no direito a ser e viver? Se fere, por que fere? Quais os grilhões mantidos para que os próprios trabalhadores, ou parte disso que se concebe equivocadamente como classe média, se negam a ver e reconhecer? Por que o espelho plasmado no muro, de uma sociedade composta majoritariamente por homens e mulheres negros, índios e camponeses é um atentado à imaginação e à propriedade?

Grafite: Robinho Santana

E a pintura da artista Criola? Que lapidações cirúrgicas instituíram a cegueira social a ponto de nos deseducarem historicamente com o afã de não vermos nesta gigantesca obra de rua que corta a cidade pelo ar, e se materializa em cores nos muros dos prédios privados de BH, algo diferente de história, memória e beleza?

Caso não haja espaço para a reflexão sobre o belo, as contradições, a vida cotidiana, torna-se necessário reinstaurar a pedagogia da pergunta em meio às disputas societárias, uma vez que temos perdido de goleada, no âmbito político, para a reprodução das forças fascistas nos nossos meios. Quiçá isto ocorra porque há muito a educação e a formação, que deveriam ser ancoradas na educação popular, processo marcadamente vivo na economia capitalista dependente, não andam juntas – se é que em algum momento da construção institucional do Estado isto ocorreu -.

A hegemonia está materializada sobre processos desiguais e violentos, mediados por segregações, que imperam na constituição de um povo sofrido, oprimido, superexplorado e excluído. Mas, por que nossa parte índia e negra, responsável por construir a ferro e a fogo o propalado desenvolvimento do triste trópico Brasil, ao aparecer gigante nas cidades, torna-se um insulto?

Grafite: Criola

Robinho e Criola são duas importantes expressões da comunicação visual do nosso tempo. Quanto mais alto voarem as imagens que saem de suas formações, e tomarem as cidades, que insistem em esvaziar de sentido a diversidade, mais espaço haverá para disputar e questionar, no tempo presente, o verbo intransitivo do capital.

A arte de rua nos ajuda a transitar entre a intransigência do intransitivo. A plasmar o histórico para produzir o possível processo emancipatório. Tenham estes artistas consciência de classe, ou não, fazem parte da história das contradições de um país que insiste em desenvolver na base da superexploração e da exclusão. Integram a história latino-americana da subversão, colocando-se ao lado daqueles/daquelas que o sistema insiste em jogar para fora da nova ordem mundial.

Os artistas de rua, no tom do grafite, são herdeiros da arte engajada e projetores de sonhos. Tenham consciência disto ou não. Na arte pública, o resultado parece assumir uma forma-conteúdo que vai além das pretensões do/da artista. A tal ponto que aparenta deixar de pertencer ao pintor e passa a ser patrimônio histórico e público da sociedade.

A arte de rua chega onde os livros não chegam, nos espaços e campos de visão em quem a educação formal insiste em ausentar-se. A arte de rua alfabetiza, embeleza e emudece, no espanto, o retrato colorido das histórias negadas pela história oficial. Nas ruas, a arte volta a tensionar para a importância do público, reproduz e/ou reacende a chama dos questionamentos.

Um olhar atento pelas cidades, suas pontes e seus muros denunciam as opressões e os silenciamentos cotidianos, tanto pelos corpos que habitam estes lugares, como por aqueles que passam sem questionar o viver coletivo no mesmo tempo e espaço.

A arte de rua abre o horizonte para o pensar. Por isso um olhar atento às imagens gigantes, pode e deve anunciar a revanche, a denúncia contra as opressões reais em meio à formalidade do poder do capital que emana dos nossos estados repletos de direito penal sobre muitos corpos.

A arte de rua nos convoca à reflexão acerca das cercas presentes no direito à cidade. Grita diversidade, reitera, no desenho gigante, o campo presente no cotidiano da cidade.

Os cimentos, as mentes e os sentidos são desafiados. O cinza como adormecimento das cores é burlado. Os processos públicos voltam a ser revitalizados. Por isso e por muito mais necessitamos da arte de rua como um convite para dançar, para o abraço coletivo nas ruas, mediado pela história dos nossos ancestrais.

A arte de rua deve ser prioritariamente pública e revelar a diversidade que compõe as cidades. E como tal, deve ser encarada como disputa na produção do simbólico e do concreto. Pois não basta ser público. É necessário ser público e politicamente ser o espaço-tempo da construção da diversidade. Os espaços públicos como bens comuns precisam ser revitalizados, caso não, ficaremos à mercê dos juízes do capital que imperam sobre e contra os corpos e mentes dos/das trabalhadoras das ruas, das casas, das fábricas e das motos.


1 Ver: BAMBIRRA, Vânia. Capitalismo dependente latino-americano. SC: Insular, 4ª. edição, 2019. MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. IN: TRASPADINI, Roberta e STÉDILE, João Pedro. Ruy Mauro Marini vida e obra. SP: Expressão popular, 2ª. edição, 2011.

2 Ver história e documentos do jornal em: http://elmachete.mx/

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