Arquitetura: África propõe um laboratório do futuro

Desafiando as xenófobas políticas de imigração, curadora ganense propõe discussões sobre relações coloniais na Bienal de Arquitetura, na Itália. Como pensar, em vez de prédios e pontes, a construção de espaços e relações para transformar a sociedade?

Visitantes da exposição central, Força Maior. Simone Padovani/Getty Images
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Apresentada desde 1979, a Bienal de Arquitetura de Veneza (La Biennale di Venezia) é possivelmente a exposição de arquitetura mais influente do mundo. Pela primeira vez, a edição deste ano tem curadoria de uma arquiteta africana, Lesley Lokko, o que garantiu que uma forte presença africana seja a característica central da mostra. De fato, a exposição de 2023 faz parte de uma mudança inegável em direção a uma representação mais justa na arquitetura global.

A Bienal de Veneza, instituição cultural estabelecida em 1895, é uma manifestação de abrangência mundial e criada no quadro do imperialismo europeu. Trata-se de uma plataforma internacional para uma rede de poderosos grupos acadêmicos e profissionais, produtores de materiais, empresas de construção, desenvolvedores e autoridades públicas. Todos eles se reúnem em Veneza para mostrar e discutir os seus trabalhos.

A Bienal depende fortemente de patrocinadores privados e vários países hospedam seus próprios pavilhões em Veneza. Embora uma curadora africana não tenha influência sobre esses pavilhões, ela tem amplo poder de determinar como serão o pavilhão principal e suas exposições, as seções intituladas Força Maior e Ligações Perigosas.

Como professor de arquitetura com foco acadêmico em cidades africanas e formas arquitetônicas não ocidentais, participei da semana prévia em Veneza. Acredito que a presença africana no evento traga uma nova perspectiva, muito necessária – e complicada –, que precisa moldar o futuro da Bienal.

Lesley Lokko e Demas Nwoko

Logo na primeira sala da mostra deste ano, na entrada do Corderie dell’Arsenale – uma construção estreita de 300 metros de comprimento onde a marinha veneziana produziu seus cabos navais por mais de sete séculos – brilha uma luz azul difusa. Convida os visitantes a refletir sobre a noção da “hora azul”, o momento após o pôr do sol e antes da noite. Para Lokko, a luz marca uma nova era: “Um momento entre o sonho e o despertar… um momento de esperança.”

Arquiteta, educadora e romancista ganense-escocesa, Lokko é a primeira mulher negra a fazer a curadoria do programa. Em seu texto curatorial, ela destaca o “laboratório do futuro”. Mais do que um local para experimentos científicos, o laboratório precisa ser pensado sobretudo como uma oficina. Aqui, diferentes profissionais podem testar colaborativamente novas formas de arquitetura. No ocidente, diz Lokko, continua-se a pensar os arquitetos como as pessoas que constroem edifícios. Mas eles fazem muito mais, constroem sociedade, competência, conhecimento, num mundo que se hibridiza e se entrelaça rapidamente.

Demas Nwoko. Titi Ogufere/A Bienal de Veneza

Lokko subverte perspectivas. Ela convida os visitantes a olhar para a África não como um lugar para onde os modelos ocidentais devem ser transferidos, mas sim de onde muito se pode aprender.

A decisão de atribuir o Leão de Ouro pelo Conjunto da Obra a Demas Nwoko, um arquiteto e artista nigeriano nascido em 1935, é significativa para a perspectiva de Lokko.

Seus edifícios, em número relativamente pequeno, são citados como “precursores das formas de expressão sustentáveis, conscientes dos recursos e culturalmente autênticas que agora se espalham pelo continente africano – e pelo mundo”.

Um exemplo disso é o Instituto Dominicano e Capela, que ele realizou em Ibadan, Nigéria, em 1975. Os motivos de um edifício cristão são reinterpretados por meio de um senso africano de lugar e ornamentação.

A abordagem de Lokko representa uma mudança radical na forma como a Bienal funciona. É uma contribuição importante para a criação de verdadeiras “zonas de contato”: lugares de troca produtiva entre pessoas que trazem visões diferentes. Esse novo modo substitui as antigas hierarquias arbitrárias por um respeito recíproco pela diversidade.

Torre acima do altar da capela de Nwoko em Ibadan, Nigéria. Joseph Conteh/La Biennale di Venezia

O evento deste ano provocou polêmica pelos fato de terem sido negados vistos para alguns arquitetos africanos. Um bom ponto de partida para o respeito recíproco seria tornar realmente possível a participação e o comparecimento de todos, quebrando as barreiras impostas pelas desigualdades sistêmicas e pelas políticas de imigração xenófobas.

O que está em exibição

Dos 89 participantes, a maioria jovens, da mostra deste ano, mais da metade provém da África ou da diáspora. Eles são cuidadosamente orquestrados nos dois principais espaços expositivos da mostra, a Giardini e a Arsenale, e em seis seções.

No pavilhão principal, onde a exposição Força Maior domina a cena, uma imponente instalação do artista visual nigeriano Olalekan Jeyifous simboliza o imaginário do futuro africano. Suas imagens são poderosas metáforas espaciais da relação entre arquitetura, comunidades e meio ambiente. E a necessidade de reparar os danos causados ​​pelas antigas potências coloniais.

Instalação por Olalekan Jeyifous da Nigéria. Matteo de Mayda/A Bienal de Veneza

Em outra sala, o Arquivo Oral do coletivo de Nairóbi Cave Bureau celebra a tradição de transmitir o conhecimento oralmente através das gerações como forma de manter os humanos em comunidade com a terra. Em uma tela multimídia, três canais se sobrepõem. Eles exibem conversas com comunidades habitantes de cavernas, sequências do museu Anthropocene e desenhos, mapas e modelos feitos em vastos sítios geológicos.

A ênfase em dois dos temas abrangentes da bienal de Lokko – descolonização e descarbonização – também pode ser encontrada na longa e às vezes irregular sequência no Arsenale. Aqui a seção Ligações Perigosas está entrelaçada com os projetos especiais do curador, intitulados: Alimentos, Agricultura e Mudanças Climáticas; Gênero e Geografia; Mnemônica; e Convidados do Futuro.

Trabalho do Cave Bureau do Quênia. Matteo de Mayda/Bienal de Veneza

Aqui são apresentadas as paisagens sintéticas do produtor e diretor de cinema nascido na Nigéria Michael Uwemedimo. Um solo físico feito de argila e contaminado pelo capitalismo global é transportado de Port Harcourt, na Nigéria, para Veneza. É um ponto de partida para imaginar o futuro, exibido por meio de imagens geradas por IA no teto.

O artista e fotógrafo congolês Sammy Baloji desconstrói habilmente a narrativa oficial da ocupação colonial, sugerindo uma visão da arquitetura e do corpo humano como vestígios da história social. Isso é feito exibindo um antigo documentário colonial belga poeticamente entrelaçado com filmagens feitas nos dias de hoje.

O que tudo isso significa

A Bienal de Arquitetura de Veneza 2023 é uma edição importante e complicada, com uma mensagem necessária. Só podemos esperar que o evento dê continuidade ao processo de descolonização iniciado por Lokko após anos de ausência de confronto, comparação e troca entre diferentes posições.

Um repensar radical da Bienal, e do mundo (arquitetônico) em geral, está muito atrasado. Precisamos de um futuro diferente. Entremos na “hora azul”.

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